Projeto de Lei n. 435, de 2019
17/Ago/2019Por Lenir Santos
REQUERENTE: Conselho de Secretários Municipais da Saúde do Estado de São Paulo (Cosemssp).
CONSULTA: O Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo – COSEMS SP, consulta o Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA, a respeito do Projeto de Lei n. 435, de 2019, aprovado na Assembleia Legislativa e encaminhado ao Governador do Estado para sanção. A questão posta pelo Cosems diz respeito à legalidade de tal provimento legislativo, tendo em vista as normas que regem o SUS e as disciplinas a respeito do parto cesariano, com o Brasil sendo considerado o seu campeão, ao arrepio de recomendações de organismos internacionais e das políticas de saúde nacionais.
ANÁLISE JURÍDICA: O escopo do presente projeto é garantir à parturiente a escolha de parto cesariano, em nome da autonomia da vontade, tendo o médico a liberdade de realizá-lo ou não, quando deverá encaminhar para outro profissional, caso não concorde com a opção da gestante.
O referido Projeto de Lei (PL 435), analisado à luz dos regramentos que informam o Sistema Único de Saúde (SUS), nos leva ao entendimento - ainda que o PL tenha por escopo o respeito à vontade da parturiente quanto à escolha da forma pela qual deve se dar o seu parto – de tratar-se de uma escolha que impõe riscos à sua saúde e à do bebê, sendo o parto cesariano uma intervenção cirúrgica que, em acordo às normas do Ministério da Saúde, somente deve ser prescrito em situações em que o parto normal não seja o mais aconselhável, não sendo, pois, uma modalidade de parto que se compara ao parto normal, quando então caberia a opção entre uma ou outra modalidade. Assim, não cabe aqui falar em autonomia da vontade contra as normas regedoras do sistema de saúde brasileiro no sentido de sua proteção.
Não se pode olvidar que o SUS tem regras de organização e funcionamento e se assenta em fundamentos constitucionais voltados para a proteção da saúde mediante medidas e escolhas que inibam os riscos de agravos à saúde das pessoas, seja de modo individual ou coletivo.
A primeiro delas, conforme disposto no art. 196 da Constituição, é o da adoção de políticas públicas que preservem a saúde sob todos os aspectos, o que se denomina de princípio da segurança sanitária, o qual não se contrapõe a autonomia da vontade – mas sim orienta-a, ao definir, em acordo as evidências científicas, medidas protetivas, conforme diretriz organizativa do SUS, de que o serviço de saúde deve ser sempre o preventivo, para se evitar o atendimento curativo, que pressupõe uma saúde já agravada (art. 198, II da CF).
É sobre esses fundamentos que o SUS deve se organizar e se organiza, tanto que no caso do parto, definiu políticas de saúde que dispõe que o parto natural é que mais previne riscos e o parto cesariano, a exceção, devendo somente ser realizado em situação em que realmente haja necessidade.
Nesse sentido, em que pesem os argumentos trazidos pela autora do provimento legislativo, a Deputada Janaina Paschoal, quanto à proteção da autonomia da vontade, não se pode entender que essa autonomia possa se sobrepor as situações em que a política pública do Ministério da Saúde, fundada em bases e evidências científicas e recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) define outra medida como a mais segura terapeuticamente.
O Ministério da Saúde, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (CONITEC) [1], realizou consulta pública, em abril de 2015, quanto às “Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação Cesariana”, com extensa descrição da situação no Brasil e seu impacto na saúde da mulher e do bebê, tendo tais diretrizes sido aprovadas em 2016, pela Portaria n. 306, de 28 de março de 2016, após pactuação na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).
A adoção dessa política pelo MS decorre do alarmante número de cesarianas no Brasil, que alcançou as mais altas taxas do mundo, tendo a Organização Mundial de Saúde (OMS) [2] se referido a uma “epidemia de cesarianas”, tendo o Brasil apresentado no ano de 2016, uma taxa de 55% de partos cesáreos.
Em 2018, o Sistema Nacional de Nascidos Vivos – SINASC mostrou que no estado de São Paulo a taxa chegou a 58,6% (2018); por sua vez, no Inquérito Nacional sobre parto e nascimento, divulgado pela Fiocruz, essas taxas são de 88% no setor privado e 43% nos serviços públicos. Esses alarmantes números de cesarianas no Brasil foi o que levou o Ministério da Saúde a pactuar com as secretarias estaduais e municipais de saúde medidas para a sua contensão.
Estudos científicos, que pautam as informações sobre o parto cesariano, indicam não existirem evidências de que cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia, tragam algum benefício. Uma cesárea é uma cirurgia como qualquer outra, que somente deve ser realizada quando houver indicação médica; ela acarreta riscos imediatos e de longo prazo, tanto que o elevado número de cesarianas não diminuíram a taxa de mortalidade perinatal.
Isso tem sido sobejamente estudado e é assentado que o parto saudável é aquele que acontece de modo natural e em ambiente humanizado, devendo a cesariana somente ser indicada em casos em que a mulher ou o bebê necessitem dessa intervenção terapêutica, em razão de riscos à saúde; importante lembrar ainda que somente o médico pode prescreve-lo, por se tratar de uma terapêutica vinculada a um diagnóstico de risco à saúde.
As medidas adotadas pelo MS obrigam todos os entes federativos no âmbito do SUS. As secretarias de saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios devem cumprir o regramento federal, devendo ainda orientar os profissionais da saúde a diminuir o número de cesarianas desnecessárias, em razão de seus riscos, como o aumento da probabilidade de surgimento de problemas respiratórios para o recém-nascido e perigo de morte materna e infantil.
Assim, vê-se, que o PL 435 segue na contramão de todo o esforço governamental e mundial de diminuição dessa epidemia, violando o mais importante princípio do direito à saúde, que é a prevenção de riscos e agravos à saúde. Um projeto de lei estadual na área da saúde, no ambiente constitucional brasileiro, de competência concorrente entre União e Estado (art. 24, XII CF), quando compete à União a edição de normas gerais sobre saúde, as normas sobre a redução do parto cesariano não pode ser violada por medida legislativa estadual por serem normas gerais.
Na realidade, o PL 435 contraria os mandamentos constitucionais do art. 196 (prevenção de riscos à saúde) e art. 198, II (prioridade para as ações preventivas), ao expor a mulher e o bebê a riscos evitáveis, e ainda interfere na definição do que seja parto normal e parto cesariano, tendo em vista que, o segundo, somente deve ser realizado quando houver risco para a saúde da mãe e do seu bebê. O respeito à autonomia da vontade não está sendo violado quando o médico avalia se o parto normal pode ser realizado ou não. Em situações de saúde, ainda que deva ser um ambiente de decisão informada e consentida, há fundamentos técnico-científicos e evidências científicas a orientar a decisão, no sentido de se evitar riscos à saúde.
Nenhuma lei estadual não pode impor ao Sistema Único de Saúde supostos direitos do exercício da autonomia da vontade, quando esses direitos contrariam diretrizes terapêuticas que visam proteger a saúde das pessoas. Esse é o seu limite. As escolhas não podem ferir as normativas do SUS. O SUS ao decidir que o parto normal deve ser a regra e o parto cesariano a exceção, Portaria MS n. 306, de 2016, não pode ser contrariado por uma lei estadual, não ficando os seus gestores obrigados a mudar a sua política pública de contensão da epidemia de parto cesariano, definida nacionalmente, por lei estadual. Caso a mulher venha a optar por fazer uma cirurgia não prescrita por médico ante uma comprovada necessidade, não caberia ao sistema de saúde público arcar com a sua realização e custos, caso o PL 435 venha a ser sancionado. A opção da mulher pelo parto cesariano, quando não indicado terapeuticamente, não pode obrigar o SUS a realizá-lo por contrariar política nacional de saúde. Lei estadual não pode assim impor tal ônus financeiro ao SUS e nem o projeto de lei define as fontes orçamentárias estaduais para cobrir tais custos.
O SUS se pauta pela Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases) e por diretrizes terapêuticas, de competência federal, nos termos da Lei Federal n. 12.406, de 2011 e Decreto 7.508, de 2011. Estados e municípios estão obrigados a cumprir as políticas de saúde editadas pela União, Ministério da Saúde, em comum acordo com os demais entes federativos, a quem compete, ainda, realizar as transferências de recursos financeiros aos demais entes para o custeio das ações e serviços de saúde, em acordo ao definido nas políticas de saúde de âmbito nacional.
Além do mais, os recursos das transferências federais estão congelados aos níveis de 2016, em razão da EC 95, de 2015, não podendo ser aumentados por novas demandas, como seria o caso se o parto cesariano puder ser de livre escolha e não por necessidade.
O referido PL 435 está na contramão da política pública de saúde, dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, da Renases, do princípio da prevenção de risco à saúde, das recomendações da OMS. Ainda se poderia considerar o fato de, ao se legislar sobre a autonomia da vontade, estar adentrando matéria de direito civil, quando a competência é privativa da União. Por outro lado, as situações conhecidas como de violência obstétrica, mencionadas pela Parlamentar com opção para o parto cesariano, devem ser punidas na forma da lei, não se devendo combater um erro com opções que possam por em risco a saúde das pessoas.
Por todo o exposto, entendemos que o referido PL 435 fere: a) o princípio constitucional expresso no art. 196 da Constituição que determina ser a saúde direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas públicas que evitem o risco do agravo à saúde; b) a diretriz de organização do SUS de priorizar o atendimento preventivo (art. 198, II d CF); c) a competência da União de expedir normas gerais sobre as políticas de saúde que informam o SUS (art. 24, XII da CF); d) a Lei n. 8.080, de 1990, alterada pela Lei n. 12.401, de 2011, que dispõe sobre a necessidade de protocolos e diretrizes terapêuticas sobre os agravos à saúde ou doenças e a Portaria MS n. 306, de 2016 que as definem em relação ao parto cesariano.
Campinas, 17 de agosto de 2019
Lenir Santos
Advogada OAB-SP 87807
Doutora em saúde pública pela Unicamp
[1] Diretrizes de Atenção à Gestante: a operação Cesariana:
http://conitec.gov.br/images/Consultas/Relatorios/2015/Relatorio_PCDTCesariana_CP.pdf
[2]https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf;jsessionid=D83F28CA89E653CC3F5DBD122805EB5F?sequence=3
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