Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 01 - Janeiro 2021

Tragédia de saúde de Manaus: mais uma consequência do desfinanciamento do SUS e pelo descaso com o direito à vida pelo governo brasileiro

Por Francisco R. Funcia


O “fanatismo fiscal” do governo brasileiro (conceito que expressa a crença sem evidências de que o corte de gasto público é o meio para promover o ajuste fiscal para o equilíbrio das contas públicas, “custe o que custar” – inclusive as mortes dos moradores nas cidades brasileiras) ainda encontra espaço entre políticos e na TV brasileira, mesmo quando o objetivo é comentar a tragédia da falta de oxigênio em Manaus, que impacta a vida dos profissionais do SUS diante da impossibilidade de evitar mortes de pacientes por falta de ar para respirar.

Ilustres economistas(?), geralmente distantes da vida real, tratam do problema como decorrência exclusiva da falta de gestão e de planejamento das autoridades políticas, quando na verdade essas mesmas autoridades tem sido responsáveis por um quadro de “asfixia financeira” caracterizado pelo desfinanciamento do SUS a partir da vigência da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 – que congelou o piso federal da saúde nos níveis do piso de 2017 e submeteu as despesas de saúde como outra qualquer na regra do teto das despesas primárias (congelado nos níveis de 2016).

A asfixia dos pacientes de Manaus também é consequência dessa “asfixia financeira” trazida pela EC 95/2016, cuja proposta (aprovada pelo Congresso Nacional) foi de iniciativa do presidente Temer e do Ministro Meirelles após o golpe do impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff e aprofundada com outras medidas a partir de 2019 de iniciativa do presidente Bolsonaro e do Ministro Guedes.

Esses economistas(?) que a TV tem entrevistado para comentar a situação de Manaus não sabem ou esquecem que o gasto público consolidado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) em saúde é de R$ 3,80 per capita por dia e em torno de 4,0% do PIB em 2019 (e 3,8% em 2015) – isto é, respectivamente, muito abaixo da tarifa paga pelos usuários de transporte coletivo para um trajeto de ida e volta (cujas empresas ainda recebem subsídios governamentais em muitas cidades) e quase 50% abaixo do que gastou o Reino Unido (7,9% do PIB em 2015) cujo sistema de saúde foi uma referência inicial para o surgimento do SUS, assim como muito abaixo de vários outros países (conforme Tabela 1), nem todos com serviços de acesso universal.

Não se pode tratar da necessidade de aprimorar a gestão do SUS sem incorporar a necessidade urgente de romper com esse desfinanciamento, cuja retirada de recursos do SUS a partir de 2018 foi de R$ 22,5 bilhões considerando a execução orçamentária de 2018 e 2019 e os valores aprovados pelo Congresso Nacional na Lei Orçamentária de 2020.

Um dos conceitos de eficiência é a realização de muitos serviços com poucos recursos – sobre isso, não há dúvida que o SUS é eficiente: qual é o empreendimento privado e público de saúde no mundo, cujos serviços estão disponíveis para mais de 200 milhões de brasileiros, desde consultas básicas até exames de diagnósticos e cirurgias simples e complexas como transplantes, incluindo vigilância epidemiológica e sanitária e produção de vacinas e medicamentos, dentre outros, em unidades de saúde espalhadas em 5570 municípios num território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, alocando R$ 3,80 per capita por dia?

Apesar do governo federal, o SUS resiste e insiste em salvar vidas nesse cenário de pandemia, graças principalmente à força de vontade e competência dos trabalhadores do SUS e da maioria dos gestores estaduais e municipais.

Evidentemente, a pandemia da Covid-19 não fazia parte do planejamento orçamentário federal de 2020, o que exigiu a abertura de créditos extraordinários de R$ 60 bilhões para as ações e serviços de saúde no ano passado, dos quais R$ 20 bilhões nos últimos dias do ano exclusivamente para financiar vacinas e com o objetivo de “abrir espaço” orçamentário para execução dessa despesa em 2021: (i) como a maioria dos parlamentares do Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias quase que integralmente na versão originalmente encaminhada pelo Poder Executivo (a oposição ao governo Bolsonaro conseguiu bravamente aprovar algumas inclusões/alterações) e (ii) como uma das diretrizes aprovadas foi a volta do teto de despesas primárias da EC 95/2016, a abertura desse crédito no final do exercício de 2020 permitiu que ele fosse reaberto em 2021 – sem esse artifício, não haveria espaço orçamentário para financiar a saúde na pandemia para além do piso federal da EC 95/2016 (R$ 123,8 bilhões em 2021, valor correspondente em termos reais ao piso de 2017).

A proposta orçamentária de 2021 para as despesas federais com ações e serviços públicos de saúde foi reduzido para o valor do piso federal calculado pela regra da EC 95/2016 - é o valor do piso de 2017 atualizado somente pelo IPCA, ou seja, está menor em termos per capita em relação à 2017 e está mais de 40 bilhões menor que o de 2020 (desconsiderado aqui o último crédito extraordinário aberto de 20 bilhões para vacinas nos últimos dias do ano).

Em plena ascensão da pandemia da Covid-19, o Ministério da Saúde terá muito menos recursos que o de 2020 e dos anos anteriores para atender às necessidades de saúde da população, necessidades essas que não se restringem ao enfrentamento da Covid-19, caso o Congresso Nacional aprove o orçamento do Ministério da Saúde em R$ 123,8 bilhões – o Conselho Nacional de Saúde aprovou que o valor mínimo para a saúde no orçamento de 2021 deve ser de R$ 168,7 bilhões (conforme petição pública “O SUS merece mais em 2021”).

Essa associação da tragédia de Manaus com o problema estrutural do desfinanciamento federal do SUS causado pela EC 95/2016 precisa ser destacado, porque o governo federal não prorrogou o estado de calamidade pública e, com isso, encerrou a flexibilização das regras fiscais da Lei Complementar 173/2020. Sobre o fim do estado de calamidade pública, o Ministro Lewandowski (do Supremo Tribunal Federal/STF) deu um despacho liminar no final do ano de 2020, com o entendimento de que o atendimento às necessidades de Saúde para o enfrentamento da Covid-19 não poderia ser interrompido em 31/12/2020.

Mas, esse despacho do ministro do STF foi omisso quanto à questão fiscal - por exemplo, Estados, Distrito Federal e Municípios estavam com os pagamentos suspensos de parcelas de dívidas contraídas com a União, inclusive por meio de financiamentos para obras diversas junto à CEF. Essa suspensão (fixada também na LC 173/2020) terminou com o fim da calamidade pública em 31/12/2020 e as cobranças foram retomadas logo nos primeiros dias de 2021, com ameaça de execução da cláusula contratual de inadimplência (sequestro do Fundo de Participação dos Municípios/FPM no caso municipal e inclusão no Cadastro de Inadimplentes/Cadin, o que dificultará a obtenção de futuros financiamentos). Isso significa grave risco para financiar as ações de enfrentamento da Covid-19 pelos municípios – pagar parcelas de financiamento às instituições financeiras retira recursos (“asfixia financeira”) dos Estados, Distrito federal e Municípios para salvar vidas da população.

Além disso, há as PEC's 186, 187 e 188 que, entre outras coisas, propõem extinguir os pisos específicos da saúde e educação nas esferas federais, estaduais e municipais, criando um piso conjunto por meio da soma dos dois percentuais atualmente existentes. Isso vai manter o desfinanciamento federal do SUS e criar o desfinanciamento federal da educação, bem como ampliar esses desfinanciamentos nas esferas estaduais e municipais. É esse o modelo de estado mínimo que está avançando na implementação pelo atual governo, que por isso é responsável por essa crise em Manaus.

A questão do desfinanciamento federal do SUS e a questão da fragilidade fiscal dos Municípios (pois 67% da arrecadação tributária no Brasil são de tributos federais e 59% da Receita Disponível depois das transferências ainda ficam na União) estão associadas, uma vez que uma das diretrizes constitucionais do SUS é a descentralização das ações e serviços de saúde, com comando único em cada esfera de governo e financiamento tripartite, mas os recursos estão centralizados na esfera federal - 2/3 do orçamento do MS são transferências para Estados e Municípios, ou seja, o desfinanciamento federal do SUS atinge também Estados, Distrito Federal e Municípios.

A Frente Nacional de Prefeitos, a Associação Brasileira de Municípios e a Confederação Nacional de Municípios, dentre outras, devem articular essas duas questões com a revogação da EC 95/2016, o que pode ocorrer por meio da aprovação da PEC 36/2020 que tramita no Senado. Sem a unidade de governadores e prefeitos na defesa do direito à vida, de forma conjunta com as entidades e movimentos sociais e populares, bem como partidos políticos e parlamentares do campo progressista e de oposição, contra as ações e omissões do governo Bolsonaro que estão matando pessoas de todas as idades, o genocídio em curso se ampliará. Quem quer ser cúmplice disso?


Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde/ABrES (biênio dez/2020-nov/2022).




OUTRAS DOMINGUEIRAS