Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 04 - Janeiro 2022

Índice

  1. Que outra tragédia precisaremos para o governo deixar de sequestrar recursos do SUS? Só em 2022, R$ 11,6 bi! - por Bruno Moretti, Carlos O. Ocké-Reis e Francisco R. Funcia

Que outra tragédia precisaremos para o governo deixar de sequestrar recursos do SUS? Só em 2022, R$ 11,6 bi!

Por Bruno Moretti, Carlos O. Ocké-Reis e Francisco R. Funcia


Em meio ao enfrentamento da pandemia e aos ataques do governo à vacina, EC 95 continua retirando bilhões do SUS em 2022

Após a crise de 2008, economistas tradicionais passaram a reconhecer o papel da política fiscal como instrumento de estabilização econômica.

Esta mudança se deu no contexto de estagnação e baixas taxas de juros nos países desenvolvidos, de modo que a política monetária se tornou ineficaz para garantir a recuperação das economias.

Desde então, houve amplo debate sobre o desenho de arcabouços fiscais, culminando em propostas de maior flexibilidade nas regras para que o gasto público pudesse funcionar como elemento de suavização dos ciclos econômicos.

Com a pandemia da Covid-19, observou-se crescimento das dívidas públicas e foram acionadas cláusulas de escape, com suspensão de regras fiscais.

Diversos países estão prevendo crescimento do gasto público no “pós-pandemia” para dotar o Estado de capacidade de resposta tendo em mente os desafios da retomada e o aumento da desigualdade.

No Brasil, o Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, introduziu limite de gasto que corrige a despesa primária pela inflação passada.

Na contramão do debate em curso, o teto é uma regra que, independentemente da arrecadação, determina redução da despesa em relação ao tamanho da economia até 2036.

Para garantir o ajuste ao teto, um dos instrumentos foi o “congelamento” do valor mínimo obrigatório de saúde.

A regra da EC 95 previu que o piso de recursos do setor seja dado pelo valor mínimo de 2017, acrescido da inflação.

Anteriormente, a regra determinava aplicação em saúde de, pelo menos, 15% da Receita Corrente Líquida – RCL de cada exercício.

Defensores da austeridade fiscal alegam que o Estado está “quebrado”.

O argumento sequer faz sentido: o Brasil é endividado fundamentalmente em moeda local, sendo capaz de rolar sua dívida por meio da substituição de títulos antigos por novos, não possuindo as restrições típicas de países com elevada dívida externa.

A União, como ente monetariamente soberano capaz de emitir títulos liquidados na moeda do país, não enfrenta restrições orçamentárias comuns às famílias.

Dadas as incertezas relacionadas à covid-19, quais seriam, portanto, os limites para se ampliar o gasto público?

A resposta a que se chega, sobretudo diante da recente subida da taxa de juros pelo Banco Central (Bacen), que não ataca os determinantes da inflação do lado da oferta e sobrecarrega os encargos financeiros da dívida pública, é que tais limites são artificiais, impostos por regras fiscais como o teto de gasto e o resultado primário.

A experiência brasileira de 2020 é útil para compreender a questão. Para responder à pandemia, houve suspensão das regras fiscais e ampliação dos gastos em R$ 524 bilhões. O déficit primário do governo central foi de 10% do PIB.

Diante da recusa do mercado em comprar títulos à determinada taxa, o Tesouro usou seu caixa para resgatar títulos e financiar ações emergenciais. O resultado foi uma injeção de liquidez na economia, levando a autoridade monetária a fazer dívida para enxugar o excesso de reservas bancárias.

Em 2021, a retomada do teto inviabilizou a programação de valores no orçamento federal para o combate à pandemia, levando à edição de créditos extraordinários “a conta gotas” durante o exercício, não contabilizados no teto.

A resiliência da tese da austeridade implicou a paralisação do auxílio emergencial no primeiro trimestre de 2021, mesmo com o recrudescimento da pandemia.

Para 2022, a necessidade de ampliação de gastos em ano eleitoral levou o governo a propor a limitação do pagamento de precatórios e a alteração da fórmula de cálculo do teto para acrescer R$ 113 bilhões a despesas previstas no projeto de orçamento. Em consequência, adiando para futuros governos o pagamento de encargos que deveriam ocorrer em 2022.

A mudança casuística na fórmula de cálculo do teto de gastos em ano eleitoral ampliou em cerca de R$ 70 bilhões as despesas.

O dinheiro que havia sumido voltou em contexto macroeconômico mais adverso?

Para a saúde, a mudança na fórmula da correção do teto, também aplicável ao piso do setor, adicionou R$ 5,5 bilhões em relação aos gastos previstos no projeto orçamentário, cuja alocação adicional de recursos não foi submetida à aprovação do Conselho Nacional de Saúde.

Ademais, foram ampliados recursos no orçamento da saúde referentes às emendas de relator.

Ainda assim, o congelamento do piso de aplicação de saúde reduz o orçamento do SUS em R$ 11,7 bilhões em 2022.

Além da perda de recursos, cerca de R$ 8 bilhões do orçamento de saúde em 2022 estão comprometidos com emendas de relator.

Tais emendas são executadas em desacordo ao planejamento ascendente legalmente estabelecido para o SUS e sem atender a critérios sanitários mínimos, constituindo um instrumento fisiológico para formação de maioria política no Congresso Nacional.

Sequer há transparência sobre os parlamentares que demandam tais recursos por meio das emendas de relator.

A tabela 1 mostra o impacto do congelamento do piso de saúde, retirando R$ 29 bilhões do orçamento federal do SUS desde 2018.

Para os anos de 2020 e 2021, foram autorizados gastos extraordinários não contabilizados no teto de gastos, razão pela qual retiramos os referidos exercícios da análise do impacto da EC 95 sobre o SUS.


Fontes: Siop, LOA e STN. Para 2018 e 2019, valores empenhados. Para 2022, LOA. Elaboração própria.

Considerando que cerca de 2/3 do orçamento do Ministério da Saúde são transferências para Estados, Distrito Federal e Municípios, a EC 95 tem impactado negativamente também a capacidade de financiamento do SUS por essas esferas governamentais, à luz da diretriz constitucional da gestão descentralizada com financiamento tripartite.

Em meio à pandemia de covid-19, ao caos sanitário e ao ataque do governo à vacina, resultando em quase 620 mil óbitos, o que mais precisaremos assistir para reverter o sequestro dos recursos do SUS?

O presente artigo é uma versão modificada e atualizada com os dados da lei orçamentária anual do texto disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/observatorio-banco-central/teto-de-gastos-as-restricoes-artificiais-ja-retiraram-r-37-bilhoes-do-sus/.


Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em Economia pela UFRJ e doutor em Sociologia pela UnB.

Carlos O. Ocké-Reis é economista, mestre e doutor em Saúde Coletiva pela UERJ. Pesquisador do Ipea.

Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP, professor e doutorando da USCS, vice-presidente da ABrES e Secretário de Finanças de Diadema desde jan/2021.


Fonte: Artigo publicado em Viomundo, 04 de janeiro de 2022.




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