Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
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Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Extra Nº 38 - Setembro 2020

Aplicar acima do piso não evitou perdas para o SUS federal em 2019

Por Francisco R. Funcia


O objetivo desta Nota é demonstrar que é falso o argumento de que não houve perdas para o Sistema Único de Saúde (SUS) em 2019, porque o Ministério da Saúde (MS) aplicou acima do piso em 2019. Segundo o Relatório Anual de Gestão (RAG) de 2019 do Ministério da Saúde (MS), o valor empenhado para verificação da aplicação mínima constitucional em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) foi de R$ 122,270 bilhões, ou seja, R$ 4,977 bilhões acima do piso mínimo constitucional de R$ 117,293 bilhões.

Entretanto, o MS adotou um valor de Restos a Pagar cancelados em 2018 inferior a R$ 1,931 bilhão, que foi o valor efetivamente cancelado se consultarmos o RAG 2018 [1] - esse é o valor para apurar a compensação em 2019 como aplicação adicional ao piso nos termos da Lei Complementar 141/2012 (artigo 24, parágrafo 2º) e das diretrizes para o estabelecimento de prioridades para 2019 deliberadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) na Resolução nº 579/2018 (artigo 1º, Inciso I, Alínea d) nos termos estabelecidos pelo artigo 30, parágrafo 4º, da LC 141). Apresentamos a seguir (Tabela 1) o demonstrativo ajustado do valor efetivamente aplicado acima do piso federal em 2019 (R$ 4,516 bilhões).

Esse valor aplicado acima do piso cria a falsa impressão de que o SUS federal foi beneficiado em termos de alocação de recursos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde; mas, a análise além das aparências revela que o SUS federal está perdendo recursos desde 2018, quando a nova regra de cálculo do piso federal estabelecido da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 [2] passou a vigorar.

A Tabela 2 evidencia essa perda (conforme Ocke et al., 2020), tanto como proporção da Receita Corrente Líquida (RCL), como em valor per capita, cujos efeitos negativos disso para o desenvolvimento das ações e serviços de saúde para atender às necessidades da população não foram analisados pelo MS no RAG 2019.

Como consequência, na medida em que o piso federal do SUS tem sido, desde 2000, uma referência para a efetiva aplicação (o que se convencionou chamar na literatura da Economia da Saúde como a lógica do “piso igual ao teto”), essa queda verificada no valor do piso, de um lado, condicionou negativamente as despesas empenhadas ASPS (que também apresentaram redução), e, de outro lado, evidenciou que o argumento do excesso de aplicação em relação ao piso “rebaixado” pela EC 95/2016 mascara a realidade do desfinanciamento do SUS – desde 2018, a perda acumulada foi de R$ 22,5 bilhões, sendo R$ 13,6 bilhões somente em R$ 2019 (segundo estudo de Moretti et al., 2020), quando comparada ao valor correspondente aos 15% da Receita Corrente Líquida estabelecidos pela Emenda Constitucional nº 86/2015) [3]. Conforme Santos e Funcia (2019):

Dizer que a garantia do direito não será maculada porque os percentuais mínimos estão mantidos é uma visão míope por não levar em conta os fatores econômico-financeiros, social, demográfico, epidemiológico e outros.

Do ponto de vista da gestão do MS em 2019, não consta no RAG 2019 a informação de que tenha sido encaminhada explicação às demais autoridades governamentais sobre os efeitos negativos da EC 95/2016 para o atendimento às necessidades de saúde da população, cujas perdas aumentaram de R$ 4,0 bilhões em 2018 para R$ 13,6 bilhões em 2019 (conforme Moretti et al., 2020) Como bem apontaram Graziane Pinto e Scaff (2020),

...sucessivas emendas constitucionais, regulamentações e restrições interpretativas mitigaram o alcance operacional e financeiro do SUS, sobretudo para reduzir proporcionalmente o dever do gasto mínimo federal em saúde.

É oportuno resgatar o alerta de Graziane Pinto (2016) à época da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 na Câmara dos Deputados e da PEC 55 no Senado Federal (promulgada em dezembro de 2016 como EC 95/2016):

A propósito, acerca do controle judicial da efetividade dos direitos fundamentais, absolutamente paradigmático é o firme alerta dado, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pelo Ministro Celso de Mello, no exame da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 (ADPF 45), ocasião em foi enfaticamente assinalado não caber a frustração do direito à saúde em nome de restrições orçamentárias falseadas.

Desta forma, se é verdade que a gestão do Ministério da Saúde deve obedecer às normas constitucionais e à regulamentação fixada pela área econômica do governo federal, é verdade também que a Constituição Federal não estabeleceu explicitamente um valor de aplicação máxima para saúde (apesar desse valor estar condicionado pelo teto geral das despesas primárias da União determinado pela EC 95/2016) – mas estabeleceu, sim, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196) e que as ações e serviços públicos de saúde são considerados como de “relevância pública” (artigo 197).

Em resumo:

a) É inconstitucional a queda de recursos para saúde após a EC 95/2016, conforme demonstrado anteriormente, cuja aplicação foi de 13,54% da RCL em 2019 – comparado ao piso de 15% da RCL que vigorava pela regra anterior [4] da EC 86/2015, não foram alocados para o SUS R$ 13,6 bilhões somente em 2019, ou seja, é falso o argumento de que não houve perda para o SUS em 2019, porque o valor aplicado foi acima do piso em R$ 5,0 bilhões (conforme o RAG 2019) ou R$ 4,5 bilhões (conforme valor ajustado na Tabela 2 desta Nota) – somente não haveria perda no ano de 2019 se o valor aplicado acima do piso superasse R$ 13,6 bilhões, o que não ocorreu.

b) Tomando por base a ausência de informação no RAG 2019 sobre o que segue, as áreas econômicas e políticas do governo federal parecem não ter um acompanhamento sistemático sobre o cumprimento das metas estabelecidas tanto no Plano Plurianual 2016-2019, como nos planos setoriais; além disso, o MS deveria ter comunicado para as demais autoridades governamentais sobre essa perda de recursos do SUS e sobre os impactos negativos decorrentes dela para o financiamento federal, estadual e municipal das ações e serviços públicos de saúde e/ou sobre o prejuízo para o atendimento às necessidades de saúde da população – cujo resultado pode ser observado nas informações disponíveis no RAG 2019, dentre outras, tanto pela existência de metas não cumpridas na Programação Anual de Saúde de 2019 e no Plano Nacional de Saúde 2016-2019, como pela variação zero ou negativa de despesas como Piso de Atenção Básica (PAB-Fixo), Saúde Indígena, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Farmácias Populares, Aquisição e Distribuição de Imunobiológicos e Insumos para Prevenção e Controle de Doenças (produção de vacinas), Reaparelhamento de Unidades do SUS, Medicamentos Excepcionais, etc.


REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório Anual de Gestão 2018. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_anual_gestao_rag_2018.pdf (Acesso em setembro/2020).

Relatório Anual de Gestão 2019. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_anual_gestao_2019.pdf (Acesso em setembro/2020).

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 86/2015.

BRASIL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 95/2016.

BRASIL. LEGISLAÇÃO. LEI COMPLEMENTAR Nº 141/2012.

GRAZIANE PINTO, Élida. Novo Regime Fiscal e a mitigação dos pisos de custeio da saúde e educação. Cad. Saúde Pública vol.32, nº 12, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2016001200503&lng=pt&nrm=iso (Acesso em setembro/2020).

GRAZIANE PINTO, Élida; SCAFF, Fernando F. Federalismo, saúde pública e macrojustiça na pauta do STF. Folha de São Paulo, 10 de março de 2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/03/federalismo-saude-publica-e-macrojustica-na-pauta-do-stf.shtml (Acesso em setembro/2020).

MORETTI, Bruno; FUNCIA, Francisco R.; OCKÉ, Carlos. O teto dos gastos e o “desfinanciamento” do SUS. Observatório da Economia Contemporânea. Le Monde Diplomatique. 15 de julho de 2020. Disponível em https://diplomatique.org.br/o-teto-dos-gastos-e-o-desfinanciamento-do-sus/ (Acesso em agosto/2020).

OCKE-REIS, Carlos O.; BENEVIDES, Rodrigo; FUNCIA, Francisco R.. Estudo sobre o financiamento do SUS. In: Santos, L; Funcia, F.R.. Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Revista Eletrônica Domingueira da Saúde, nº 21, maio/2020, IDISA (Instituto de Direito Sanitário Aplicado). Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-21-maio-2020 (Acesso em agosto/2020).

SANTOS, Lenir; FUNCIA, Francisco R. Emenda Constitucional 95 fere o núcleo essencial do direito à saúde. Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2019. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jan-21/opiniao-ec-95-fere-nucleo-essencial-direito-saude (Acesso em agosto/2020).


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP. Professor dos Cursos de Economia e Medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor nas áreas de economia da saúde, de gestão orçamentária e financiamento do Sistema Único de Saúde e de planejamento e finanças públicas.
O Conselho Nacional de Saúde tem deliberado desde 2013 que será considerada obrigatória, como aplicação adicional ao piso do exercício em que a execução orçamentária e financeira esteja sob avaliação (neste caso, 2019), a compensação de 100% dos cancelamentos de restos a pagar ocorrido no ano imediatamente anterior (neste caso, em 2018), conforme determina a Lei Complementar 141/2012 (artigo 24, parágrafo 2º). O Ministério da Saúde tem informado anualmente diante dessa divergência de entendimento com o CNS que cumpre o parecer da Advocacia Geral da União (AGU), cujo entendimento aplicado para o presente caso é que somente o valor dos restos a pagar cancelados em 2018 de empenhos posteriores a 2012 deveriam ser compensados em 2019. É oportuno ressaltar que a Consultoria Jurídica do MS elaborou parecer com entendimento similar ao adotado pelo CNS, isto é, 100% do valor dos restos a pagar cancelados num ano devem ser compensados como aplicação adicional ao mínimo do exercício seguinte.

[1] O Conselho Nacional de Saúde tem deliberado desde 2013 que será considerada obrigatória, como aplicação adicional ao piso do exercício em que a execução orçamentária e financeira esteja sob avaliação (neste caso, 2019), a compensação de 100% dos cancelamentos de restos a pagar ocorrido no ano imediatamente anterior (neste caso, em 2018), conforme determina a Lei Complementar 141/2012 (artigo 24, parágrafo 2º). O Ministério da Saúde tem informado anualmente diante dessa divergência de entendimento com o CNS que cumpre o parecer da Advocacia Geral da União (AGU), cujo entendimento aplicado para o presente caso é que somente o valor dos restos a pagar cancelados em 2018 de empenhos posteriores a 2012 deveriam ser compensados em 2019. É oportuno ressaltar que a Consultoria Jurídica do MS elaborou parecer com entendimento similar ao adotado pelo CNS, isto é, 100% do valor dos restos a pagar cancelados num ano devem ser compensados como aplicação adicional ao mínimo do exercício seguinte.

[2] A regra de cálculo da EC 95/2016 substitui por 20 anos a regra dos 15% da Receita Corrente Líquida estabelecidas pela EC 86/2015: a partir de 2018, o piso federal do SUS passou a ser apurado pelo valor dos 15% da RCL de 2017 acrescido em cada ano pela respectiva variação do IPCA/IBGE. Por exemplo: em 2019, o valor do piso foi calculado da seguinte forma: 15% da RCL de 2017 x variação percentual de 12 meses do IPCA acumulado em junho de 2017 x variação percentual de 12 meses do IPCA acumulado em junho de 2018. Desta forma, houve uma desvinculação do piso federal do SUS à variação da receita, que está mantido congelado até 2036 no valor real de 2017.

[3] Esse percentual entrou em vigor em 2016 pela Emenda Constitucional nº 86/2015, segundo entendimento do Conselho Nacional de Saúde de que não poderia haver retrocesso de aplicação no SUS, entendimento esse expresso em despacho liminar pelo Ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595. Somente para 2017, esse percentual foi fixado também em dispositivo da EC 95/2016 e, a partir de 2018, o valor correspondente a 15% da RCL de 2017 (atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE) seria a nova regra de cálculo do piso federal do SUS.

[4] Conforme explicado anteriormente, a EC 95/2016 alterou a regra do piso da EC 86/2015 pela fixação (até 2036) do valor do piso do ano de 2017 atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE; com isso, o valor da aplicação mínima federal em saúde deixou de ser 15% da RCL, sendo esse um dos fatores explicativos da retirada de recursos ano a ano do SUS, uma vez que, considerando o que tem ocorrido desde 2000, o valor do piso condiciona a efetiva aplicação federal em ações e serviços públicos de saúde. Além desse fator, é preciso destacar também o crescimento demográfico (em torno de 0,8% ao ano, segundo o IBGE), o que torna essa regra do piso congelado nos níveis de 2017 geradora da redução da despesa per capita em saúde até 2036.




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