Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 02 - Janeiro 2021

Avaliação – A expectativa da visão de futuro (projetada para 31/12/2020) sobre o financiamento federal do sus não foi efetivada

Por Francisco R. Funcia


O objetivo desta breve nota é avaliar o cumprimento dos pontos destacados sobre a expectativa da visão de futuro projetada para 31/12/2020 sobre o financiamento do SUS, no texto que publicamos na Revista Domingueira da Saúde nº 02/2020, de 17/01/2020 (disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-02-janeiro-2020).

Para fazer essa avaliação, vamos retomar cada ponto destacado anteriormente e avaliar o que ocorreu até 31/12/2020:

1 – O Ministério da Saúde cumpriu a Constituição Federal, a Lei Complementar 141/2012 e a Lei 8142/90 e submeteu para análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde a mudança de critério de transferência fundo a fundo para Estados e Municípios em dois blocos de financiamento (custeio e investimento) estabelecidos pela Portaria 3992/2017, que dificultava a transparência e o papel legal de fiscalização dos conselhos de saúde em relação à aplicação desses recursos.

Avaliação: Não foi encaminhado pelo Ministério da Saúde (gestão dos Ministros Mandetta, Teich e Pazuello) em 2020 para análise e deliberação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e nem pactuado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), a mudança de critério de transferência financeira fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios. Também não houve encaminhamento para análise e deliberação do CNS em 2020 as mudanças pactuadas na CIT pela Portaria MS 3992/2017 (durante a gestão do Ministro Barros), que criaram dois blocos de financiamento em substituição aos seis blocos anteriormente pactuados (Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, Assistência Farmacêutica, Vigilância em Saúde, Gestão e Investimento), mantendo a situação de ilegalidade dessa Portaria.

2 – O Ministério da Saúde cumpriu a Constituição Federal, a Lei Complementar 141/2012 e a Lei 8142/90 e submeteu para análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde o novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde estabelecido pela Portaria 2979/2019 (Programa Previne Brasil), que ameaçava o cumprimento dos princípios constitucionais da universalidade, integralidade e equidade com a redução, decorrente desse modelo, da participação federal no financiamento do SUS (que já tinha caído de 73% para 43% desde 1991), no contexto do esgotamento da capacidade de ampliação da alocação de recursos próprios municipais (cuja participação já tinha aumentado de 12% para 31% desde 1991).

Avaliação: Não houve encaminhamento pelo Ministério da Saúde em 2020 (gestão dos Ministros Mandetta, Teich e Pazuello) para análise e deliberação do CNS as mudanças pactuadas na CIT pela Portaria 2979/2019 (Programa Previne Brasil, concebido pela gestão do Ministro Mandetta), o que caracteriza ilegalidade; a transição para esse novo modelo foi iniciado em 2020 para vigência plena a partir de 2021, cuja redução da transferência de recursos do Fundo Nacional de Saúde prejudicará o financiamento da atenção básica em muitos municípios brasileiros no contexto do esgotamento da capacidade de ampliação da alocação de recursos próprios municipais (a proporção da despesa municipal em relação à despesa pública consolidada é de 31%, enquanto a do governo federal é de 43%).

3 – O Ministério da Saúde cumpriu a Constituição Federal, a Lei Complementar 141/2012 e a Lei 8142/90 e submeteu para análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde o Plano Nacional de Saúde 2020-2023 e o capítulo saúde do Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, bem como evidenciou que a elaboração desses instrumentos contemplou as diretrizes aprovadas pela 16ª Conferência Nacional de Saúde realizada em agosto de 2019.

Avaliação: O Plano Nacional de Saúde (2020/2023) e o capítulo saúde do PPA 2020-2023 encaminhados (gestão do Ministro Mandetta) para a análise do CNS não contemplaram plenamente as diretrizes aprovadas pela 16ª Conferência Nacional de Saúde, o que caracteriza ilegalidade.

4 – O Ministério da Saúde realizou a gestão do SUS, inclusive nos seus aspectos orçamentários e financeiros, de acordo com o Plano Nacional de Saúde 2020-2023 e com o capítulo saúde do PPA 2020-2023 da União nos termos aprovados pelo Conselho Nacional de Saúde, bem como segundo as diretrizes para o estabelecimento de prioridades aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde na Resolução 614, de 15 de fevereiro de 2019, e em conformidade com a revisão de procedimentos apontados nos pareceres conclusivos do Conselho Nacional de Saúde que reprovaram os Relatórios de Gestão de 2016, 2017 e 2018, especialmente em relação a reincidência dos baixos níveis de liquidação de vários itens de despesas, aos elevados valores de restos a pagar e à redução dos valores empenhados (em termos per capita e como proporção da receita corrente líquida da União).

Avaliação: Os prazos para o Ministério da Saúde encaminhar o Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas (3º quadrimestre de 2020) e o Relatório Anual de Gestão 2020 são 28 de fevereiro de 2021 e 30 de março de 2021 respectivamente. A partir da análise desses relatórios, será possível avaliar o cumprimento desse ponto 4. Porém, a Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS apontou problemas na análise do RQPC (1º quadrimestre de 2020), estando em fase de análise o RQPC (2º quadrimestre de 2020).

5 – O Ministério da Saúde desenvolveu em conjunto com o Conselho Nacional de Saúde o desenho dos processos de trabalho, com os respectivos fluxos internos envolvendo esses dois órgãos, para a elaboração da Programação Anual de Saúde para 2021 e do capítulo saúde Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias da União para 2021, nos termos da diretrizes para o estabelecimento de prioridades para 2021 aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde, bem como adotou o mesmo processo conjunto para a elaboração da programação da saúde no Projeto de Lei Orçamentária para 2021, sendo que o PLDO e o PLOA foram submetidos à análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde previamente ao envio para o Congresso Nacional, em obediência à Constituição Federal, à Lei Complementar 141/2012 e à Lei 8142/90.

Avaliação: O Ministério da Saúde não tratou de nenhum dos aspectos citados com o CNS em 2020.

6 – O Ministério da Saúde voltou a aplicar em ações e serviços de saúde o mesmo percentual da receita corrente líquida empenhado em 2017 (15,77%) e reduziu o saldo dos empenhos a pagar no final do exercício para 5% do total empenhado conforme estabelece a Resolução 505/2015 aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde.

Avaliação: Os prazos para o Ministério da Saúde encaminhar o Relatório Quadrimestral de Prestação de Contas (3º quadrimestre de 2020) e o Relatório Anual de Gestão 2020 são 28 de fevereiro de 2021 e 30 de março de 2021 respectivamente. A partir da análise desses relatórios, será possível avaliar oficialmente o cumprimento desse ponto 6. Porém, a Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS apontou problemas na análise do RQPC (1º quadrimestre de 2020), estando em fase de análise o RQPC (2º quadrimestre de 2020). É oportuno destacar que houve crescimento significativo da despesa empenhada, liquidada e paga em 2020 em comparação aos anos anteriores como decorrência da Pandemia da Covid-19, mas a ampliação de recursos no Orçamento do MS ocorreu após abril e a execução orçamentária e financeira foi acelerada a partir de julho, muito depois do aumento significativo de casos e mortes por Covid-19.

7 – O Ministério da Saúde e a área econômica do governo submeteram no início do ano para análise e aprovação do Conselho Nacional de Saúde a disponibilidade orçamentária para empenhos e a disponibilidade financeira para liquidação e pagamento das despesas federais do SUS para cada um dos doze meses do exercício, bem como a necessidade de abertura de créditos adicionais e de remanejamentos orçamentários para esse fim, nos termos da Constituição Federal, da Lei Complementar 141/2012 e da Lei 8142/90.

Avaliação: O Ministério da Saúde não submeteu no início de 2020 (gestão do Ministro Mandetta), nem durante o ano (gestão dos Ministros Teich e Pazuello), para análise e aprovação do CNS a disponibilidade orçamentária para empenhos e a disponibilidade financeira para liquidação e pagamento das despesas federais do SUS. O Ministério da Saúde também não submeteu para análise e deliberação do CNS, e nem informou, os critérios adotados para definição dos valores de créditos extraordinários abertos em 2020 para o enfrentamento da Covid-19 nas modalidades “Aplicação Direta” (do MS), “Transferências para Estados e Distrito Federal” e “Transferências para Municípios”, assim como porque somente na primeira semana de abril e na terceira semana de maio houve aumento dos recursos para esse fim no orçamento federal da Saúde e porque somente a partir de julho foi transferida a maior parte dos recursos do orçamento para os municípios, muito depois do aumento significativo dos casos e mortes por Covid-19.

8 – O pleno do Supremo Tribunal Federal deliberou pela inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 95/2016 (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5658), significando o fim do teto de despesas primárias da União baseado nos valores pagos em 2016 e do piso federal do SUS congelado no valor de 15% das receitas correntes líquidas da União de 2017 (atualizado somente pela variação anual do IPCA/IBGE a partir de 2018).

Avaliação: Essa matéria não foi votada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020.

9 - O pleno do Supremo Tribunal Federal confirmou a liminar do Ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5565), que suspendia os dispositivos da Emenda Constitucional 86/2015 que provocava a redução do piso federal do SUS e desconsiderava a participação no resultado e compensação financeira devidos pela exploração de petróleo e gás natural como fonte de aplicação adicional ao valor do piso federal do SUS.

Avaliação: Essa matéria não foi votada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020.

10 – O Congresso Nacional exerceu o seu papel constitucional de independência como um dos Três Poderes da República sem vergar às pressões do Poder Executivo para votar favoravelmente às três Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) encaminhadas no final de 2019 e, com essa postura independente em prol do interesse da população, manteve em vigor as vinculações orçamentárias das áreas sociais, especialmente em relação aos pisos federais, estaduais e municipais da saúde e da educação de forma individualizada.

Avaliação: As PEC’s 186, 187 e 188 não foram votadas pelo Congresso Nacional em 2020, mas continuam tramitando com risco de serem aprovadas em 2021.

11 – A Câmara dos Deputados aprovou em segundo turno e o Senado em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 01-D, aumentando o piso federal do SUS para 19,4% da Receita Corrente Líquida de forma escalonada (durante sete anos) e injetando cerca de R$ 40 bilhões adicionais para o financiamento federal do SUS (com impactos positivos nos valores transferidos para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde).

Avaliação: A PEC 01-D não foi votada pelo Congresso Nacional em 2020.

12 – As bases de financiamento da Seguridade Social e do SUS foram ampliadas mediante a redução dos gastos tributários (ou redução da renúncia de receita, estimada em mais de R$ 300 bilhões anuais), a revisão da estrutura de tributação vigente no Brasil (reduzindo a não tributação de imposto de renda sobre os rendimentos dos mais ricos e reduzindo a tributação sobre a classe média e os contribuintes de baixa renda, reduzindo a tributação que incide sobre a produção e o consumo como o ICMS, ISS e o IPI e aumentando a tributação que incide sobre patrimônio, renda e riqueza, como o IPTU, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações) e a aprovação pelo Congresso Nacional da tributação sobre Grandes Fortunas e sobre Grandes Transações Financeiras.

Avaliação: Não houve nenhuma aprovação de projeto de lei pelo Congresso Nacional em 2020 para ampliar as bases de financiamento da Seguridade Social e do SUS mediante a redução dos gastos tributários, nem para uma reforma tributária que aumente a incidência sobre patrimônio, renda e riqueza (especialmente as grandes fortunas e as grandes transações financeiras) e reduza a incidência sobre produção e consumo.

13 - O Movimento “Saúde+10” coordenado pelo Conselho Nacional de Saúde em 2012 e 2013, que reuniu mais de 2,2 milhões de assinaturas auditadas para o Projeto Lei Complementar 321 (10% das receitas correntes brutas da União para o SUS) encaminhado ao Congresso Nacional, foi resgatado como fonte inspiradora da solidariedade e mobilização social ampla e com unidade para o conjunto de ações realizadas contra o desfinanciamento do SUS neste ano, como por exemplo no Fórum Social das Resistências/Fórum Social Mundial (de 21 a 25 de janeiro em Porto Alegre/RS), bem como para concretizar essa “visão de futuro”.

Avaliação: O Conselho Nacional de Saúde, as entidades da Reforma Sanitária e os movimentos de saúde ampliaram a capacidade de mobilização em prol da unidade de ação em defesa do SUS e em defesa de recursos adicionais para seu financiamento, especialmente na formação e atividades da “Frente pela Vida” e da petição pública “o SUS merece mais em 2021” para cobrar a ausência do governo federal no processo tripartite (com os governos estaduais e municipais) de coordenação nacional para o enfrentamento da Covid-19, inclusive para garantir “Vacinas Já para todos e todas”.

14 - “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (Geraldo Vandré).

Avaliação Final: Infelizmente, exceto o ponto 13, a visão de futuro apresentada nos outros 12 pontos não se concretizou no final de 2020. Por isso, em 2021, “vem, vamos embora, que esperar não é saber – quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (Geraldo Vandré). VIVA O SUS!


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).




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