Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 01 - Janeiro 2020

Medicina defensiva em excesso

Por Clenio Jair Schulze


Medicina defensiva pode ser considerada um conjunto de medidas adotadas pelo médico para evitar eventual omissã e responsabilização ética, civil e criminal.

É muito comum, por exemplo, o profissional solicitar vários exames para confirmar um diagnóstico.

Vive-se a Síndrome de Ulisses[1] (ou cascata diagnóstica[2]) em que se faz um exame e depois faz outro seguido por mais um e assim sucessivamente.

Segundo Bobbio, medicina defensiva significa:

prescrever exames não para investigar um diagnóstico ou para identificar o tratamento mais eficaz, mas para se prevenir de eventuais desforras judiciais. Assim, os pacientes são submetidos a uma quantidade de exames nem sempre úteis para sua saúde, mas indispensáveis para a tranquilidade do médico.[3]

Tudo isso trouxe várias consequências, tais como: 1) aumento dos gastos para o paciente, para as operadoras e para o SUS; 2) elevação do tempo para obtenção do diagnóstico e realização dos procedimentos; 3) aumento da comercialização de aparelhos e produtos médicos; 4) desconfiança; 5) burocratismo.

Em razão disso, há forte movimento para alterar a prática médica desenvolvida nos últimos anos, com a finalidade de evitar desperdício de tempo e de dinheiro.

Ou seja, é preciso reconhecer também que há pouca previsibilidade de alguns diagnósticos e que há dificuldade para escolher indicadores e métricas de avaliação de resultados e ainda é difícil compatibilizar satisfação/expectativa.

O uso indiscriminado da medicina defensiva acabou trazendo novos riscos: o excesso de diagnóstico e o excesso de prescrição[4].

A posição do médico, realmente, não é fácil. De um lado, ele precisa se prevenir contra eventual acusação de negligência ou imperícia. De outro lado, muitas vezes são solicitados exames e procedimentos desnecessários.

De qualquer forma, é importante, portanto, a adoção de novas perspectivas na prática médica.

Uma alternativa é a Saúde Baseada em Valor, em que se dá mais atenção ao paciente, com ampliação da prática do cuidado, prestigiando o sentido humanista e considerando as individualidades da pessoa e também o custo da intervenção médica.

A questão realmente não é fácil de resolver.

Contudo, uma atuação médica séria e responsável é aquela que evita desperdícios, preserva a confiança, observa o progresso das ciências e compartilha decisões com o paciente. Tudo isso também evita a responsabilização pessoal e promove a qualidade do trabalho e da Medicina.


[1]BOBBIO, Marco. New risks of contemporary medicine: overdiagnosis and overprescription (palestra). Instituto de Ensino e Pesquisa Sírio Libanês, São Paulo/SP, 11 Out 2019.

[2]BOBBIO, Marco. New risks of contemporary medicine: overdiagnosis and overprescription (palestra). Instituto de Ensino e Pesquisa Sírio Libanês, São Paulo/SP, 11 Out 2019.

[3]BOBBIO, Marco. Medicina demais: o uso excessivo pode ser nocivo à saúde. Barueri: Manole, 2020, p. 24.

[4]BOBBIO, Marco. New risks of contemporary medicine: overdiagnosis and overprescription (palestra). Instituto de Ensino e Pesquisa Sírio Libanês, São Paulo/SP, 11 Out 2019.


Clenio Jair Schulze, Juiz Federal, foi Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2013/2014). É Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. É co-autor do livro “Direito à saúde análise à luz da judicialização”.



O Estado como Gestor de Serviços no SUS: Regime Jurídico e Implicações Práticas

Por Reynaldo Mapelli Júnior


RESUMO
A tese da solidariedade passiva dos gestores do SUS, consagrada na jurisprudência, e o processo histórico de municipalização da saúde provocaram, em última análise, a indefinição das competências sanitárias dos Estados, sendo necessário elucidar o real papel que devem exercer no atual contexto de organização dos serviços de saúde. O regime jurídico do SUS, imposto pela Constituição Federal, permite identificar as tarefas que competem precipuamente ao gestor estadual, seja no planejamento regional, seja na complementação de serviços sanitários, conforme pactuado com os demais gestores. Cabe, assim, verificar na gestão compartilhada do SUS como deve-se comportar o Estado em determinada Rede de Atenção à Saúde (RAS) e nos três níveis de assistência em saúde, em respeito ao modelo constitucional do SUS.

Palavras-chave: Estado. Regime Jurídico do SUS. Redes de Atenção à Saúde. Níveis de Assistência em Saúde.

1. INTRODUÇÃO
Na medida em que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi idealizado constitucionalmente como uma única rede interfederativa de serviços hierarquizados, regionalizados e organizados de acordo com determinados princípios ou diretrizes constitucionais (art. 198, CF), integrando-os inclusive aqueles prestados complementarmente pela iniciativa privada (art. 199, §1o, CF), de responsabilidade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que devem obrigatoriamente “cuidar da saúde” (art. 23, II, CF) mediante “gestão quadripartite” (art. 194, p. único, VII, CF), a jurisprudência brasileira há tempos vem reconhecendo a responsabilidade solidária dos gestores públicos na disponibilização de qualquer prestação sanitária, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF) (grifo nosso).

Mesmo quando reconhecem o princípio da “descentralização administrativa” (art. 194, parágrafo único, inciso VII, CF), ou “descentralização, com direção única em cada esfera de governo” (art. 198, inciso I, CF), entendido como disseminação de atividades com “ênfase na descentralização dos serviços para os municípios” e governo, independente em cada esfera de atuação (art. 7o, IX, a, e art. 9o, I a III, Lei Orgânica da Saúde), os tribunais ignoram a repartição administrativa de competências nos programas de saúde para afi rmar, independentemente da natureza dos serviços sanitários (atenção básica, de média ou alta complexidade; tratamento emergencial ou de eleição; políticas especialmente dispostas em alguns equipamentos em razão dos altos custos, como a oncológica; tipo de componente da assistência farmacêutica, etc.), a obrigatoriedade solidária de todos os gestores federados na execução direta das ações e serviços de saúde, podendo o paciente-usuário escolher quem acionar judicialmente.

Na realidade, a doutrina sanitária brasileira contribuiu muito para a concepção de que os gestores respondem integralmente pelos serviços do SUS, como pode-se depreender, por exemplo, dos ensinamentos de Dallari e Nunes Júnior, que tentam explicar a municipalização da saúde nos seguintes termos:

A indicação constitucional (art. 198, I) não desonera quaisquer das instâncias federativas para com o dever de assistência à saúde [...]. Apesar de se tratar de uma obrigação solidária, o que faz com que qualquer um dos entes possa ser demandado pela ausência de prestações em matéria de saúde, o sistema apresenta uma diretriz de descentralização, indicando a necessidade de que os serviços de atendimento sejam objeto de um processo de municipalização. [...].

Esse processo de descentralização também ocorre na relação entre União e os Estados, em uma dimensão evidentemente menos complexa pelo número relativamente pequeno de unidades federadas envolvidas (Estados e Distrito Federal) (grifo nosso). (1)

Em relação aos Estados, soma-se a essa questão o problemático processo histórico de municipalização da saúde no Brasil, com uma regulamentação excessiva do Ministério da Saúde que, seguindo a lógica da habilitação dos Municípios para receber recursos federais para determinadas políticas impostas pela União, praticamente ignorou as diretrizes de regionalização e hierarquização dos serviços mais afetas ao ente estatal, gerando dúvidas quanto às competências administrativas que, de certa forma, pareceram embaralhadas (grifo nosso).

As Normas Operacionais Básicas (NOB) e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS) tentaram organizar o sistema de saúde, a partir da NOB n. 01/93, que criou as Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite (CIT e CIB), mas provocaram dúvidas quanto às atribuições estaduais, tendo a NOB n. 01/96 admitido a possibilidade de fragmentação do SUS pela falta de atuação dos Estados, ou seja, “o elevado risco de atomização desordenada dessas partes do SUS, permitindo que um sistema municipal se desenvolva em detrimento de outro, ameaçando, até mesmo, a unicidade do SUS”. Pouco se fez, porém, para corrigir esta distorção, e a NOAS n. 01/2001, que foi revista pela NOAS n. 01/2002 e instituiu o Plano Diretor de Regionalização para a organização de regiões e microrregiões de saúde, causou ainda mais bagunça, parecendo confundir a direção única em cada esfera administrativa com o comando total de um Município sobre todos os serviços de saúde situados em sua região geográfica, como se isso fosse possível. (2)

A confusão ficou tão grande que, em 2006, foi assinado, pelo Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) um Pacto pela Saúde (Portaria Ministerial n. 399, de 22 de fevereiro de 2006), que foi complementado por outros Pactos pela Saúde em 2007, 2008, 2009 e 2010/2011 (Portarias Ministeriais n. 91, de 10 de janeiro de 2007, n.325, de 21 de fevereiro de 2008, n. 48, de 12 de janeiro de 2009 e n. 2.669, de 3 de novembro de 2009), todos com sucesso bem tímido, chegando-se a publicar um Regulamento do SUS no Diário Oficial da União em 3 de setembro de 2009 (Portaria Ministerial n. 2.048/2009), uma pretendida “consolidação” das normas administrativas, com inacreditáveis 790 artigos e 94 anexos, espalhados por mais de 150 páginas. (3)

É por isso que Santos e Andrade cunharam a feliz expressão “elo perdido” para a situação do Estado na organização do SUS:

O Estado, numa Federação, deve ser o condutor das políticas que exigem compartilhamentos de serviços, interdependência de serviços, como é o caso do SUS que exige sejam todos os serviços públicos de saúde integrados numa rede regionalizada e hierarquizada de saúde, constituindo um único sistema, nos termos do art. 198 da CF.

Contudo, os Estados, com amplo poder-dever constitucional e legal de organização político-administrativa da sua região, vêm sendo o elo perdido nessa articulação regional do SUS (grifo nosso). (4)

Por estas razões, é importante verificar, na legislação sanitária brasileira, que foi contemplada por regulamentação da Lei Orgânica da Saúde (Decreto no 7.508, de 28 de junho de 2011), quais as atribuições realmente atribuídas pela lei ao gestor estadual do sistema público de saúde, separando-as, sempre que possível, das tarefas da União e dos Municípios, sem esquecer-se das implicações práticas desta análise, na execução dos serviços de saúde a que tem direito a população brasileira.

Confira o artigo completo AQUI

Reynaldo Mapelli Júnior, Promotor de Justiça. Assessor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Ex-chefe de gabinete da SES/SP (2013/2015).




OUTRAS DOMINGUEIRAS