Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 05 - março 2023

Índice

  1. Saúde mental: um tributo ao SUS e a Campinas - por Carmino de Souza e José Pedro Soares Martins

Saúde mental: um tributo ao SUS e a Campinas

Por Carmino de Souza e José Pedro Soares Martins


Foto: Divulgação Cândido Ferreira, um dos prédios do Museu Vivo: centro referência em Campinas

Enquanto estava sendo escrita a nova Constituição brasileira, que no setor da saúde resultaria na consagração das teses defendidas pelo movimento da reforma sanitária e que desembocaria na criação do SUS, também evoluía uma outra mobilização, que se tornaria igualmente vitoriosa.

Era a luta por uma completa revolução na área da saúde mental, historicamente marcada por tristes episódios de violência, de enorme crueldade contra os portadores de distúrbios, tendo os manicômios como a mais tenebrosa imagem. O movimento antimanicomial brasileiro foi muito influenciado pelas ideias do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que conduziu experiências pioneiras na década de 1960 nas cidades italianas de Trieste e Gorizia.

Basaglia propunha novos métodos de terapia para os pacientes, buscando a sua completa reintegração social, com o fim da sua institucionalização, na realidade, de sua reclusão em verdadeiros centros de horror que eram os manicômios, durante séculos. Desde 1973 a própria OMS passou a recomendar as novas abordagens propostas pelo psiquiatra italiano.

Um fato marcante na trajetória do movimento antimanicomial brasileiro foi o relatório divulgado em 1978 por profissionais da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam) do Ministério da Saúde, denunciando as péssimas condições na grande maioria dos hospitais psiquiátricos do país. O resultado foi que grande parte desses profissionais foi demitida.

Em 1979, entretanto, foi criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que a partir de então foi um dos grandes protagonistas do movimento antimanicomial que caminhava de forma paralela ao movimento da reforma sanitária, com o mesmo sentido de considerar cada brasileiro como cidadão merecedor da melhor atenção pública em saúde possível.

A Lei 10.216 garante tratamento equitativo a qualquer brasileiro e afirma, em seu artigo 3º, ser “responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais”.

Como resultado da Lei 10.216, em 2002 o Ministério da Saúde determinou a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Seriam os espaços de acolhimento dos pacientes de saúde mental, em condição extra-hospitalar. A intenção era a desativação progressiva dos hospitais psiquiátricos ainda existentes, nas condições de tratamento institucional.

O tratamento de pacientes com quadro clínico agudo, por sua vez, passou a ser feito com a disponibilização de leitos em hospitais gerais. Pesou na aprovação final do projeto, e na vitória de boa parte do que vinha defendendo o movimento antimanicomial, a experiência prática vivenciada em algumas instituições brasileiras, que já vinham, antes da consagração em lei, executando processos de desinstitucionalização.

Um desses casos, devidamente reconhecido, foi o do Centro Cândido Ferreira, de Campinas. O caso de Campinas: No dia 17 de abril de 1921 foi lançada a pedra fundamental da instituição originalmente intitulada Hospício de Dementes e que depois seria batizada de Sanatório “Dr. Cândido Ferreira” (entidade centenária).

Em 1990 começava a experiência dos tempos modernos com a Casa Primavera, um ensaio de inserção social, onde pacientes do Cândido Ferreira viviam fora dos muros da instituição. Os pacientes temiam “trocar o certo – hospital – pelo duvidoso – moradia”, como descrito no artigo “Viver em Casa”, do Caderno de Textos da III Conferência Nacional de Saúde Mental (Brasília, 2001). A experiência da Casa Primavera se consolidou e outras ações na linha da humanização prosseguiram. O propósito final, a desinstitucionalização.

Passo a passo, os moradores do distrito de Sousas, onde está localizado o Cândido Ferreira, passaram a testemunhar e progressivamente apoiar as mudanças promovidas na instituição. Em 1994, começou a sair no Carnaval de Sousas o “Bloco do Candinho”, com internos do Cândido. Outra inovação foi a Rádio Maluco Beleza, que teve seu estúdio inaugurado em 2010, quando já estava mais avançado o processo de desinstitucionalização.

A consagração da experiência do Cândido Ferreira, e da rede de saúde mental em geral em Campinas, com a importante participação da Unicamp, viria em junho de 2021, com o lançamento pela Organização Mundial da Saúde do “Guia sobre serviços comunitários de saúde mental – Promovendo abordagens centradas na pessoa e baseadas em direitos” (“Guidance on community mental health services: Promoting person-centred and rights-based approaches“).

Na apresentação do documento, o Diretor Geral Adjunto da OMS, em Cobertura universal de saúde e Doenças Transmissíveis e Não-Transmissíveis, Dr. Ren Minghui, lembra que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD), assinada em 2006, reconhece o imperativo de serem empreendidas grandes reformas para proteger e promover os direitos humanos na saúde mental.

O Guia então divulgado pela OMS, teve o propósito de “trazer urgência e clareza aos formuladores de políticas em todo o mundo e para encorajar o investimento em serviços de saúde mental baseados na comunidade, em alinhamento com os padrões de direitos humanos”. O documento, conclui, “há uma visão de cuidados de saúde mental com os mais altos padrões de respeito pelos direitos humanos e dá esperança de uma vida melhor a milhões de pessoas com deficiências psicossociais, e suas famílias, em todo o mundo”. No Guia, estão elencadas experiências de vários locais do mundo, consideradas pela OMS como inovadoras na abordagem da saúde mental.

No caso brasileiro, a rede estabelecida em Campinas foi escolhida para exemplificar as mudanças praticadas no setor desde a vigência da nova legislação, com serviços públicos oferecidos no âmbito do SUS. Campinas é citada como modelo no Capítulo 4 do Guia, que trata das “Redes abrangentes de serviços de saúde mental”, e especificamente no subcapítulo sobre “Redes de saúde mental bem estabelecidas”.

Neste contexto, o Guia da OMS salienta que Campinas, um município brasileiro do Estado de São Paulo, “oferece um modelo de como isso funciona em nível local, onde todos os serviços são prestados por meio desse modelo, seguindo o fechamento do hospital psiquiátrico da cidade em 2017. No caso, se refere ao Serviço de Saúde Cândido Ferreira, um dos pioneiros e principais protagonistas da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil. O Cândido Ferreira é parceiro do município na rede de saúde mental de Campinas, atuando e gerindo Caps e outras unidades da rede no município.

O documento da OMS prossegue salientando que os CAPS, operando como “centros de saúde mental baseados na comunidade, são a pedra angular da rede de saúde mental baseada na comunidade no Brasil”. A abordagem a partir dos Caps, segundo a avaliação da OMS, é “baseada em direitos e centrada nas pessoas, e seus objetivos principais são fornecer atenção psicossocial, promover autonomia, abordar desequilíbrios de poder e aumentar a participação”. Os Caps fornecem ainda “suporte de cuidados de saúde mental para indivíduos com doenças mentais graves ou persistentes, com condições de saúde e / ou deficiências psicossociais, inclusive durante situações desafiadoras e de crise”.

Campinas conta com 14 Caps, sendo quatro para pessoas com transtornos graves, crônicos e em crise localizados nos 5 Distritos de Saúde, com duas unidades na Região Sudoeste. Outros quatro Caps são destinados a pessoas com problemas decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas localizados nas regiões Sul, Leste, Sudoeste e Noroeste.

Dois Caps são para crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas e mais dois Caps são para pessoas com transtornos graves em regime semi-intensivo e não intensivo.

Os Caps são orientados por três princípios: (1) Política de portas abertas, (2) Envolvimento da comunidade e (3) Desinstitucionalização. Complementam a rede de saúde mental em Campinas os Centros de Saúde que, atualmente, são 67 no município. O documento salienta que as equipes de Saúde da Família são as responsáveis pela vinculação da comunidade ao Centros de Saúde. Nesses Centros, trabalham equipes multiprofissionais com formação em saúde mental, que fazem o primeiro atendimento de pessoas que procuram as unidades com demandas na área.

Outro elemento fundamental na rede de saúde mental no Brasil, são os “Consultórios na Rua”, que “fornecem apoio e cuidados de saúde aos desabrigados na comunidade, fornecendo suporte geral de saúde mental, bem como suporte a indivíduos com doenças mentais e condições de saúde, deficiências psicossociais e problemas e necessidades associadas ao uso de substâncias”.

O documento da OMS mostra ainda como Campinas foi exemplo de desinstitucionalização na saúde mental. Com isso, os hospitais públicos, como os hospitais municipais Mário Gatti e Ouro Verde, bem como o HC da Unicamp, passaram a contar com leitos para psiquiatria.

“Em Campinas, a hospitalização é geralmente utilizada para suporte durante uma situação de crise, dependendo de sua gravidade e das necessidades de um indivíduo”, diz a OMS. No entanto, o documento afirma que esse serviço oferecido pelos hospitais públicos “permanece vinculado à rede principal de base comunitária e, desta forma, se um indivíduo é internado em um leito de saúde mental em um hospital geral, a equipe do hospital e a equipe do serviço de referência (por exemplo, um Caps) colabora no plano de recuperação da pessoa”. O município criou um serviço de urgências em saúde mental através do Samu. O documento nota que Campinas possui 20 residências independentes, com moradores que integram o Programa “De Volta para Casa”.

A estratégia de desinstitucionalização, completa o documento, envolve a transferência de dinheiro para indivíduos que receberam alta de hospitalização de longo prazo “para fortalecer a autonomia, garantindo que tenham recursos para fazer suas próprias escolhas”. Essa rede, lembra a OMS, “foi negociada em todos os níveis e com todas as partes interessadas do sistema de saúde mental, incluindo indivíduos que utilizam os serviços, familiares, movimentos da sociedade civil e profissionais de saúde mental, promovendo adesão e comprometimento”.

Naturalmente, essas redes “estão em constante evolução para atender a novos desafios, como resultado do diálogo entre as partes interessadas”, finaliza o documento, que inclui, como referência para a busca de novas informações, por interessados de todo o mundo, endereços virtuais de órgãos e instituições que trabalham com a saúde mental no Brasil e especificamente em Campinas, como a Secretaria Municipal de Saúde e o Serviço de Saúde Cândido Ferreira. Outra referência é um vídeo no Youtube sobre o Programa Maluco Beleza, produzido por usuários do Cândido Ferreira.

Importante dizer que cerca de 7% do orçamento municipal da Saúde é destinado à política de saúde mental, um percentual similar ao de países desenvolvidos.


Carmino Antônio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022

José Pedro Soares Martins é jornalista, escritor e pesquisador.


Fonte: Hora Campinas de 20 de Fevereiro de 2023




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