Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 05 - Fevereiro 2019

A ATENÇÃO BÁSICA NO SUS E AS PEDRAS NO SEU CAMINHO

Por Áquilas Mendes


Resumo. Este artigo discute as principais pedras (problemas) que a Atenção Básica em saúde se deparou no seu caminho ao longo dos 30 anos de existência do SUS. Dentre eles, são destacados dois. O primeiro diz respeito ao afastamento da concepção original de atenção primária instituída na Conferência de Alma – Ata, em 1978, e o segundo refere- se ao seu problemático financiamento federal que nunca foi orientado pelo princípio de necessidades em saúde.

Introdução
O poeta Carlos Drummond de Andrade, em um dos seus poemas mais célebres, que entrou para a história da literatura brasileira, ao referir sobre os obstáculos que surgem na vida do sujeito, expressando de maneira inspiradora as profundas inquietações que atormentam o ser humano, enfatiza a simbologia da figura de uma pedra que se cruza no seu caminho. Andrade insiste na repetição e redundância do surgimento desse obstáculo: a pedra. Diz ele:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.¹

As pedras mencionadas nesta poesia referem -se aos obstáculos ou problemas que as pessoas encontram na vida, sendo esta compreendida como um caminho. Essas pedras impedem a pessoa de seguir o seu caminho, isto é, avançar na vida.

Essa poesia pode ser utilizada como uma analogia às pedras (problemas) que a Atenção Básica em saúde vem encontrando no seu caminho ao longo dos 30 anos de existência do SUS. Destacam-se, principalmente: o afastamento de sua concepção original e o seu problemático financiamento.

Ainda que os integrantes do campo da saúde coletiva estejam incomodados com a nova Política Nacional da Atenção Básica–PNAB 2017, é importante reconhecer o que veio acontecendo na história recente da Atenção Primária à Saúde e do SUS.

No mundo, o pro cesso de desconstrução do conceito de atenção primária não é recente. É importante lembrar que, na Conferência de Alma Ata, em 1978, reafirmou-se a promoção e proteção da saúde dos povos como fundamento do contínuo desenvolvimento econômico-social, qualidade de vida e para a paz. Naquele momento, cunhou-se o conceito de cuidados primários de saúde que permitiria que todos os povos do mundo atingissem um melhor nível de saúde.2 A abrangência desse conceito incluía a perspectiva marxista da Promoção da Saúde como intervenção nas condições de vida e trabalho (e, portanto, de ‘Determinação’ Social do Processo Saúde-Doença).3 Contudo, diferentemente disso, foi dado ênfase à compreensão de manutenção de salubridade dos corpos advindos da influência da Medicina Social Francesa.4 Essa concepção de promoção se adequou ao capitalismo global com a retórica da ênfase nos determinantes , sendo algo alheio ao modo de produção capitalista, sugerindo que visões fragmentadas de suas formas de financiamento e rateio fizessem mais sentido na operação de suas ações.

A Declaração de Astana, de outubro de 2018, se afasta completamente da concepção original por ocasião dos 40 anos da Conferência de Alma-Ata, à medida que um dos seus eixos estruturantes se refere à Cobertura Universal de Saúde–CUS. O CUS perverte o direito à saúde restringindo-o à lógica financeira do funcionamento dos Sistemas de Saúde, apoiado numa proposta neoliberal, orgânica ao capitalismo. Ao contrário, a Atenção Primária em Saúde–APS deve ser compreendida como direito de todos e dever dos Estados, sendo assegurada a partir de Sistemas Universais e Públicos de Saúde.

Particularmente, no Brasil, o conceito de atenção primária esteve em intensa disputa mesmo sob governos intitulados progressistas.5

Compreendemos que sem um resgate acerca de uma reflexão crítica radical do conceito de Atenção Básica, retornando ao seu sentido originário referente aos cuidados primários em saúde e ao enfrentamento à determinação social da saúde, é praticamente difícil conduzir uma discussão mais aprofundada sobre as bases de seu financiamento no SUS.

Para se ter uma ideia desse problemático financiamento, os recursos financeiros federais transferidos para a Atenção Básica foram de R$ 21,6 bilhões em 2017, contra R$ 20,6 bilhões em 2016, o que representou um crescimento nominal de 2,88%, abaixo do crescimento anual do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo –IPCA, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –IBGE de 2,95%. Essa diminuição já foi constatada entre 2014 a 2016, quando o montante de recursos federais transferidos à Atenção Básica reduziu em 8,2%.6 Assim, a Emenda Constitucional –EC 95/2016, que congelou o gasto público para os próximos 20 anos, indicou constrangimentos para a saúde da população já no primeiro ano de sua vigência.

Além disso, a lógica dos critérios de transferência dos recursos federais não foi modificada em termos de serem orientadas por necessidades em saúde, mesmo que o artigo 17 da Lei Complementar 141/20127 indique tal alteração. Nem a introdução da Portaria do MS nº.992/2017,8 que substituiu os seis blocos de financiamento por apenas dois (custeio e investimento) mudou os critérios de rateio. Esses continuam baseados, na sua maioria, em produção de serviços guiados pela série histórica de gasto e incentivos financeiros conforme a implantação de ações e serviços de saúde. Esse quadro não é diferente mesmo quando se discute o financiamento da Atenção Básica à Saúde.

Neste sentido, reforçamos a ideia-chave de que o modelo de atenção em saúde deve orientar o processo de financiamento. Se na criação Sistema Único de Saúde –SUS foi destacado a Atenção Primária, esta deve necessariamente ser orientada por um financiamento compatível à sua expressão conceitual mais ampla.

Na operacionalização da Atenção Básica, particularmente a partir de 2004, com a introdução do Programa Estratégia de Saúde da Família, a integralidade sempre foi um desafio a ser conquistado. Contudo, seu financiamento, desde esse ano, foi sempre orientado pela fragmentação, isto é, por incentivos financeiros –o Piso da Atenção Básica– PAB) Variável –que estimulavam os municípios a criarem programas que lhes adicionassem receita financeira, reforçando o aumento de poder do gestor federal na indução da política de saúde. Deve ser acrescido que essa lógica de incentivos financeiros reforçou e ainda reforça a ideia restrita de Atenção Básica ao ponto de se introduzir a PNAB 2017 com riscos potenciais para a Atenção Básica. Salientam-se: a relativização da cobertura, segmentação do cuidado (por meios de padrões básicos e ampliados de serviços), o retorno à atenção básica tradicional e a fusão das atribuições dos agentes comunitários de saúde com a dos agentes de controle de endemias. Dessa forma, assiste-se ao enxugamento da Atenção Básica não apenas na ordem do discurso, mais também em sua concepção e financiamento.

Não é de estranhar, portanto, que na trajetória histórica de redução da concepção de Atenção Primária nunca se conseguiu implantar uma forma de alocação dos recursos federais, especialmente para a Atenção Básica, que se orientasse por critérios de rateio com base em necessidades em saúde.

Assim, reiteramos a ideia que se não forem removidas as Pedras no caminho da Atenção Básica, alterando os critérios de rateio e a concepção limitada em que ela se encontra, certamente seu refinanciamento – em decorrência dos malefícios impostos pela EC 95, desfinanciando o SUS – os problemas se intensificarão, com resultados diretos na atenção à saúde da população.

Referências
1.Andrade CD. No meio do caminho. Rev Antropofagia (São Paulo).1928 jul.;1(3).
2.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2002.
3.Vasconcelos KEL, Schmaller VPV. Promoção da saúde: polissemias conceituais e ideopolíticas. In: Vasconcelos KEL, Costa MDH, organizadores. Por uma crítica da Promoção da Saúde: contradições e potencialidades no contexto do SUS. São Paulo: Hucitec; 2014. p.47-110.
4.Focault MO. Nascimento da Medicina Social. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1984. p.121-140.
5.Mendes Á, Carnut L, Guerra L. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saude Debate. 2018;42(n. spe 1):224-43. http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042018s115.
6.Funcia F. Transferências financeiras do fundo nacional de saúde para estados e municípios em 2017: efeitos da limitação de pagamentos imposta pelo teto de despesas primárias da emenda constitucional 95/2016 e evidência dos riscos da portaria MS 3992/2017. Rev Domingueira Saúde. 2018[acesso em 2018 junho 16];(17). Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-17-junho-2018.
7.Mendes A, Marques RM. A Dimensão do financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no contexto do SUS. In: Souza MF, Franco MS, Mendonça AVM, organizadores). Saúde da família nos municípios brasileiros: os reflexos dos 20 anos do espelho do futuro. 1aed. Campinas: Saberes Editora; 2014.p. 458-517. (Vol. 1).
8.Brasil.Ministério da Saúde.Portaria nº 3992, de 28 de dezembro de 2017. Altera a Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços públicos de saúde do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF:Diário Oficial da União,2017dez. 29.Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3992_28_12_2017.html.

Artigo Publicado em Journal of Management & Primary Health Care


Áquilas Mendes, Professor Doutor Livre -Docente de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública –FSP, Universidade de São Paulo – USP. Professor do Programa de Pós - Graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –PUCSP.





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