Judicialização na Saúde: para sair da superficialidade é preciso enfrentá-la

04/Set/2016

Por Thiago Lopes Cardoso Campos


Quase todas as autoridades e especialistas têm criticado o impacto que as decisões judiciais na área da saúde trazem para a gestão do SUS; recentemente o próprio Ministro da Saúde referiu-se a um custo adicional de R$ 7 bi ao Sistema Único de Saúde com a judicialização, afirmando que os pedidos na Justiça não acompanham "a capacidade do brasileiro de pagar impostos" e demonstrando sua intenção de apresentar propostas de enfrentamento do fenômeno.
A Folha de São Paulo, em editorial de 13 de agosto de 2016, intitulado de "Injustiça com o SUS", reforça a necessidade de planejamento para as ações de saúde, enfatizando os efeitos que o atendimento das demandas judiciais acarreta na gestão do SUS. Conclama os magistrados para uma necessária sensibilização e propõe que seja assegurado a estes "acesso fácil e rápido a informações técnicas sobre consensos médicos, equivalência de medicamentos e tratamentos e até sobre os combalidos orçamentos do Ministério e das secretarias de saúde”."
A judicialização da saúde não é recente, mas o crescimento exponencial dos gastos públicos traz o assunto à pauta, em especial em tempos de redução do financiamento do SUS. As gestões do SUS, em todos os níveis, têm adotado diversas medidas e obtido alguns avanços ao longo do tempo. Contudo, o crescimento do volume dos recursos que são demandados judicialmente contra o SUS demonstra a insuficiência das ações empreendidas ou a ineficácia destas no combate ao problema.
É preciso pontuar que o aperfeiçoamento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), com a sua participação democrática e rigor técnico na avaliação das incorporações de tecnologias, assim como a atuação do Ministério da Saúde junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para a construção de diálogo permanente entre gestores da Saúde, Poder Judiciário e o Ministério Público, inclusive com a produção de enunciados orientadores, a disponibilização de respostas técnicas através dos Núcleos de Assistência Técnicas (NAT's) e a formação de Câmaras de Conciliação, são avanços efetivos e que muito contribuíram para a qualificação da judicialização da saúde.
As críticas às ações empreendidas pelos gestores residem no fato de que estas visam mais a qualificação da judicialização do que a redução dos impactos deletérios ao SUS e aos direitos sociais à saúde, demonstrando um empenho na convivência com o fenômeno e não no seu efetivo enfrentamento. Apontam a ausência de ações concretas sobre as causas, bem como falhas no diagnóstico destas e deficiente atuação judicial perante juízes e demais operadores do direito.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que, apesar dos esforços, o Ministério da Saúde ainda não conseguiu produzir um diagnóstico fidedigno das causas da judicialização, muitas vezes considerando o fenômeno como fruto de causas mercadológicas e subestimando o volume das demandas que refletem falhas de gestão do sistema em suas diferentes esferas de governo. Não há clareza quanto ao volume de recursos efetivamente despendidos uma vez que não há dados efetivos que possam ser divulgados de modo fundamentado. Os 7 bilhões indicados pelo Ministério da Saúde recentemente como gasto com a judicialização nos leva a perguntar se se trata de gasto acumulado nos anos ou somente do ano de 2016. Qual foi a fonte de informação utilizada e os gastos considerados foram também os indiretos? Estas e tantas outras perguntas precisam de respostas para auxiliar no seu estudo, conhecer melhor suas causas.
Na mesma seara, é importante registrar que o CNJ em recente Relatório (2015) denominado "Judicialização da saúde no Brasil - dados e experiências" também sinaliza dificuldades em consolidar um perfil amplo dos litígios em saúde no Brasil, a partir das informações e características presentes nos processos judiciais. O relatório indicou assim, entre os desafios institucionais, a necessidade de aprimoramento do acesso a dados, em especial os da primeira instância, que por conta da ausência de padronização para o cadastramento dos processos e dos julgados não permite a sistematização.
O fato é que desde o ano de 2012, o Ministério da Saúde, ciente da ausência de um diagnóstico fidedigno quanto ao fenômeno da judicialização, vemdesenvolvendo um sistema integrado de tratamento das demandas judiciais para ser utilizado internamente e disponibilizado para uso dos demais gestores do SUS, de modo a permitir a classificação uniforme das causas das ações, o acompanhamento paulatino dos gastos, os ajustes orçamentários decorrentes da solidariedade imposta nas decisões, bem como a consolidação dos dados e a atuação de forma célere quando da identificação de fraudes nesses processos.
O Sistema, desenvolvido através do DATASUS e de uma empresa dedesenvolvimento de software, após amplo mapeamento dos processos nas principais Secretarias do Ministério da Saúde, tem enfrentado limitações na modernização e transparência na gestão federal para sua implementação interna e, pela insuficiência de diálogo com os demais gestores do SUS enfrentará na sua adesão.
Sem dados efetivos, o que se vê sempre é a apresentação pelos meios de comunicação de lista caricatural das demandas judicializadas, noticiando situações em que os pedidos são esdrúxulos, alegando, como fez a Folha, se tratar de "forma de levar a atenção a um problema real e intensificado ao longo dos anos". Caricaturar o fenômeno, sem avaliar adequadamente as suas causas, não produz resultado positivo, senão a sua banalização. O que se tem de concreto quanto às causas da multiplicação de ações judiciais na área da saúde é o fato da gestão interfederativa do SUS não ter ainda construído e pactuado, como já ocorre nos sistemas públicos universais de saúde mais consolidados, protocolos técnico-científicos de padrões de atenção integral á saúde, junto ao Judiciário e Ministério Público, com vistas a preservar o direito universal á saúde sem permanecer refém do jargão capcioso do "tudo para todos".
Para avançar sobre a análise das causas é preciso, antes de se apresentar medidas limitadoras ao acesso à justiça ou restritivas ao direito à saúde, que os gestores as conheçam com precisão, e, com base em evidências, passem a planejar as ações adequadas à solução de cada um delas. Sem uma classificação tipológica uniforme das demandas judiciais, é inviável um planejamento efetivo das medidas que precisam ser adotadas para enfrentar o problema. O empreendimento de esforço conjunto com o CNJ para permitir o compartilhamento dos dados, a uniformização da classificação e a atuação conjunta na concretização do direito à saúde, deve estar entre as medidas a serem adotadas.
Mas o cenário tende a piorar se as medidas anunciadas pelo governo interino vierem a ser aprovadas no Congresso, limitando ainda mais os gastos com a saúde. Verificar-se-á, sem dúvida uma maior necessidade de atuação judicial na garantia do direito à saúde, aumentando em muito a judicialização e demandando ainda mais empenho dos gestores para evitar o comprometimento do planejamento. Para isso, será preciso sair da superficialidade e enfrentar as causas da judicialização.


Thiago Lopes Cardoso Campos: é advogado especializando em direito sanitário pelo IDISA, com MBA em Gestão pela FGV. Foi Gerente de Projetos da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde – SAS/MS, responsável pela gestão da judicialização naquela secretaria, e Diretor de Programa da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde – SGTES/MS. É membro da Comissão de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia.


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