Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 02 - Março 2015

A PEC 451, DE 2014 EM COLISÃO COM O DIREITO À SAÚDE E OS PRINCÍPIOS BASILARES DO SUS

Por Lenir Santos


Quando pensamos que contra o SUS já vimos tudo, concluímos que muito poderemos ver ainda. Não bastou o seu subfinanciamento originário e crônico; a sua não priorização pelos Governos desde 1990; a sua dificuldade de se organizar conforme determina a Constituição (27 anos); o centralismo federal; o descumprimento das normas dos critérios de rateio dos recursos entre os entes federativos; a judicialização, pêndulo que se movimenta mais em desfavor do SUS do que em seu favor, dentre outros problemas crônicos. Neste final de 2014 e inicio de 2015 tivemos duas derrotas que serão sentidas na garantia do direito à saúde em curto espaço de tempo.

A primeira, a PEC 368, hoje EC 86, de 2015, a qual dispõe sobre o orçamento impositivo e o percentual de recursos da União vinculado à saúde, o qual deveria ter como valor mínimo, o equivalente a 1o% de suas receitas correntes brutas e que ficou constitucionalizado em 15% das receitas correntes líquidas (em cinco anos), com grandes perdas para o orçamento da saúde. E a sua constitucionalização será um novo problema, uma vez que antes estava a cargo de lei complementar.

A segunda, a Lei 13019, de 2014, que abriu a assistência à saúde ao capital estrangeiro, numa afronta à vedação constitucional inserta no art. 199, § 3º, que proíbe tal participação, ainda que crie algumas exceções. Este artigo 141 da lei está sendo arguido de inconstitucionalidade pelas entidades de defesa do SUS.

Surge agora no cenário legislativo da Câmara Federal, a PEC 451, de 2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, alterando o art. 7º da Constituição, inserindo novo inciso, o XXXV, o qual obriga todos os empregadores brasileiros a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde, excetuados os trabalhadores domésticos. E não devemos nos esquecer de que para propor uma PEC há que se ter assinatura de 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. Não foram poucos os que a endossaram...

Sua justificativa é a de que o art. 196 da CF (garantia do direito à saúde) como norma programática que é, ou seja, de eficácia limitada, a qual dependeria de regulamentação que disponha sobre seus limites, poderá postergar esse direito ao trabalhador urbano e rural, ao qual deve ser garantido serviço de assistência médica como direito fundamental do trabalhador previdenciário. Apenas para lembrar, o STF já decidiu que a norma do art. 196 não é de eficácia limitada, mas sim imediata, assim como a maioria dos constitucionalistas nesse país; esse lema de eficácia limitada já passou. Mais uma página virada. Já temos 27 anos de Constituição e o SUS é uma realidade jurídica, política e social.

Tal proposta de alteração à Constituição gera uma antinomia jurídica por romper com o princípio consagrado no art. 196 que estatui ser a saúde um direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que reduzam o risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. De repente a saúde integral da Constituição se segmenta de forma absurda na PEC, tanto quanto ao seu usuário e quanto ao seu conceito.

Garantir planos de assistência médica ao trabalhador urbano e rural (nem se faz mais esta distinção) é revisitar o INAMPS em sua pior forma: um grande INAMPS privado , de operadoras e seguradoras de planos de saúde que garantiriam aos trabalhadores filiados ao regime geral da previdência social, assistência privada médica.

As aberrações políticas, jurídicas e sanitárias são tantas que se torna difícil expô-las de modo resumido, que é o nosso propósito neste texto. A primeira afronta é ao art. 196 da CF que garante o direito à saúde em seus mais abrangentes termos: qualidade de vida (fatores determinantes e condicionantes da saúde) e ações e serviços de proteção e recuperação da saúde. O primeiro mandamento refere-se às politicas sociais e econômicas que evitem o agravo à saúde, ou seja, que se permita que a saúde floresça sempre; o segundo, ações e serviços públicos de acesso universal e igualitário (a todo cidadão, sem distinção ) que proteja a sua saúde e a recupere quando agravada.

Garantir como direito fundamental do trabalhador previdenciário plano de saúde privado de assistência médica é voltar à velha luta de reduzir saúde à assistência médica, além de ferir o princípio da igualdade: saúde para todos, direito fundamental de acesso universal! É criar distinção entre cidadãos: trabalhador com vínculo de emprego; sem vinculo; não trabalhador, aposentado e assim por diante.

Essa discussão foi superada pela Constituição de 88, e teve como protagonistas dos debates, durante os anos 70-80, o movimento da Reforma Sanitária e os movimentos sociais que lutaram por um estado de bem estar social que garantisse saúde a todos! De forma universal e igualitária; saúde sem dicotomia entre o preventivo e o curativo centrado apenas no médico.

Se tal medida prevalecer haverá um SUS definitivamente segmentado, atrasado e arrasado, uma vez que quanto mais o segmentam por categoria de pessoas e modelo assistencial, mais pobre e precário ele resultará.

Além do mais há questões jurídicas relevantes a ser consideradas, como a da antinomia jurídica mencionada acima; a da inconstitucionalidade da proposta por ferir o disposto no art. 196 da CF que traz concepção de direito social e individual de acesso universal e igualitário de responsabilidade estatal; concepção de saúde que retoma o conceito do anterior Sistema Nacional de Saúde, da lei 6229, de 1975, revogado pela lei 8080, de 1990. Essa PEC é um retrocesso aos avanços sociais neste país, à diminuição das desigualdades; um caminho para transformar o SUS em serviços de cobertura universal . Trata-se sem dúvida de uma proposta constitucional inconstitucional.

Esse sistema inampiano, agora privado, é página virada na década de 80, não fazendo mais o menor sentido propor a redução do papel do SUS de garantia do direito à saúde público, universal e igualitário. Propor a sua fragmentação quanto ao acesso, uma vez que os trabalhadores terão plano privado para garantir parcialmente o seu direito à saúde, é retrocesso, atraso e desrespeito à Constituição. É mais uma tentativa de transformar o SUS num sistema complementar aos planos privados de saúde ; um sistema pobre para pobre, o qual cria categoria de cidadão e aprofunda as nossas já aberrantes desigualdades sociais. Mais uma?

A quem interessa tal mudança drástica na nossa Constituição e no nosso SUS? Não podemos nos esquecer do grave duo legislativo no apagar das luzes de 2014: baixo financiamento e abertura da assistência à saúde ao mercado nacional e internacional. Teremos a tríade: baixo financiamento, capital estrangeiro na assistência de planos de saúde, obrigatoriedade de todos os empregadores garantirem um plano de saúde para seus trabalhadores.

Com as emendas impositivas vamos retirar um percentual do orçamento da saúde – que já estava lá, não é novo – o qual deveria estar vinculado ao planejamento e plano de saúde, com metas, e ser transferidos aos entes federativos. Esse mesmo recurso que já pertencia aos entes federativos para financiar a sua saúde sai para retornar pelas mãos dos parlamentares aos seus donos originários, mediante escolhas e negociação e não mais pelos interesses de saúde da população consagrados nos planos de saúde.

E ainda os recursos do Pré-sal, que seriam um adicional, estarão incorporado aos valores mínimos da União, que nunca passam do mínimo, ainda que por piso não se possa compreender teto . Piso é base e teto é fim.

Na verdade, estão a solapar a maior política pública de justiça social do país: o SUS, universal e igualitário. A maior política inclusiva brasileira que chegou tarde e cedo querem retalha-la.



GASTO MÍMIMO EM SAÚDE DA UNIÃO E EC 86/2015: A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DA ESTAGNAÇÃO TENDENTE A RETIRAR A POSSIBILIDADE FÁTICA DE O DIREITO À SAÚDE PROGREDIR

Por Élida Graziane Pinto, Ingo Wolfang Sarlet


Não obstante a conquista de um novo piso para o gasto mínimo federal em saúde com a promulgação da Emenda Constitucional nº 86, de 17 de março de 2015, se verifica um justificado sentimento de perda entre os que defendem histórica e consistentemente a máxima eficácia e efetividade do direito à saúde no Brasil, tal como estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (art. 5, § 1º, c/c art. 6º e art. 196 e ss.) e pelos tratados internacionais de direitos humanos, com destaque para o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, que estabelece um dever de progressividade na realização, pelos Estados signatários, dos direitos consagrados no Pacto, incluindo o direito humano à saúde.

A aludida Emenda é oriunda da PEC 358/2013, também designada de “PEC do Orçamento Impositivo”, o que, de certo modo, auxiliou a impedir que fosse enfrentada, com seriedade e densidade, a raiz do subfinanciamento crônico3 da saúde pública brasileira.

Para além do complexo debate sobre as relações entre os Poderes Legislativo e Executivo dentro dos processos de elaboração, execução e controle do Orçamento Geral da União, fato é que a Emenda do Orçamento Impositivo esvaziou, direta ou indiretamente, o escopo da iniciativa popular que lastreou o Movimento Saúde +104, o qual consistentemente questionava o regressivo critério de gasto mínimo federal no setor (mera correção do gasto do ano anterior pela variação nominal do PIB).

A diferença entre a Emenda Constitucional (15% da receita corrente líquida federal, piso esse a ser alcançado de forma escalonada ao longo dos próximos 5 anos) e o citado projeto de iniciativa popular (10% da receita corrente bruta da União) não reside apenas nos porcentuais e nas bases de cálculo do quanto a União deveria ser chamada a verter em favor das ações e serviços públicos de saúde.

Além da redução drástica da equação5 de financiamento, o novo arranjo constitucional inscrito no art. 198, §§ 2º e 3º, incide fundamentalmente no horizonte de progressividade ou estagnação que se está a fixar para o avanço do SUS em nosso país. Isso porque o art. 3º da EC 86 determina que até mesmo os recursos oriundos da exploração do petróleo e gás natural sejam contabilizados como gasto mínimo da União, ao invés de operarem como acréscimos ao mesmo.

Trata-se de uma sutil, mas muito prejudicial reversão do regime6 conquistado após as manifestações de junho de 2013, segundo o qual seria destinado à saúde pública, em acréscimo ao patamar mínimo constitucional, o montante de 25% das receitas oriundas da exploração do pré-sal.
Hoje, ao invés de celebrarmos a vinda da EC 86/2015, estamos a quantificar perdas7, ademais de imprimir um ritmo menor aos avanços na conquista de novas fontes de recursos federais para o SUS, tal como implicado pela troca de critérios ora levada a efeito.

Nesse contexto, importa frisar que a vulnerabilidade fiscal dos direitos sociais, e, em especial, do direito à saúde, tem sido um óbice concreto à sua plena efetividade desde o raiar da Constituição de 1988, resultado de um conjunto de medidas e omissões que ora apenas tendem a se agravar.

Não se trata, portanto, de um cenário atrelado a determinado ciclo de governo, mas de um claro conflito distributivo entre direitos sociais e política econômica que segue fora do juízo de conformidade constitucional, por estar, em maior ou menor medida, resguardado pela falta de limites para as dívidas consolidada e mobiliária federais (a despeito do prazo fixado pelo art. 31 da LRF e dos comandos dos arts. 48, XIV e 52, VI da CR/1988), bem como por ser encoberto pela tergiversadora desvinculação de receitas da União – DRU, mantida há 21 anos por meio de norma excepcional e transitória no ADCT, que vem sendo prorrogada por meio de 6 (seis!) emendas sucessivas8. Que a própria utilização sucessiva de normas constitucionais transitórias para tal finalidade por si só já reclamaria uma análise do ponto de vista de sua legitimidade constitucional aqui não será avançado, mas representa um desafio a ser enfrentado.

Enquanto não discutirmos o custeio dos direitos sociais à luz da DRU9 e do custo do serviço da dívida pública federal10, prosseguiremos, em face de respostas pontuais e casuísticas e não devidamente analisadas e pactuadas, para um desarranjo sistêmico, cujo reflexo mais recente tem assumido a feição de volumosas ações judiciais na defesa do direito à saúde.

É preciso, pois, contextualizar a nova normativa à luz da histórica regressividade proporcional do gasto federal em saúde, a qual pode ser numérica e estatisticamente aferida à luz de qualquer dos seguintes quesitos de análise:
1) participação relativa da União no volume total de recursos vertidos pelo Poder Público ao SUS (caiu de 59,8% em 2000 para 44,7% em 2011, segundo estudo do IPEA11); 2) peso proporcional do gasto da União em saúde em face da sua própria receita global de 8% para 6,9% nos últimos onze anos12; 3) peso proporcional do gasto da União em saúde em face do total de recursos aplicados no Orçamento da Seguridade Social – OSS, o que corresponde ao critério de proporcionalidade estabelecido no art. 55 do ADCT (conforme noticia a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde – AMPASA 13).

Em face desse horizonte é que estamos a firmar a perspectiva de que o novo regime trazido pela EC 86/2015 deve ser lido em nosso ordenamento constitucional como piso que admite absorção de novos acréscimos, mas não como teto14 do gasto federal em saúde, tal como vinha ocorrendo com a regra fixada a partir da EC 29/2000.

Isso se impõe para que não voltemos a conviver com o cenário trágico de que, a despeito de haver dotação autorizada nas leis orçamentárias da União, o governo federal raramente gastava acima do piso em saúde, para não majorá-lo no ano seguinte15. O próprio Tribunal de Contas da União já havia apontado tal distorção nos autos do TC 032.624/2013-1 (R$20,4 bilhões não gastos de 2008 a 2013, a despeito de previstos).

Não é demasiado reiterar aqui que essa não é uma opção fiscal apenas do atual ciclo de gestão. Muito antes pelo contrário, a história revela uma trajetória de vulnerabilidade fiscal do direito à saúde durante o próprio processo de aprovação da EC 29/2000, durante a vigência atribulada da CPMF e mesmo ao longo da consolidação do SUS no pós-1988.

Precisamente porque se trata de problema longevo e sistêmico e porque já chegamos a quase três décadas de fixação do direito à saúde como direito fundamental do cidadão e dever constitucional inconteste do Estado brasileiro (o que tem dado causa a uma intensiva demanda social, inclusive em sede judicial), não podemos mais nos contentar apenas em contabilizar perdas e retrocessos no custeio constitucionalmente adequado das ações e serviços públicos de saúde.

Ora, eis o conjunto de razões que nos levam necessariamente a debater a necessidade de revisitar tanto o princípio da vedação de retrocesso, quanto as consequências do dever jurídico-constitucional de proteção e promoção da saúde. Nossa proposta, em face da EC 86/2015 e de todo o arcabouço jurídico que dá sustento ao dever estatal de assegurar um sistema único de saúde universal e integral, reclama que toda e qualquer ação ou omissão que estabeleça um patamar de proteção efetiva da saúde situado aquém da garantia de um mínimo existencial implique censura com base na proibição de proteção insuficiente. Além disso, tendo em conta o dever de progressividade na matéria, faz sentido também seja considerado retrocesso vedado constitucionalmente, além da extinção do arranjo protetivo do direito, a estagnação imotivada, bem como a interpretação restritiva que retire a possibilidade fática e jurídica de o direito fundamental à saúde ser realizado em caráter progressivo.

Eis o debate que necessariamente haveremos de travar quando, dentre outros aspectos, estivermos diante de quaisquer tentativas de prorrogação da DRU para além da sua vigência estipulada até 31/12/2015 pela EC 68/2011: afinal, quanto nos custará para assegurar a possibilidade de fonte de custeio progressivo do SUS manter a desvinculação de 20% dos recursos da seguridade social?

Assim, fica, desde já, a inquietação diante de um evidente retrocesso em matéria fiscal, no sentido de virmos a ter, em 2016, um “piso” de 13,2% da receita corrente líquida da União, que é histórica e proporcionalmente inferior aos 14% da RCL federal que eram gastos em 2000, quando promulgada a Emenda nº 29.

O que se está a descortinar, na quadra atual e de modo cada vez mais evidente, é a ocorrência de uma progressiva estagnação no que diz com o gasto federal em saúde pública, de modo a desnudar – ainda mais com o novo regramento introduzido pela Emenda nº 86/2015 – que o que deveria ser o piso em verdade sempre funcionou primordialmente como teto. Que o direito fundamental à saúde merece mais é algo que nos parece evidente e está na hora de abrirmos os olhos para tal fenômeno.

ANEXO 1 - LEGISLAÇÃO BÁSICA EM SAÚDE PÚBLICA – SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – VERSÃO 18.3.2015


Élida Graziane Pinto, Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, associada à Associação do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.
Ingo Wolfang Sarlet, Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).




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