Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 07 - Fevereiro 2020

Saúde é direito de todos e dever do Estado: o piso federal desidratado, os restos a pagar do Ministério da Saúde e a lógica invertida do “carnê das Casas Bahia”

Por Francisco R. Funcia


O objetivo desta Nota é reiterar o dispositivo da Constituição Federal de 1988 (CF-88) que estabeleceu a saúde como “direito de todos e dever do Estado”, no contexto da retirada dos direitos de cidadania que tem ocorrido de forma sistemática desde meados de 2016, quando foi encaminhada ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) pela equipe econômica do Governo Temer chefiada por Henrique Meirelles e cuja promulgação ocorreu em dezembro daquele ano como Emenda Constitucional 95/2016, bem como outras “reformas” (por exemplo, Trabalhista e Previdenciária).

Resgatar o citado dispositivo constitucional aprovado pelos constituintes de 1988 nestes tempos sombrios é fundamental para não perder o fio condutor das lutas atuais em defesa dos direitos de cidadania – afinal, saúde não é apenas um “direito”, mas é também um “dever do Estado”, ou seja, são duas prerrogativas indissociáveis.
“Recordar é viver” (início da letra de um samba-enredo de Escola de Samba do Rio de Janeiro nos anos 70) – o dispositivo escrito na CF-88 “saúde é direito de todos e dever do Estado” não foi observado na formulação da citada PEC encaminhada ao Congresso Nacional (que tramitou em 2016 com os números 241 na Câmara dos Deputados e 55 no Senado Federal): ficou conhecida como “PEC da morte” nas manifestações contrárias realizadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do SUS, pois congelava tanto a disponibilidade financeira para pagamento das despesas sociais (interferindo indiretamente na disponibilidade para o Ministério da Saúde) nos níveis de 2016 (teto das despesas primárias), como os pisos federais da saúde e da educação a partir de 2018 nos níveis dos respectivos pisos de 2017.

Mas, na verdade, após a vigência da EC 95, não houve um “congelamento”, mas o aprofundamento da redução alocativa de recursos para a saúde, se considerarmos que a população cresce ano a ano (entre 0,8% a 1,0% ao ano) e envelhece (o aumento proporcional da população idosa tem aumentado os custos da atenção à saúde), além da necessária incorporação de medicamentos e equipamentos decorrentes do desenvolvimento tecnológico na área da saúde. Houve também uma redução do piso federal e da aplicação federal (pelo conceito de despesa empenhada) em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) como proporção da receita corrente líquida (RCL), conforme ilustra a Tabela 1.

Tabela 1 - Piso Federal e Aplicação Federal na Saúde após a EC-95/2016

Por causa do desrespeito ao princípio constitucional da vedação de retrocesso, estão tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade referentes à Emenda Constitucional 86 de 2015 e à Emenda Constitucional 95 de 2016 (ADI 5595 e ADI 5658 respectivamente), tema que teve um despacho liminar do Ministro Lewandowski, inclusive para determinar que, em 2016, o piso federal da saúde correspondeu a 15% da Receita Corrente Líquida (que o governo federal descumpriu) e que as despesas financiadas com recursos do pré-sal deveriam ser computadas como aplicações adicionais ao piso federal). Esse tema também foi abraçado pelo CNS por meio de resoluções, recomendações, mobilizações e abaixo-assinado desde 2015 e o julgamento no STF será retomado no próximo mês de março. Outras informações sobre atividades a serem realizadas nos meses de março e abril estão disponíveis no site do CNS.

Esse processo de desvinculação dos pisos da saúde e da educação para o governo federal a partir da vigência da EC 95/2016 terá continuidade neste ano de 2020 com a tramitação da PEC 188, de iniciativa da equipe econômica do Governo Bolsonaro chefiada por Paulo Guedes: dentre os dispositivos propostos, um deles estabelece a unificação dos pisos da saúde e da educação nas três esferas de governo (União, Estados e Municípios), que perdem o caráter obrigatório de piso setorial individual diante da possibilidade de remanejamento de recursos entre essas duas áreas, desde que o piso unificado seja cumprido.

O argumento “canto de sereia” da equipe econômica do governo federal para essa unificação é o da “flexibilidade e autonomia de gestão” dos Estados, Distrito Federal e Municípios, o que coincide com um dos argumentos adotados pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) para implementação das Portarias nº 3992, de 28 de dezembro de 2017 (que reduziu de seis para dois blocos de financiamento – custeio e investimento – o critério de transferência de recursos fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios, pactuado na Comissão Intergestores Tripartite/CIT, mas não submetido para análise e deliberação do CNS como determina a Lei Complementar 141/2012) e nº 2979, de 12 de novembro de 2019 (que estabeleceu o novo modelo de financiamento de custeio da atenção primária à saúde, pactuado na CIT, mas não submetido previamente para análise e deliberação do CNS, portanto, uma portaria que desrespeita não só a Lei Complementar 141/2012, mas também desrespeita o princípio constitucional do acesso universal, que somente será observado se os municípios alocarem ainda mais recursos para compensar a redução federal no financiamento da atenção primária à saúde que ocorrerá a partir de 2021).

A pergunta que não quer calar: como aceitar “flexibilização e autonomia de gestão” no contexto da redução de recursos federais para o financiamento da política de saúde? A Tabela 1 evidencia a redução dos recursos federais para o financiamento do SUS e sempre é bom “recordar” que cerca de 2/3 das despesas do Fundo Nacional de Saúde são transferências fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios; e sempre é bom lembrar que 57% das despesas com ações e serviços públicos de saúde no Brasil são financiadas com recursos desses entes subnacionais, ou seja, é muito reduzido o espaço fiscal para que esses entes ampliem o financiamento do SUS como forma de compensar a redução adicional que ocorrerá no financiamento federal.

É evidente ainda que todas as medidas propostas pelo governo, quer pela área econômica, quer pelo Ministério da Saúde, visam adequar a gestão a esse contexto de restrição orçamentária e financeira, que aprofunda os efeitos negativos gerados pela EC 95/2016. Porém, as entidades de representação nacional de prefeitos, de governadores e de secretarias municipais e estaduais de saúde preferem acreditar no “canto de sereia” do governo federal do argumento da “vantagem” da “flexibilidade e autonomia de gestão” na aplicação de recursos, mesmo que em desrespeito do interesse público e das regras constitucionais e legais.

Mas, parece que o “canto da sereia” do governo federal comprometeu também a percepção dos gestores para a gravidade que representa os restos a pagar inscritos e reinscritos para execução financeira em 2020 (no valor de R$, que ainda é reflexo do crescimento de 50% verificado na passagem de 2017 para 2018: se é verdade que em 2017 os valores empenhados em ações e serviços públicos de saúde atingiram o recorde de 15,77% da RCL (ver Tabela 1), não é menos verdade que nesse mesmo ano também foi recorde o crescimento do valor dos empenhos a pagar no final do exercício (81% em comparação a 2016), ou seja, empenhou a despesa, mas não liquidou e pagou, isto é, não se efetivou como ações e serviços públicos de saúde prestados à população; em 2017, também houve redução nominal de pagamentos de restos a pagar; a combinação desses dois movimentos resultou no aumento do valor do estoque de restos a pagar para em torno de R$ 20 bilhões.

Faz tempo que os restos a pagar do Ministério da Saúde têm sido objeto de ressalvas, recomendações e resoluções do CNS; apesar disso, houve uma elevação de patamar a partir de 2017 conforme citado anteriormente, o que tem sido desde então um dos motivos para os pareceres conclusivos do CNS pela reprovação do Relatório Anual de Gestão do Ministério da Saúde de 2017 e 2018. Tem representado uma espécie de “carnê das Casas Bahia” ao contrário, porque enquanto na loja o consumidor usufrui do bem comprado e paga por isso depois em diversas prestações, os restos a pagar do Ministério da Saúde caracterizam que houve o cumprimento da aplicação mínima em saúde pela despesa empenhada sem que a população tenha usufruído, em muitos casos até hoje, da prestação de serviços em saúde decorrente dessa aplicação apurada desde a década passada!

A Tabela 2 apresenta a execução financeira dos restos a pagar do Ministério da Saúde em 2020 (até o dia 15 de fevereiro), cujas informações indicam a gravidade da situação – é um caso raro a ser estudado: o “canto da sereia” da equipe econômica e da saúde do governo federal está afetando negativamente a “visão” dos gestores estaduais e municipais, pois não se observa nenhum movimento para reversão dessa situação, muito pelo contrário: novas medidas estão sendo propostas e/ou implementadas, inclusive na área da saúde, que tenderão a tornar esses restos a pagar uma “peça de ficção” no futuro, em detrimento do atendimento às necessidades de saúde da população e, pior, com registros históricos da aplicação em saúde em diversos anos passados de um conjunto de ações e serviços de saúde que não terão sido realizados.

Tabela 2 - Restos a Pagar do Ministério da Saúde (em R$ a preços correntes)

A série histórica dos restos a pagar indica que muitas dessas despesas não serão mais passíveis de execução pela antiguidade e defasagem dos valores, o que pode ser comprovado pelo ritmo da execução financeira dos restos a pagar, cujos pagamentos estão quase que integralmente concentrados nas despesas do ano de 2019 (97%). Isto significa que não deve existir previsão concreta para a execução plena dos restos a pagar dos anos de 2018 e anteriores, o que parece uma hipótese razoável à luz do tempo decorrido; mas, 45% do saldo a pagar (cerca de R$ 7,0 bilhões) refere-se a esse período mais antigo, o que é compatível tanto com a proporção verificada na distribuição temporal das inscrições e reinscrições, como em relação aos valores dos cancelamentos de restos a pagar dos anos de 2011 e 2014 (os mais elevados proporcionalmente aos valores inscritos e reinscritos da série 2003 a 2019).

Nestes termos, uma medida necessária para preservar os interesses da população na assistência à saúde pelo governo federal seria realizar uma análise de viabilidade da execução desses restos a pagar do Ministério da Saúde nos próximos 90 dias, de modo a identificar o que pode ser realizado em 2020; para os casos em que a execução não seja viável, o recomendável seria o cancelamento desses restos a pagar, o que resultaria na obrigação de compensar tais valores como aplicação adicional ao piso federal da saúde em 2021; desta forma, potencialmente, até R$ 7,0 bilhões poderiam ser injetados como recursos adicionais no orçamento de 2021 e, consequentemente, transformar em ações e serviços públicos de saúde para a população, de modo a efetivar a aplicação em saúde computada como ocorrida em anos anteriores.

Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP. Integrante da equipe de editores da Revista Eletrônica Domingueira da Saúde “Gilson Carvalho” do Instituto de Direito Sanitário (IDISA), Professor e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), Consultor na área de gestão e finanças públicas com participação em projetos da Fundação Getulio Vargas (FGV Projetos) e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) na área de orçamento e financiamento do Sistema Único de Saúde. As opiniões aqui apresentadas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, que não se manifesta nesta oportunidade como representante de nenhuma das instituições citadas.





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