Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 03 - Janeiro 2018

DA TRANSFERÊNCIA DOS RECURSOS DA UNIÃO, FUNDO NACIONAL DE SAÚDE, PARA ESTADOS E MUNICÍPIOS: PORTARIA nº 3.992, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2017

Por Lenir Santos


I – Retrospectiva sobre as transferências de recursos federais para a saúde

A Constituição confere competência a todos os entes federativos para cuidar da saúde, determinando quanto aos municípios, cooperação técnica e financeira dos Estados e da União (art. 30, VII). O financiamento da saúde e a necessária partilha de recursos orçamentários federais e estaduais, tanto quanto a cooperação técnica, são elementos fundamentais na organização e funcionamento do SUS, conceituado como um conjunto integrado de ações e serviços públicos de saúde.

Este artigo pretende debater a questão do financiamento, não sob a ótica de sua insuficiência, mas sim à luz do rateio federal e sua transferência, palco de inúmeras discussões e polêmicas desde o advento da Lei nº 8.080, de 1990 e da Lei nº 8.142, de 1990¹. Duas questões centrais foram objeto de acalorados debates entre o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde ao longo de quase 30 anos: a) a forma de transferência dos recursos da União para Estados e Municípios, que se pretendeu convenial, inicialmente e b) os critérios de rateio dos recursos.

Ainda que ambas as questões possam se confundir, são atos administrativos diferentes, tanto que o art. 35 da Lei nº 8.080, de 1990, refere-se a critérios para estabelecimento de valores a serem transferidos, enquanto a Lei nº 8.142, em seu art. 3º, estabelece a forma de repasse dos recursos rateados, tendo em 2012, a Lei Complementar nº 141, em seu art. 17, estabelecido novos critérios de rateio dos recursos federais e seu art. 18, a forma de transferência dos recursos rateados, que não foi alterada.

A polêmica sobre o financiamento tripartite do SUS se iniciou com o veto presidencial à Lei nº 8.080, de 1990, que ensejou a edição da Lei nº 8.142, de 1990. De todos os vetos, dois foram resgatados com a publicação desta última Lei: as transferências federativas de recursos e a participação da comunidade no SUS.

Ainda que a Lei nº 8.080, de 1990, dispusesse sobre os critérios de rateio dos recursos em seu art. 35, havia sido vetado o artigo que dispunha sobre as transferências obrigatórias da União para os demais entes da Federação, de forma direta e automática. Isso retornou no art. 3º da Lei nº 8.142, de 1990, tendo a própria Lei Complementar nº 101, de 2000, art. 25, disposto que os repasses do SUS são transferências obrigatórias e atualmente a Lei Complementar 141, de 2012, em seus artigos 13, § 2º e art. 18.

A Lei nº 8.142, de 1990, determinou que enquanto não fossem regulamentados por decreto os critérios de rateio, os recursos seriam transferidos pelo critério per capita tão-somente, o que jamais aconteceu. Hoje tal disciplina está revogada pela Lei Complementar nº 141, de 2012. As transferências e o critério de rateio começaram a ser debatidos, de forma muita polêmica, com a edição da Resolução nº 258, de 7 de janeiro de 1991, da Presidência do INAMPS, dispondo sobre a nova política de financiamento do SUS para o ano de 1991, que fazia tábula rasa de ambas as leis orgânicas da saúde.

A intenção da Presidência era editar a cada ano uma Norma Operacional Básica (NOB) para regulamentar as transferências do SUS. Ocorre que a referida NOB 01-91 não respeitava o disposto nas duas leis ordinárias aqui referidas, além de exigir convênio para as transferências, o que levou os entes federativos a se insurgirem fortemente contra tal regulamentação, que logo foi alterada² . A forma convenial, além de transformar o SUS num modelo cooperativo voluntário e não obrigatório, nos termos do art. 198, caput, da CF, não permitia o repasse de forma direta e automática do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os demais fundos de saúde e fracionava o montante dos recursos por categorias de procedimentos assistenciais remunerados por tabela. Isso fez surgir o Decreto nº 1.232, de 1994, regulamentando o art. 3º da Lei nº 8.142, de 1990; mais recentemente a Lei Complementar nº 141, de 2012, art. 18, dispôs sobre o tema.

A referida NOB de 1991 criou os sistemas de prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares: o Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) e o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS), introduzindo a sistemática inampiana de pagamento de serviços assistenciais ambulatoriais e hospitalares contratados do setor privado para os entes federativos; a partir daí as tabelas de procedimento utilizadas pelo INAMPS para pagamento do setor privado contratado, passou a orientar as transferências federais, sendo critério de rateio dos recursos, ao arrepio da lei, as informações de prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares e não o do art. 35 da Lei nº 8.080, de 1990³ .

Em 1992 foi editada a NOB 01/92 (Portaria nº 234, de 1992) que não chegou a ser implementada, tendo sido revogada pela NOB 01/93, Portaria nº 545, de 1993. E assim sucessivamente foram sendo editadas outras Normas Operacionais Básicas do SUS4 as quais tratavam das transferências da União para Estados e Municípios e os procedimentos necessários, como habilitação em condição de gestão, execução de programas federais, criação de per capita da atenção básica, incentivos etc.

As NOBs chegaram ao fim com a Portaria nº 399, de 2006, que deu origem ao Pacto pela Saúde, tendo sido editada a Portaria nº 204, de 20075 , a qual regulamentou a forma de transferência dos recursos federais para os entes federativos financiarem o SUS, instituindo cinco blocos de financiamento, alterada em 2009, pela Portaria nº 837 que criou mais um bloco, o de investimentos na Rede de Serviços de Saúde.

Essa norma definia a forma de transferência dos recursos financeiros que continuava fundo a fundo, com exigência de habilitação, adesão a programas, incentivos e tantas mais regras de uso do dinheiro e o quantum de cada ente, sem, contudo, observar o disposto no art. 35 da Lei nº 8.080, de 1990. Esse quantum da Portaria 204 continuou a resultar de séries históricas, de pagamento de procedimentos por tabela mediante o SIA-SIH e outras formas de incentivos à adesão a programas do Ministério da Saúde (MS).

Com a edição da Lei Complementar nº 141, de 2012, editada por força do disposto no art. 198, § 3º, da CF, ficou estabelecido que:

a) Parcela dos recursos da União – (FNS-MS) – serão transferidos aos demais entes da Federação e movimentados até sua destinação final, em contas específicas mantidas em instituições financeiras oficial federal;

b) Os fundos de saúde se constituem em unidade orçamentária e gestora dos recursos destinados às ações e serviços públicos de saúde;

c) Os recursos serão repassados de forma direta e automática do FNS-MS para os demais fundos de saúde, sob a modalidade de custeio e investimento, sendo o percentual cabível a cada ente federativo apurado mediante critérios de rateio, sem necessidade de convênio ou outros instrumentos congêneres; e

d) A necessidade de comprovação da existência de conselho e fundo de saúde em funcionamento e plano de saúde para as transferências interfederativas se processarem.

Os critérios de rateio, definidos pelo art. 17 da LC 141, devem ser aplicados para apuração dos valores a serem transferidos – ou seja, o quantum deve caber a cada ente federativo, competindo à Comissão Intergestores Tripartite (CIT) definir a modalidade de cálculo a qual deve ser aprovada no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e publicado anualmente pelo Ministério da Saúde, o montante de cada ente. O art. 18, por sua vez, disciplina como esse quantum será transferido, ou seja, de forma direta e automática, do FNS para os fundos estaduais, sem exigência de convênio e outros instrumentos congêneres, sob as categorias econômicas da despesa pública, custeio e capital.

O art. 35 da Lei nº 8.080, de 1990, conforme mencionado, tratou desse tema dispondo que “para o estabelecimento de valores a serem transferidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, será utilizada a combinação dos seguintes critérios...” tendo o art. 17 da Lei Complementar determinado que estes critérios (art. 35) também devem ser observados no rateio dos recursos federais. Isso nos leva ao entendimento de que as transferências federais para os demais entes federativos aplicarem em ações e serviços de saúde do SUS devem considerar que:

  1. a transferência será realizada de forma direta e automática do FNS para os demais fundos de saúde, em acordo as categorias econômicas de despesas da Lei nº 4.320, de 1964, custeio e capital (art. 18 da LC 141), as quais por sua vez devem observar os Programas de Trabalho do Orçamento Geral da União (OGU);
  2. o montante de recursos a ser transferido, o quantum que cabe a cada ente federativo, deve observar os critérios de rateio do art. 17 da LC 141;
  3. a aplicação dos recursos transferidos deve ser em ações e serviços de saúde, respeitadas as regras dos arts. 3º e 4º da LC 141 para efeito da contabilização do gasto mínimo em saúde 4. ; e
  4. a aplicação deve ser em conformidade às ações e serviços previstas nos planos de saúde dos entes federativos (art. 36, § 2º, da Lei nº 8.080) e as correspondentes programações anuais, para ambas as categorias de despesas: custeio e capital, devendo todas elas decorrer de planejamento integrado e ascendente6.

Como vimos, o art. 35 da Lei nº 8.080, nunca foi cumprido nesses 28 anos. O volume de recursos destinados às transferências federativas observava os critérios das normas operacionais e a partir de 2007, as da Portaria 204, hoje Portaria de Consolidação GM-MS nº 6, de 2017. Tais regras se fundavam em programas federais que deveriam ser cumpridos em minúcias (até quanto à placa de uma unidade de saúde), em acordo às portarias que as classificavam como incentivos financeiros vinculados ao cumprimento de determinadas regras; tabela de procedimento e outras. Estima-se que sejam mais de 800 formas de transpasse e aplicação de recursos7, em acordo aos programas ações definidos pelo Ministério da Saúde, vinculados aos seis blocos de financiamento da Portaria nº 204.

Os entes federativos debateram por anos a fio, em especial o Conasems, a necessidade de mudança dessas regras que precisariam passar a ser de acordo à lei e não mais o tormentoso processo de: a) gestão financeira de inúmeras contas e condicionantes; b) cumprimento de requisitos que não condiziam, muitas vezes, com as realidades locais; c) sujeição às auditorias que penalizavam de forma equivocada inúmeros gestores da saúde e muitas outras dificuldades trazidas por esse arsenal de normas, dentre elas, o do próprio domínio de seus conteúdos, dado o volume de regras editadas quase que diariamente8 .

II - A Portaria nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017

Em 28 de dezembro de 2017, foi editada Portaria nº 3.992, alterando a Portaria de Consolidação GM-MS nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre o financiamento e a transferência de recursos federais para as ações e os serviços públicos de saúde do Sistema Único de Saúde. Trata a Portaria da sistemática de transferência de recursos federais para os demais entes federativos financiarem ações e serviços públicos de saúde sob sua responsabilidade.

A Portaria trata tão-somente da forma de transferência dos recursos, uma vez que os critérios de rateio do art. 17 para fixação dos montantes de cada ente, não foram ainda objeto de discussão na CIT e CNS. Os valores alocados a cada ente federativo permanecem os mesmos, uma vez que a Portaria trata do modo de transferência e não da sistemática de apuração de montante de recursos que continuam pendentes.

São criados, em acordo ao art. 3º da Portaria, dois blocos de financiamento: a) o Bloco de Custeio das Ações e Serviços Públicos de Saúde e b) o Bloco de Investimento na Rede de Serviços Públicos de Saúde, com os recursos sendo transferidos de forma direta e automática do FNS para os demais fundos, em contas específicas de custeio das ações e serviços de saúde e de investimento na rede de atenção, abertas pelo próprio FNS em instituições financeiras oficiais e que serão realizadas em conta corrente única para cada bloco estabelecido.

Os recursos transferidos serão aplicados nos Programas de Trabalho do OGU para custeio ou para investimento e os planos de saúde dos entes federativos e sua programação anual deverão corresponder a esses programas de trabalho. Poderá ainda haver pactuação na CIT e ser editados outros regulamentos em situações como de emergência, prioridades sanitárias e outras.

Os Programas de Trabalho utilizados pelo FNS serão os previstos no OGU e seus valores, em princípio, devem ser em acordo às pactuações tripartites das ações e serviços públicos de saúde. Todas as ações previstas no plano de saúde dos entes federativos devem se encaixar em um desses programas de trabalho do MS: a) atenção básica; b) média e alta complexidade; c) assistência farmacêutica; d) vigilância sanitária e e) gestão do SUS, como já ocorria anteriormente, apenas que os recursos não mais serão depositados em contas individualizadas conforme as suas subfunções orçamentárias e seus desdobramentos, mas sim em conta única.

Poderão ser fixados compromissos e definidas normas específicas pelos dirigentes do SUS em suas esferas de governo para orientar o gasto com saúde9 das subfunções orçamentárias, os quais devem debater nas instâncias intergestores respectivas, as responsabilidades em relação às referências assistenciais na região de saúde. Essas pactuações podem ser de âmbito nacional, estadual, regional e as instâncias deliberativas serão sempre a CIT, CIB - Comissão Intergestores Bipartite e CIR - Comissão Intergestores Regional.

A vinculação dos recursos (custeio ou investimento) é válida até o termino do gasto, ainda que a sua utilização ultrapasse o ano do recebimento, com os recursos podendo ser aplicados no mercado financeiro em acordo ao previsto na mencionada Portaria e em outras normas específicas e seu rendimento aplicado nas mesmas finalidades do recurso transferido, ou seja, em custeio de atividades ou em investimento na rede em acordo ao Programa de Trabalho e sua categoria econômica, custeio e investimento, em acordo ao plano de saúde do ente federativo que deve consignar essas atividades.

Há condicionantes para o repasse dos recursos da União para os demais entes federativos, conforme determina a LC 141 que são fundo de saúde e conselho de saúde em funcionamento e plano de saúde. A Portaria acrescentou ainda o relatório de gestão anual e a necessidade de ser alimentados os sistemas de informações em saúde do Ministério da Saúde como condicionantes. Mesmo que as medidas acrescidas sejam relevantes e devam ser cumpridas pelos entes federativos no âmbito da gestão em razão de outras normas, elas estariam acrescendo as condicionantes para além das exigências que a LC 141 preconiza especificamente para os repasses.

Os recursos serão aplicados na manutenção dos serviços e no funcionamento dos órgãos e estabelecimentos de saúde responsáveis pelos serviços. Há vedações quanto à aplicação dos recursos, tanto de custeio como de investimento. O de custeio não pode ser aplicado para pagamento:
a) de servidores inativos;
b) de servidores ativos, exceto aqueles contratados exclusivamente para desempenhar funções relacionadas aos serviços previstos no respectivo Plano de Saúde;
c) gratificação de função de cargos comissionados, exceto aqueles diretamente ligados s funções relacionadas aos serviços previstos no respectivo Plano de Saúde;
d) pagamento de assessorias ou consultorias prestadas por servidores públicos pertencentes ao quadro do próprio Município ou do Estado; e
e) obras de construções novas, bem como ampliações e adequações de imóveis já existentes, ainda que utilizadas para a realização de ações e serviços de saúde.

Lembramos que se inserem nas despesas de custeio as destinadas a obras de conservação e adaptação de bens imóveis, nos termos do § 1º do art. 12 da Lei nº 4.230, de 1964. Pintura, conserto, troca de piso, como exemplos, estariam no conceito de conservação e adaptação. Contudo o art. 6º da Portaria ao definir a destinação dos recursos de investimentos dispôs que reformas e adequações deverão ser realizadas com recursos de investimento. Torna-se necessário maior clareza quanto ao conceito de adaptação e de adequação de bem imóvel. Muitas vezes uma pequena reforma poderá ser considerada como adaptação ou adequação de um bem, visando à sua melhor utilização ou recuperação, sem acrescer patrimônio.

Os recursos de investimentos pressupõem regras prévias de aplicação, que são:

a) aquisição de equipamentos voltados para a realização de ações e serviços públicos de saúde;
b) obras de construções novas utilizadas para a realização de ações e serviços públicos de saúde; e
c) obras de reforma ou adequações de imóveis já existentes utilizados para a realização de ações e serviços públicos de saúde, sendo vedada a utilização dos recursos com órgãos e unidades destinadas exclusivamente à realização de atividades administrativas.

Equipamentos para os serviços de saúde, como computadores, móveis, cadeiras poderão ser gastos dentro do bloco de custeio, desde que haja vinculação de capital, podendo assim ser adquiridos materiais permanentes como ocorria por exemplo, com o antigo bloco de atenção básica. O mesmo pode ocorrer no bloco de investimento que poderá prever custeio de ações.

Os recursos transferidos, de custeio ou investimento, podem ser acrescidos, em acordo a pactuação na CIT, para atender situações emergenciais ou de riscos sanitários e epidemiológicos, exigindo-se atos normativos regulando o repasse. Há regras específicas para os recursos de empréstimos internacionais que devem observar os acordos que os originaram.

As contas correntes serão abertas pelo FNS na Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. Os gestores dos fundos devem efetuar os registros necessários para a sua regularização e os fundos devem ter CNPJ e a natureza pública deve ser a 120.1 – fundo público. O desembolso dos recursos seguirá cronograma do FNS-STN.

O controle dos recursos se fará por todas as formas admitidas pela Lei Complementar 141, em especial, conforme destaque da Portaria nº 3.992, pela comprovação da aplicação dos recursos repassados pelo FNS por relatório de gestão anual, conforme preconizam as Lei nº 8.080, de 1990, Lei nº 8.142, de 1990 e LC 141. Lembramos que a Lei Complementar nº 141 determina aos entes federativos a elaboração de prestação de contas quadrimestrais, que devem ser submetidas aos conselhos de saúde correspondentes para aprovação, devendo ao final do ano ser encaminhada ao conselho de saúde respectivo; ao MS será encaminhado o relatório anual de gestão das ações e serviços de saúde para o controle da conformidade da despesa anual aos repasses realizados.

As análises dos relatórios de gestão pelo MS devem ainda subsidiar o aprimoramento das políticas de saúde, o que deveria sempre ter sido medida primordial, tendo em vista que o controle, na maioria das vezes, não atua em parceria ao processo de avaliação do desempenho da execução da política pública e ao planejamento. Essa é uma dívida do nosso sistema de controle e avaliação do SUS que precisa ser repensado e refeito para não apenas controlar burocraticamente papeis e procedimentos administrativos, mas também as finalidades da ação pública. Por sua vez, os conselhos de saúde precisam atuar mais firmemente nesse campo para apurar se a execução das políticas, além de estarem em conformidade ao programado, atendeu de modo adequado às necessidades de saúde das pessoas, com qualidade e em quantidade suficiente.

Reza o art. 1.150 da Portaria referida, que o FNS deve ainda tornar público em site oficial todas as informações a respeito das transferências, organizadas e identificadas por grupo de nível da atenção assistencial: atenção básica; média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar; assistência farmacêutica; vigilância em saúde e gestão do SUS, conforme série histórica. Essa identificação e organização das informações pelo FNS, em acordo à sua programação financeira, em nível de detalhamento maior que a funcional programática, não implicará vinculação orçamentária na aplicação destes recursos pelos entes recebedores.

Importante frisar que as vinculações orçamentárias continuam exatamente como sempre foram e devem refletir as ações pactuadas de governo federal. O que ocorre é a separação inequívoca do fluxo orçamentário do fluxo financeiro, fortalecendo os instrumentos de planejamento e de orçamento, flexibilizando o fluxo financeiro para permitir que o gestor possa gerenciar e aplicar adequadamente os recursos nas ações pactuadas e programadas e previstas em seu plano de saúde durante o exercício financeiro.

Essa identificação e organização do FNS em acordo à sua programação orçamentária, não implicam vinculação na aplicação financeira dos recursos pelos entes recebedores (plano financeiro), separando-se o plano orçamentário federal da execução financeira dos entes federativos, mas os recursos transferidos o serão em acordo as funcionais programáticas do orçamento do FNS e ao final, quando do Relatório de Gestão deverão os gastos serem em acordo às subfunções programáticas.

Os entes poderão durante o ano executar esses recursos de modo livre, desde que no final estejam em acordo às funcionais programáticas do FNS. Os recursos são transferidos em acordo as ações assistenciais anteriores (atenção básica, média e alta complexidade, assistência farmacêutica, vigilância sanitária e gestão do SUS) podendo ser utilizados de modo livre dentro dessas cinco funções, devendo ao final demonstrar que estão em acordo à programação orçamentaria do FNS. Em linguagem simples, os recursos saem orçamentariamente ‘amarrados’, são utilizados financeiramente de modo ‘desamarrado’, devendo ao final ser comprovado sua execução de modo‘amarrado’10.

As informações das transferências financeiras, mesmo mais detalhadas pelo FNS em seu sitio, não poderão gerar novas vinculações para os entes federativos, sendo a única exceção, conforme informação do FNS em apresentação disponível no site do MS11, a do FAEC (Fundo de ações estratégicas e compensação) que poderá ir além do plano orçamentário; lembramos também que na atenção básica, os recursos próprios dos agentes comunitários de saúde são obrigatórias em acordo ao disposto em lei específica.

Por fim, as vinculações orçamentárias serão em acordo às pactuações federativas, desde que consequentes ao Programa de Trabalho do OGU, sendo seu uso dentro desses limites programáticos de livre escolha do ente federativo, mas sempre em acordo ao seu plano de saúde e consequente programação anual. O que está sendo flexibilizado é o fluxo financeiro das ações e serviços públicos de saúde.

As informações fornecidas pelos entes federativos devem ser comprovadas quanto à sua realização mediante empenho e liquidação da despesa compatível com a realização da prestação do serviço à população (indicadores, metas etc.) e demonstrado que estão em acordo às subfunções programáticas do FNS. Nesse passo as prestações de contas quadrimestrais que os entes federativos apresentam aos seus conselhos de saúde, deveriam fazer parte do sistema de informações do MS, especificamente quanto à decisão final daquele conselho de saúde a cada quadrimestre. Haverá um sistema federal de informações para processar os relatórios de gestão, os quais poderiam conter dados sobre as prestações de contas quadrimestrais dos entes federativos em relação à sua apresentação ao conselho de saúde e sua aprovação.

Cabe ao órgão setorial do Sistema de Planejamento e Orçamento divulgar anualmente o detalhamento dos Programas de Trabalho das dotações orçamentárias consignadas ao MS objeto das transferências daquele ano para cada bloco de financiamento. Essa é uma atribuição da Subsecretaria de Planejamento e Orçamento do MS12.

Importante destacar a regra de transição em relação aos saldos financeiros das contas correntes vinculadas aos recursos federais transferidos em datas anteriores à edição da Portaria e organizados sob a forma de Blocos de Financiamento da Portaria nº 204, ora revogada, devendo ser observadas:
a) A vinculação dos recursos ao final do exercício financeiro com a finalidade de cada Programa de Trabalho do Orçamento Geral da União que deu origem aos repasses realizados; e
b) O cumprimento do objeto e dos compromissos pactuados ou previstos em atos normativos específicos referentes ao repasse da época. Os recursos transferidos sob a égide da Portaria 204 para custeio deverão ser entendidos como transferências para o Bloco de Custeio da Portaria 3.992.

Por sua vez, reza a Portaria que os recursos pendentes de repasse em relação às propostas e projetos de investimento com execução financeira iniciada em data anterior à Portaria, serão transferidos para as mesmas contas em que foram transferidas as parcelas anteriores.

Cabe ao MS manter os conselhos de saúde e os tribunais de contas informados sobre o montante de recursos previstos para as transferências da União para os entes federativos nos termos do § 3º do art. 17, LC 141, ainda que sob a égide da série histórica, ou seja, os mesmos valores, uma vez que os critérios de rateio ainda não foram aplicados para se apurar o montante dos recursos.

III - Considerações finais

  1. A nova forma de transferência dos recursos federais para a saúde avança no que diz respeito à flexibilização da gestão financeira pelos entes federativos no tocante aos recursos do bloco de custeio e financiamento; diminui, de algum modo, a ingerência federal nas questões regionais e locais da saúde, nem sempre feitas em acordo às necessidades locais; exige dos entes federativos, em especial municípios de pequeno porte, maior cuidado com a contabilidade do seus fundo que mais livre durante o ano, vai requerer agregação do gasto financeiro em relação às subfunções programáticas do FNS no final do exercício financeiro; exige do Ministério da Saúde maior atuação em áreas relevantes como controle e avaliação do SUS nacional, regional e local, planejamento nacional de longo prazo.

  2. Essa flexibilidade financeira dos entes federativos na aplicação dos recursos transferidos, por outro lado, deve motivar os entes federativos no aprofundamento da regionalização da saúde, com regiões de saúde sustentadas por planejamento regional, plano de saúde regional e fixação de responsabilidades regionais dos entes federativos, motivando ainda o Estado à assumir, de forma mais atuante, o seu papel de coordenador estadual do SUS, apoiando seus municípios, especialmente no tocante ao planejamento da saúde de forma integrada; aperfeiçoando os sistemas de referências; a informatização do registro de dados diagnósticos e terapêuticos dos usuários; orientação das escolhas alocativas dos recursos, sob o ponto de vista das necessidades de saúde local e regional, visando cobrir os vazios assistenciais e diminuir as desigualdades regionais, nos termos da LC 141.

  3. Não escapa a ninguém as fragilidades e distorções federativas, a baixa capacidade dos municípios de se desenvolveram; sua quase total dependência das transferências federais13, num arremedo de ente político dotado de autonomia federativa constitucional; contudo, isso não pode ser motivo para não cumprirmos as leis que exigem transferências diretas e automáticas aos entes federativos, devendo ser feitos todos os esforços pelo MS e Estados para a superação dessas dificuldades municipais, mediante fortalecimento do planejamento regional, estabelecimento de metas sanitárias, cobrança de planos de saúde condizentes com as necessidades de saúde da população, avaliação permanente. São muitos os impasses e dificuldades federativas, mas impõe superá-las na medida do possível. E o SUS deu muitos exemplos de boa atuação municipal na área da saúde.

  4. Outra questão relevante é a do critério de rateio do art. 17 da LC 141 para apuração do montante de recursos. Para a garantia de equidade federativa na distribuição dos recursos e afastamento de qualquer forma de compadrio e uso político na divisão dos recursos entre os entes federativos, impõe-se urgência na utilização de critérios legais para a definição do quantum cabe a cada ente. O Ministério da Saúde já avançou nesses estudos, que veem desde 2012, devendo como passo consequente à Portaria nº 3.992, prosseguirem os debates na CIT e no CNS.

  5. O subfinanciamento da saúde é presente e não se resolverá a curto prazo sem inclusive uma reforma tributária que combata as desigualdades sociais em suas fontes fiscais para onerar aqueles que mais têm e menos são tributados; há muito a caminhar nesse campo para atender de modo adequado as necessidades de saúde da população, não podendo a União isolar-se de sua responsabilidade para com o financiamento do SUS, quando os números mostram que os municípios e estados aumentaram a sua participação no financiamento ao longo dos anos, enquanto a União vem se retraindo, conforme demonstram as estatísticas14, com a União saindo de 71% em 1991 para 43% em 2014, enquanto os municípios passaram a aplicar 31% e os estados, 26% (2014).

  6. Não poderia deixar de comentar a polêmica a respeito da necessidade ou não de ser aprovada no CNS a nova sistemática de transferência de recursos. Entendo que do ponto de vista estritamente jurídico o que deve ser submetido à discussão e aprovação do CNS é o rateio dos recursos federais, nos termos do art. 17 da LC 141 que é o como apurar o montante a ser transferido aos entes federativos pelo FNS. O que talvez tenha originado essa polêmica é o fato de que os valores de cada ente, ainda que apurados ao longo desses 28 anos por outros critérios que não os das leis, sempre estiveram presentes nas normas que regraram as transferências.

  7. Outro aspecto a considerar é a judicialização da saúde que precisa reinterpretar a responsabilidade solidária dos entes federativos por diversos motivos, dentre eles, um bastante preocupante, em especial em relação aos tribunais superiores, o de isentar a União de responsabilidade na garantia do direito à saúde quando pleiteada sob a forma de prestação de serviços individualizado, com o argumento, que vem sendo defendido pela AGU, de que ao MS compete tão-somente realizar transferência de recursos, impondo-se ao ente recebedor a prestação dos serviços, numa visão redutora da abrangência do direito à saúde e das responsabilidades federativas tripartites. (Há decisão do TRF-1 a esse respeito que muita preocupação deve causar ao gestor do SUS15.

  8. Por fim, essas considerações são no sentido de aprofundamento da melhoria da gestão do SUS para aumentar as responsabilidades federativas com planejamento, plano de saúde, região de saúde e outras medidas administrativas, jurídicas e sanitárias e maior atuação dos conselhos de saúde em todas as esferas de governo quanto às escolhas alocativas quando da definição de prioridades dos planos de saúde nos termos da LC 141, planejamento local e regional, plano de saúde regional e local, região de saúde, redes de atenção à saúde e suas referências assistenciais e correspondentes compensação de gastos regionais por entes municipais e o controle e avaliação.


Lenir Santos, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp; e coordenadora do curso de especialização em direito sanitário do IDISA.

Referência bibliográfica:
Santos, Lenir: Da ilegalidade das normas baixadas pelo INAMPS para o financiamento o do SUS em 1991. Revista Saúde em Debate, 31, 1991.

Santos & Andrade: SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos. Campinas: Saberes Editora, 2009, 2ª edição


¹ A Lei nº 8.080, de 1990, ao regulamentar o SUS, pôs fim ao Convênio SUDS (Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde) instituído pelo Decreto Federal nº 95.861, de 1988, ainda que os convênios tivessem sido assinados em todo o território nacional, entre União e Estados, em 1987. Pelo convênio SUDS os recursos federais da saúde eram repassados aos estados de forma global, sob a categoria econômica de custeio e investimentos. A partir do Governo Collor tentou-se manter a modalidade convenial, tanto quanto fracionar os repasses em acordo aos procedimentos assistenciais realizados pelos entes federativos, fim dos repasses globais vinculados a programação integrada dos entes estaduais.
² Ver artigo de Lenir Santos: Da ilegalidade das normas baixadas pelo INAMPS para o financiamento o do SUS em 1991. Revista Saúde em Debate, 31, 1991.
³ Para conhecer mais, consultar a obra de SANTOS & ANDRADE: SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos. Campinas: Saberes Editora, 2009, 2ª edição.
4 A NOB 01-96; a NOAS 2001; a NOAS 2002; e o Pacto pela Saúde.
5 Hoje revogada e inserta na Portaria de Consolidação GM-MS nº 6, de 28 de setembro de 2017, artigos 1º e seguintes que por sua vez foi alterada pela Portaria nº 3.992, de 2017.
6 Planejamento integrado e ascendente decorre as diretrizes estabelecidas pelas Conferencias Nacionais de Saúde, resultante de um conjunto nacional de conferencias municipais e estaduais de saúde.
7 Dado veiculado pelo Ministério da Saúde durante dos debates que se processaram sobre a mudança da forma de transferir recursos federais para os entes federativos.
8 Essas portarias – mais de 700 de caráter normativo, dentre mais de 17 mil portarias examinadas, do Gabinete do Ministro, foram consolidadas em seis Portarias de Consolidação, de nº 1 a 6, publicadas em 28 de setembro de 2017.
9 Importante ressaltar que o Decreto nº 7.508, de 2011, dispõe sobre o contrato organizativo de ação pública da saúde como instrumento de pactuação das responsabilidades regionais dos entes federativos. O Decreto continua em vigor e é de cumprimento obrigatório, devendo os entes federativos, em especial os Estados, coordenarem essa discussão para firmar compromisso quanto às responsabilidades regionais de entes municipais, as responsabilidades do próprio Estado na região de saúde e os da União.
10 Outro exemplo seria: uma mãe recebe a pensão de seus cinco filhos em cinco contas separadas e tem obrigações de gasto com saúde, educação, alimentação etc.; ela passa a receber os recursos em uma conta única pessoal e pode utilizar durante o ano conforme for o seu planejamento e seu plano de gasto; contudo ao final terá de prestar contas demonstrando que gastou os recursos com educação, alimentação, saúde conforme seu plano de gasto.
11 www.portal.saude.gov.br
12 A Secretaria divulgou em publicação deste ano, janeiro de 2018, o detalhamento mencionado.
13 Dados recentes do Tesouro Nacional (Boletim BSPN, 2017) demonstram o alarmante nível de dependência dos municípios em relação às receitas orçamentárias de transferências federativas; 81.98% dependem dessas receitas, com 1.81% dos municípios independentes. www.tesouro.naciona.gov.br.
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15 Decisão recente do TRF-1 a respeito de discussão sobre a responsabilidade de ente municipal para com o custeio de serviços de alto custo, que eximiu a União de responder pelas despesas pleiteadas sob o fundamento de que o MS já havia repassado recursos ao Município que no âmbito de suas atribuições não se inseriam serviços de alto custo. Ver artigo Lenir Santos. Domingueira da Saúde, IDISA, 2017: Judicialização da saúde: é preciso rever a responsabilidade solidária. Artigo também publicado na Revista Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2017.





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