Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 06 - março 2023

Índice

  1. Reflexões aos alunos que iniciam o curso de medicina - por Nelson R. dos Santos

Reflexões aos alunos que iniciam o curso de medicina

Por Nelson R. dos Santos


Foto: Envato



Primeira reflexão - Sobre a formação profissional na graduação e residência: próximos 6 a 8 anos.

Inicio destacando o desafio para vocês: - o ingresso neste curso de medicina, considerando o grande aprofundamento dos conhecimentos científicos e expansão dos avanços tecnológicos, que ampliam como nunca o leque de especialidades e opções vocacionais.
Nas especialidades biomédicas tradicionais como também nos projetos e programas de saúde digital, na telessaúde, nos algoritmos diagnósticos informatizados, na cirurgia robótica e várias outras no campo das ciências exatas. Sempre exigindo criatividade nas relações médico-cliente e médico-comunidade.
Aí estão também os desafios nas áreas da saúde mental, saúde coletiva e outras, diante da intrincada superposição nos campos da antropologia, sociologia, humanidades e outros.
Esse é hoje, no perfil médico, o largo espectro das vocações e escolhas, abarcando as ciências biomédicas, humanas e exatas. Para cada uma das dezenas de opções nesse largo espectro, não há herança genética nem formação educativa específica. Talvez, para conjuntos bem maiores de opções.
Serão 6 a 8 anos de experiências e testagens pessoais, novas descobertas, avaliações, evoluções e afunilamentos de opções. As influências de familiares, professores e colegas integram esse processo.
Termino esta primeira reflexão, enfatizando o desenvolvimento do nosso “eu pessoal” nesses 6 a 8 anos, no âmbito de projeto de vida pessoal e social pela vida afora.


Segunda reflexão - Sobre a formação humanista e a construção da sua cidadania.

Vejo que os 6 a 8 anos da graduação e residência, ao mesmo tempo em que alicerçam o exercício profissional, trazem em si, o potencial humano de vigor e beleza, voltado desde já para a realização da plenitude da vida.
6 a 8 anos de preparos, mas também, de usufruto do melhor legado da civilização humana, no aqui e agora, tanto no âmbito profissional como no lúdico, esportivo, afetivo e construtor de cidadania.
Do exercício da sua cidadania no contexto dos direitos humanos universais contemplados para toda a sociedade em nossa constituição.
Nesses 6 a 8 anos, uma verdadeira construção e degustação de cada ano e cada mês, como um fim em si mesmo.
Finalizado esta segunda reflexão, lembro-me das minhas próprias buscas, duas gerações atrás, com opção pela clínica geral no terceiro e quarto anos da graduação; após, opção pela psiquiatria no quinto e sexto anos.
No primeiro ano de formado, retorno à clínica geral no instituto de previdência social dos bancários. Por fim, a convite de grande mestre de parasitologia, Samuel Pessoa, para ser assistente dele no instituto de medicina tropical da faculdade de medicina da USP. Aí, nos primeiros quatro meses de janeiro, coordenei quatro pesquisas de campo no interior do Ceará, Goiás, Bahia e Alagoas, sobre doenças parasitárias, infecciosas e nutricionais, cujas equipes eram por volta de 20 estudantes de medicina voluntários nas férias do 2º para o 3º ano.


Terceira reflexão - Sobre o referencial histórico e civilizatório da medicina.

Aqui tocaremos na significativa herança multimilenar, de posturas, vocações e ações de cuidados com a saúde e doença, que povoam corações e mentes até nossos dias.
Há registros desde 5 a 6 mil anos sobre o reconhecimento de doenças, como delas fugir, curando-as ou evitando-as, com resolutividade baixa dependente de crenças em vontades sobrenaturais sobre o bem e o mal, mas também em elevação com base na observação empírica e nas tentativas ensaio-erro.
Pelos séculos e milênios afora, nos avanços das observações empíricas e nas iniciativas de ensaio e erro, a resolutividade evoluía pela saúde e contra a doença, ainda que muito lentamente. Assim foram se acumulando achados e vestígios deixados pelas civilizações egípcia, islâmica, persa, hindu, chinesa e outras.
Ao final do período antes de cristo, a acumulação civilizatória gerou a escola de esculápio e suas filhas higeia e panaceia, deusas da prevenção e cura.
As práticas, exercidas por vários perfis de pessoas, quase sempre permaneciam vocacionadas pela solidariedade e religiosidade.
É nesse processo histórico e civilizatório, que há pouco mais de dois milênios, já no início da era pós-cristo, surge a escola de galeno, que estende e aprofunda a pesquisa clínica, a dissecção anatômica, funções dos órgãos e tecidos, e a sistematização dos fármacos da época.
Nesse processo milenar desenvolvem-se os cuidadores, conselheiros, e gurus populares, assumindo, simultaneamente os cuidados curativos e preventivos, sob a postura solidária mais ou menos religiosa, e por isso, quase sempre, presenteados em agradecimento.
Através dos séculos, a pesquisa, as descobertas e o crescente intercâmbio dos achados no campo da saúde e doença, assim como das práticas de saúde, foram gerando o perfil médico. Perfil esse, como o dos cuidadores tradicionais, integrando atos curativos e preventivos, exercidos por pessoas com vocação e solidariedade no combate ao sofrimento.
Desde esses tempos até hoje, permeiam na cultura popular os refrões “mais vale prevenir que curar”, ou “mais vale curar no início da doença do que com ela piorada” e quanto às doenças crônicas, a angustiante busca dos papéis da família, dos vizinhos, da comunidade e dos governos.
Finalizando esta terceira consideração, destaco que esse nascimento e desenvolvimento milenar da medicina, em séculos mais recentes, principalmente o 19 e o 20, foi fortemente influenciado pelo grande avanço no processo de mercantilização na produção e consumo de bens e serviços, principalmente com as revoluções industriais na Europa.
O exercício da assistência médica concentrou-se nas elites sociais e mandatários poderosos. Os avanços científicos na biologia, microbiologia, parastologia, bioquímica, clínica, cirurgia e outros, no âmbito das universidades em criação e ebulição, como também do perfil dos governos.


Quarta reflexão - Sobre lances marcantes: nos séculos 20 e o atual.

O já referido alto nível de eficácia da medicina atingido no século 20, agora centrado nas elites sociais produtivas, financeiras, religiosas e militares, consolida-se enquanto política de estado.
Porém, ainda que em plano agora secundário, permanece a acumulação cultural secular e milenar da vocação ao cuidado solidário, integral – preventivo e curativo - contra o sofrimento por doenças.
Paralelamente à nova eficácia dominante no século 20, que secundariza os saberes e práticas capazes de promover, proteger a saúde, e diagnosticar e curar doenças em fase inicial, estes saberes e práticas, calcados nos avanços científicos e tecnológicos, permaneceram demonstrando capacidade de resolver 80 a 90% das necessidades de saúde de toda a população, assim como resolver doenças agravadas ou complexas dos 10 a 20% restantes.
Mas esse novo modelo de saúde, muito mais natural e óbvio perante os direitos humanos básicos, só emergiu na política social e de estado após as duas grandes guerras mundiais, que abalaram as estruturas da civilização e dos estados europeus na metade do século passado. A reconstrução desses estados e das políticas públicas, sob pressão das sociedades, passaram a incluir políticas públicas universalistas de direitos de cidadania, uma delas, a da saúde. Implementando modalidades de serviços básicos de atenção integral e equitativa à saúde para todos, com resolutividade entre 80 e 90%, além de retaguardas assistenciais de especialidades para encaminhamento dos 10 a 20% restantes. Este modelo, com racionalidade óbvia perante os direitos humanos e governabilidade democrática, caso implementado efetivamente, pode conviver dinamicamente com serviços privados de mercado na saúde. Como acontece na maior parte da Europa, no Canadá e outros.
No Brasil, 45 anos após o final da 2ª guerra, ao sair de grave ditadura de 20 anos, a sociedade brasileira e a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 debateram e aprovaram o SUS com base na universalidade, integralidade, equidade, descentralização, regionalização, participação social e demais diretrizes. o mesmo modelo já consolidado na maioria dos países europeus, Canadá e outros.
Cabe destacar que a negação da oferta dos serviços de saúde acima expostos, pelos poderes do estado, indistintamente para toda a população, enquanto direito humano inalienável, significa flagrante negação dos preceitos éticos mais elementares. Permanece crucial acompanhar as manifestações das entidades médicas e dos demais profissionais de saúde, tanto no âmbito dos direitos humanos como da ética social. Inclusive destacando a relação do/da profissional com os mais expostos às doenças, e os doentes, enquanto cidadãos com fragilidades, dependências, em busca de apoio e esperança no profissional. Vejo que o desenvolvimento do sentimento e comportamento ético, tem na graduação um momento inadiável.
Apesar dos consistentes avanços e benefícios do SUS perante a população mais carente, com explosiva inclusão social, implementação da atenção básica em comunidades rurais e urbanas, assistência pública de média e alta complexidade à saúde, passando pelo SAMU, controle da aids, da assistência psicossocial, da covid-19, e outras, nossos 35 anos do SUS convivem com a face mercantilizada e elitista das políticas públicas entranhada em nosso estado, maior obstáculo à realização das diretrizes constitucionais da integralidade, equidade e regionalização.
Finalizando esta quarta e última consideração, tomo a liberdade de compartilhar minha descoberta do princípio da integralidade. Há mais de 50 anos, iniciando trabalho de campo para tese de livre-docência sobre o controle da esquistossomose, já com preocupante nível endêmico nas várzeas do vale do paraíba, tornou-se crucial a mudança de hábito higiênico dos trabalhadores rurais e suas famílias. Consistia na “simples” mudança de hábito higiênico no uso de privadas, tanto nos domicílios rurais como nos locais de trabalho nas várzeas. Os materiais foram calculados com base em nossa pesquisa, e doados pela secretaria de obras do estado de São Paulo, incluindo 200 lajes de concreto colocadas em cada domicílio e em locais do trabalho rural.
Foram realizadas inúmeras iniciativas educativas como visitas domiciliares e nos locais de trabalho, com projeção de slides, reuniões com escolares e suas professoras, e outras, cuja checagem acusava a plena compreensão e aceitação da mudança de hábitos. Até dois espetáculos gratuitos com a dupla caipira Tonico e Tinoco e após, com Mazzaropi, foram realizados com sucesso. Inesperadamente, começamos a ser abordados por alguns trabalhadores rurais, educadamente, insistindo porque tantas iniciativas a favor de protegê-los de uma doença que ainda não os estava maltratando nem impedindo seu trabalho, quando inúmeras outras doenças, inclusive graves, desde sempre vinham atingindo seus pais, a si mesmos e seus filhos. E descreviam casos e quais doenças e sofrimentos.
Somente na terceira abordagem que me fizeram, comecei a me convencer de que, na lógica e na cultura da população mais sofrida e injustiçada, algo mais real e humano vinha escapando da minha percepção de um doutor da FMUSP. Sabia que havia obrigação de um centro de saúde maior de cidade vizinha enviar um médico, semanalmente, por um período de dia para dar consultas, o que há muito não cumpria. Parti rápido na direção do cumprimento dessa obrigação, com sucesso por três semanas, voltando a faltar a partir da quarta. Mobilizei o secretário estadual de saúde com sucesso por mais três semanas. Cheguei até dar as consultas por duas semanas e concluí que não era por aí. Prosseguindo as atividades de saneamento domiciliar e nos locais de trabalho constatei a melhoria massiva nos hábitos higiênicos, o elo que faltava para o controle da esquistossomose. Soube posteriormente da repercussão do meu esforço pelas consultas semanais. Até hoje levo esse aprendizado da integralidade como verdadeiro choque cultural muito positivo para mim pelo resto da vida. Exatamente 20 anos antes da aprovação do SUS em nossa constituição.




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