Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 07 - Março 2021

Índice

  1. Boletim Cofin/CNS 2020/12/31 - por Francisco R. Funcia (CNS e USCS), Rodrigo Benevides (IPEA) e Carlos Ocke (
  2. Desvincular receitas que garantem o mínimo na saúde e na educação é inconstitucional - por Lenir Santos
  3. PEC 186: Mais um ataque ao financiamento do SUS - por Bruno Moretti, Francisco Funcia e Carlos Ocké

Boletim Cofin/CNS 2020/12/31

Por Francisco R. Funcia (CNS e USCS), Rodrigo Benevides (IPEA) e Carlos Ocke (




























Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.

Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.

Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.



Desvincular receitas que garantem o mínimo na saúde e na educação é inconstitucional

Por Lenir Santos


Intensa judicialização da saúde, com milhões de ações judiciais, é um exemplo fiel do seu subfinanciamento.


Vacinação / Crédito: Ingrid Anne/Semcom

Desvincular recursos mínimos da saúde e da educação, conforme propõe o relator da PEC 186/2019, é medida inconstitucional. Saúde e educação são direitos fundamentais protegidos constitucionalmente contra qualquer forma de retrocesso e nada se afigura tão fortemente como retrocesso do que a afetação de seu custeio mínimo.

A própria Constituição (artigo 167, IV), ao excepcionalizar ambas as áreas da vedação de vincular receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, lhes permitiu a garantia original de valores mínimos como medida protetiva a lastrear a sua efetividade.

Na educação, vinculou-se recursos mínimos de impostos à sua sustentabilidade, artigo 212; na saúde, o artigo 55 do ADCT, originalmente, garantiu-lhe 30% dos recursos da seguridade social, até a edição da primeira LDO que deveria observar tal premissa constitucional, sem retroceder. Tudo isso a confirmar a fundamentalidade dos direitos à saúde e à educação, essenciais à garantia da vida e do desenvolvimento do país e, em sendo direitos prestacionais que custam ao erário público, a garantia de recursos mínimos é medida de garantia à sua efetividade, que se agrega ao seu núcleo essencial, integrando-o. Direitos sociais exigem ação positiva do Estado e isso tem custo, daí ser imperativa a garantia de recursos.

Em que pese a determinação constitucional de assegurar minimamente 30% do orçamento da seguridade social para o custeio da saúde, em 1998, a EC 20, ao segregar para a previdência social grande parte das contribuições sociais da seguridade social, diminuiu os recursos mínimos da saúde, não compensados por outras fontes, o que ensejou a edição da EC 29, em 2000 (alterada em 2015 pela EC 86), que vinculou receitas para o custeio mínimo da saúde, refazendo a proteção orçamentária do direito abalada pela EC 20 em razão da segregação de fontes para a previdência social.

Direito fundamental protegido pela rigidez do artigo 60, § 4º, que veta a abolição de determinadas cláusulas por emenda constitucional, não admite de modo oblíquo ou indireto, a sua supressão, como ora se pretende pelo manto da desvinculação de recursos de custeio mínimo da saúde e educação, sob o falso pretexto de maior eficiência do gasto, sabendo-se desde sempre que isso significará a morte fática dos direitos, pois, retirar a sua proteção orçamentária-financeira é uma forma de transgressão constitucional a afetar a realização de direitos.

Direito social não produz efeito sem recursos financeiros mínimos para a sua manutenção; não há direito no mundo real sem financiamento e, como diz Bobbio [1], não basta proclamar direitos, é preciso que eles sejam desfrutados efetivamente.

Que fique claro que dentre as cláusulas pétreas do artigo 60, § 4°, as do inciso IV garantem direitos e garantias individuais, incluídos os direitos sociais, reconhecidos como fundamentais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Sendo saúde e educação direitos pétreos não sujeitos à supressão sob nenhum pretexto, normas de garantia de recursos para a sua realização tem a mesma estirpe e rigidez por integrar o núcleo essencial do direito.

Sem custeio adequado e vias transversas se abolirá o direito à saúde, sem o excluir da Constituição para apenas proclamá-lo sem usufrui-lo, modo cínico de transgressão constitucional. Normas, que dão sustentabilidade financeira aos direitos à saúde e à educação, são geneticamente pétreas por essenciais à sua efetividade. Desvincular, pois, receitas destinadas ao seu custeio adequado se configurara violação ao disposto no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição.

Além do mais, a vinculação de receitas diz respeito ao piso mínimo da saude, recursos quase sempre insuficientes, o que enseja o seu subfinanciamento há 32 anos, agravado a partir pela EC 95 que ao congelar o gasto público por 20 anos, mantem os valores que sustentam a saúde pública ao nível de 2017, corrigido apenas pela inflação.

A intensa judicialização da saúde, com milhões de ações judiciais, é um exemplo fiel do seu subfinanciamento. Tanto é subfinanciada a saúde que o seu piso mínimo municipal, 15% de suas receitas, vem exigindo ao longo do tempo, acréscimos de recursos, estando hoje na faixa de 25% das receitas municipais, o que em 2019 significou 31 bilhões, além dos valores do piso municipal. A abolição de tal piso, ou a união de ambos, imporá perdas a uma das áreas, pois ambas são subfinanciadas e poderá ensejar luta fraticida entre dois direitos fundamentais.

Aprovar a desvinculação constitucional de receitas mínimas para o financiamento da saúde é asfixiar o direito consagrado nos artigos 6° e 196 da Constituição, violando a proteção pétrea de direitos fundamentais. Ao garantir perenidade ao direito à saúde, a Constituição contaminou as normas orçamentárias de garantia de sua efetividade da mesma qualidade. Assim, a garantia de recursos mínimos para a saúde não pode ser alterada por compor o núcleo essencial do direito, sob pena de se ferir a Constituição.

E, por fim, não poderia deixar de comentar que um acordo que a pretexto de conceder auxilio emergencial, por três meses, para as pessoas sem renda por outro lado retira-lhes direitos fundamentais de modo permanente ao abolir a proteção orçamentária que dá efetividade. Afora o momento ser absolutamente inadequado para tal discussão, revelando cabal falta de sensibilidade política ou esperteza cínica propor a desvinculação de recursos mínimos para a assegurar a saúde quando o país vive o luto pela morte de mais de 250 mil pessoas pela Covid-19.


[1] Bobbio, N. A Era dos Direitos. Editora Campus, 1992.


LENIR SANTOS – Advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva da Unicamp e Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA).


Fonte: Artigo publicado no site JOTA em 25 de fevereiro de 2021.



PEC 186: Mais um ataque ao financiamento do SUS

Por Bruno Moretti, Francisco Funcia e Carlos Ocké



Economista e assessor no Senado, Bruno Moretti.
Foto: Divulgação/CNS

Em meio à pandemia, além de aprofundar a política da austeridade fiscal, por exemplo, com a criação do “subteto dentro do teto de gasto da União”, a PEC 186 retirará mais recursos das ações e serviços públicos de saúde com a desvinculação dos royalties do pré-sal, cujo montante de 25% é destinado à saúde de todos os entes para aplicar acima do mínimo.

O texto da PEC prevê a proibição de vinculação de receitas a fundos, órgãos ou despesas, elencando entre as áreas ressalvadas as ações e serviços públicos de saúde. Ocorre que, no plano federal, a Lei Orçamentária Anual tem sido aprovada, classificando a despesa de saúde financiada pelos royalties do pré-sal fora deste universo que permite vinculações.

Nesse quadro, diante do texto da PEC 186, o Poder Executivo poderá alegar que as vinculações apenas são permitidas em ações e serviços públicos de saúde. Dada a pressão do teto de gasto pela redução da despesa, o mais provável é que os recursos sejam destinados ao resultado primário e à amortização de dívida, configurando mais um retrocesso para o financiamento do SUS.

Na proposta orçamentária de 2021, há R$ 729 milhões referentes aos royalties alocados no Ministério da Saúde. Diante da evolução da produção na camada do pré-sal, no curto prazo, o volume de royalties no orçamento federal de saúde deverá alcançar R$ 1 bilhão. Segundo informações oficiais [1], em dez anos, o total de royalties arrecadados deve chegar à marca de R$ 349 bilhões e constituiria uma fonte de financiamento crucial para a garantia do direito à saúde, num contexto de transição epidemiológica e demográfica. Convém lembrar que, em despacho liminar do Ministro Lewandwoski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595, determinou-se que os royalties fossem aplicados acima do piso de saúde.

Desta forma, a PEC 186 é um ultraje tanto para garantir as condições de saúde da população em tempos de enfrentamento da Covid-19, quanto em relação à decisão do ministro do STF.

Com a retomada das regras fiscais em 2021, que corrigem pela inflação passada o mínimo da saúde aplicado em 2017 (quando não havia sinais da pandemia), o gasto público federal per capita do setor continuará caindo. Entre 2017 e 2021 (considerando a proposta orçamentária), o valor per capita aplicado em saúde passou de R$ 594 para R$ 535, deflacionados pelo IPCA de 2019. Com o congelamento do piso de saúde e a limitação das despesas pelo teto, houve queda de 10% do orçamento do setor, já descontada a inflação, em um contexto de maior demanda por serviços públicos de saúde.

A programação orçamentária de ações e serviços públicos de saúde em 2021, de R$ 123,8 bilhões, está no piso congelado pela EC 95 e não alocou nenhum centavo para as despesas relacionadas diretamente ao enfrentamento da Covid-19. Com as pressões do teto de gasto, a perspectiva é que o orçamento de saúde se mantenha pelos próximos anos em torno do valor definido pela EC 95, de maneira que os gastos do setor deverão passar de 15,8% (2017) para 10% (2036) da Receita Corrente Líquida. Ao piso declinante da EC 95 se soma agora a desvinculação dos recursos do pré-sal, que são alocados na saúde extra piso. Aparentemente, o projeto é desmontar o SUS, neste caso, impedindo que a renda petrolífera seja utilizada para financiar serviços públicos de saúde.

Ante o exposto, cumpre indagar: em meio ao caos sanitário e à marca de quase dois mil óbitos por Covid-19 a cada dia, a resposta do Congresso Nacional à população será a retirada de mais recursos da saúde?


[1] Disponível em: https://www.presalpetroleo.gov.br/ppsa/conteudo/ebook_25_11.pdf. Este valor é referente aos royalties e não contabiliza a parcela do óleo lucro destinado à União, que é transferida ao Fundo Social, também podendo financiar o orçamento de saúde.


Bruno Moretti, Economista e Assessor no Senado Federal;

Francisco Funcia, Economista, professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS);

Carlos Ocké, Economista e ex-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).


Fonte: Notícia publicada no site Conexão Brasília em 10 de março de 2021




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