Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Lenir Santos

Conselho Editorial
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Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 06 - Março 2021

Índice

  1. Vacina: direito coletivo fundamental - por Lenir Santos

Vacina: direito coletivo fundamental

Por Lenir Santos


Ação de cunho coletivo pode obrigar compra de vacinas pela União em quantidade e urgência para enfrentar pandemia


Foto: pixabay

O direito à saúde, art. 196 da Constituição, pressupõe duas medidas estatais fundamentais para a sua efetivação: a adoção de políticas públicas que evitem o risco de agravos à saúde e a garantia de serviços públicos assistenciais de acesso universal e igualitário, a cargo dos entes federativos integrados em rede interfederativa, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), (Lei n° 8.080, de 1990). O princípio da segurança sanitária impõe dever ao Estado de preservação da saúde das pessoas que não devem adoecer por motivos evitáveis, ação estatal prioritária, conforme determinação constitucional (arts. 196; 198, II; art. 200 CF).

Há no país uma ampla judicialização da saúde, quase que exclusivamente no campo da prestação de serviços curativos individualizados, não coletivos ou preventivos; uma judicialização voltada para a microjustiça, com crescimento exponencial, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1]. Vê-se que a tutela do direito à saúde tem estado presente no campo individual e como as suas deficiências estruturais não têm sido enfrentadas pelo Estado, como financiamento adequado, prevenção de doenças, execução de políticas públicas, a promoção da macrojustiça se posterga. Importante pois destacar que o direito fundamental à saúde pressupõe mais que a garantia de meios à preservação individual da saúde por serem prioritárias medidas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.

No presente momento, a redução do risco de contágio da Covid-19 exige medidas preventivas como a vacinação coletiva da população, que se afigura como relevante e impõe deveres aos agentes públicos, em especial ao Ministério da Saúde, como dirigente nacional do SUS (art. 9°, I, Lei 8.080) e coordenador do Plano Nacional de Imunização (PNI), (Lei n° 6.259, de 1975).

A jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao direito à saúde é que tratamento médico individual se insere no rol dos deveres do Estado, havendo responsabilidade pública pela sua garantia. A vacina, que não pode ser reduzida a um direito individual por sua finalidade ser a proteção coletiva, se insere enfaticamente no rol de deveres estatais como direito fundamental de cunho coletivo. A vacina não é um ato médico nem um tratamento de enfermidade, mas um ato antecedente à doença, para evitá-la, ação sanitária prioritária na atenção à saúde, conforme inciso II do artigo 198 da CF que fixa como diretriz do SUS o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas.

O princípio da segurança sanitária – não adoecer por causas evitáveis com priorização das atividades preventivas – impõe ao Estado o dever de vacinar a população, não sendo admissível inércia na sua aquisição e aplicação quando há pandemias e epidemias.

Qualquer ato administrativo que naufrague essa missão será considerado como descumprimento de preceito fundamental constitucional, lesão ao direito coletivo à saúde, passível de correção pelo Poder Judiciário em seu dever de tutela de direito fundamental coletivo.

A vacinação é um direito social fundamental impostergável que exige esforços consequentes do Poder Público. O próprio STF, na ADPF 756, reconheceu que a vacina é direito fundamental e nem poderia ser diferente por assentado naquela Corte a tutela do direito à saúde ao acesso em tempo oportuno a medicamentos, procedimentos, produtos e insumos.

Se antes não existiam vacinas para frear o avanço da Covid-19, agora existem concretamente, o que impõe ao Estado deveres de aquisição e vacinação da população. Os requisitos para aquisição da vacina são essencialmente a sua comprovada eficácia científica; o registro sanitário no país de forma definitiva ou emergencial, nos termos do disposto na Lei 13.979, de 2020 (art. 3°, VIII); e a disponibilidade no mercado. O dever de sua garantia à população exige sentido de urgência em toda a cadeia administrativa e regulatória, sem perda da qualidade e segurança sanitária.

O país está em mora em seus deveres procedimentais para a aquisição da vacina, que não se iniciou, estrategicamente, no tempo oportuno.

A atitude do governo federal face ao projeto de lei orçamentaria anual da saúde (PLOA-2021) demonstra tal mora por não ter previsto recursos para a aquisição de vacinas na PLOA-2021 encaminhada ao Congresso Nacional em agosto de 2020.

Em 2020, houve negociações, com recursos de créditos extraordinários no valor de mais ou menos R$ 4,5 bilhões, entre os meses de agosto e setembro, com a Fiocruz, a AstraZeneca/Oxford e a Covax Facility ,em doses que não atendem nem 3% da população. A aquisição de vacinas pelo Ministério da Saúde, coordenador do PNI, em 2020, foi de penúria. Somente em final do ano de 2020, em dezembro, foi editada Medida Provisória com recursos de R$ 20 bilhões para a sua aquisição, com autorização de sua execução orçamentária em 2021, tendo em vista o princípio da anualidade orçamentária.

A previsão orçamentária da saúde para 2021 é de R$ 123 bilhões, ou seja, R$ 45 bilhões a menos em relação aos valores de 2020, que foram de R$ 168 bilhões, somados aos créditos extraordinários. A pandemia não terminou em 2020 e créditos extraordinários em 2021 fatalmente serão questionados pelo fato de a emergência sanitária ser do conhecimento de todos em 2020 quando da elaboração do orçamento de 2021.

Note-se que somente em dezembro de 2020 foi aberto crédito extraordinário no valor de R$ 20 bilhões para aquisição de vacinas. São ao todo R$ 25 bilhões para compra de vacina. Desse valor, por volta de R$ 8 bilhões estão comprometidos com a compra da Coronavac, da Covaxin e as da Fiocruz (Oxford). Os R$ 17 bilhões restantes devem ser investidos urgentemente nessa aquisição, porque a Covid-19 ceifa diariamente mais de mil vidas, afora as pessoas internadas, as que se tratam em casa, o medo que paira sobre a sociedade em todas as áreas, econômica, social, psíquica, adoecendo a todos de diversos modos e formas, com graves consequências para a saúde integral das pessoas.

Por outro lado, o valor do orçamento da saúde para 2021 coloca em risco o desempenho do SUS. O orçamento previsto de R$ 123 bilhões, valores equivalentes ao ano de 2019, antes da pandemia, para atendimento de situação emergencial que persiste ainda em 2021, é extremamente preocupante. E em agosto de 2020 a pandemia e seus efeitos em 2021 eram previsíveis, como a necessidade de leitos de UTI, aumento da capacidade instalada, contratação de profissionais, medicamentos, sequelas da Covid-19, demanda reprimida do ano de 2020, aquisição de vacinas.

Esses fatos demonstram o reiterado descumprimento do direito fundamental à saúde, seja por omissão orçamentária, seja por incúria administrativa, seja por falta de planejamento público.

A alegação de que o teto de gasto não permite aumentar o piso (hoje teto) da saúde não é aval para a permissão de ocorrências de mortes e doenças evitáveis por ferir direito fundamental, a vida e a saúde das pessoas. A dignidade humana, a redução das desigualdades sociais, a justiça social são cláusulas pétreas. Nenhuma norma nova pode confrontar preceitos pétreos constitucionais pelos seus valores humanos intrínsecos. Por isso são vitalícias, conforme se diz no direito alemão.

O direito à saúde requer proteção de modo inconteste, ainda mais em sociedades desiguais onde quem é pobre morre antes, como dizia Giovanni Berlinguer[2]. Não garantir saúde a todos fere a liberdade humana por não haver como exercê-la, conforme Amartya Sen,[3] que assevera que uma doença que se deixa de prevenir por força, por exemplo, de uma pandemia, tem forte relevância negativa para a justiça social, que não se produz sem garantia da realização de saúde.

Em uma pandemia como a atual, a tutela coletiva do direito à saúde é medida de justiça social a ser satisfeita pela tutela do direito à vacina. Sabe-se que o planejamento da vacinação no país está judicializado no STF, o que não impede ação de cunho coletivo para obrigar a sua aquisição em quantidade e urgência, desde que cumpridas as exigências sanitárias regulatórias.

Há recursos no orçamento do Ministério da Saúde, ainda que previstos de modo tardio; há vacinas, ainda que escassa a sua produção; e mesmo que os requisitos regulatórios sejam imperativos, não são impeditivos de negociações prévias e celebração de contratos com cláusulas resolutivas. O que não é admissível são mortes e doenças evitáveis em razão da incúria pública. A vacina é direito fundamental da coletividade e dever do Estado, sujeita à tutela do Poder Judiciário por ação proposta por representações sociais ou outros legitimados para tal. O direito de todos à vacina é inconteste e a urgência é elemento intrínseco à ação estatal.


[1] https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em -dez-anos/

[2] Berlinguer, G. Ética da Saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 1996

[3] Sen, A.; Kliksberg, B. As pessoas em primeiro lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


LENIR SANTOS, Advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva da Unicamp e Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA).


Fonte: Artigo publicado no site Jota em 09 de fevereiro de 2021.




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