Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 08 - Fevereiro 2020

Índice

  1. Carnaval, ‘fechamento do Congresso’, neofascismo e saúde - por Leonardo Carnut e Áquilas Mendes

Carnaval, ‘fechamento do Congresso’, neofascismo e saúde

Por Leonardo Carnut e Áquilas Mendes


Ao sistematizarmos alguns acontecimentos históricos da escalada fascista é possível perceber as repetições na conjuntura atual, especialmente no governo neofascista de Bolsonaro. Estas repetições conduzidas com outros atores, outros cenários, outras ‘personagens’, mas certamente com um enredo muito semelhante entre o sombrio passado histórico e o recente no Brasil.

O carnaval mostrou um show de politização (BRASIL DE FATO, 2020; METRO, 2020; FOLHA DE S. PAULO, 2020) nas manifestações contra este governo neofascista, mesmo convivendo com a presença de nossa burguesia com um jeito de ‘SER’ (Sexista, Elitista e Racista) (MENDONÇA, GONÇALVES, 2020). Usar a arte como resistência é essencial em momentos de profunda guinada autoritária (CHAUÍ, 2019) (que não é de agora (MORAES, 1998)). Contudo, não podemos esquecer que esta crise tem seu epicentro na crise de longa duração do capitalismo ultraneoliberal e todos os interesses geopolíticos relacionados a isto.

Boneco do bozo no avenida, homenagens à Marielle Franco, ou até entoar nas ruas um: “Ai Ai Ai Ai... Bolsonaro é o [...]” têm seu mérito. No entanto, apresentam manifestações limitadas do ponto de vista de uma ação de enfrentamento a esse governo. Tendo consciência desses limites, Bolsonaro e sua ‘trupe’, em reunião fechada com sua base militar, articulam uma mobilização de ‘Fechamento do Congresso’ (FORUM, 2020), sem nenhum pudor para tal ação. Para os mais desavisados, seria mais uns dos ‘delírios’ do presidente que encontra endosso em frases como: “ele não vai fazer isso, ele não tem força para tanto... ele tá querendo apenas chamar atenção”.

Ora, se mantivermos um suspiro de sistematização histórica dos acontecimentos, podemos identificar que estes ‘desavisados’ (de todos matizes políticos, salientamos) foram os mesmos que, ainda na candidatura à presidência, verbalizavam o discurso alienante sobre o Bolsonaro, quais sejam: “Mas ele é novo!”, “Mas ele é honesto!”, “Mas ele é competente!”, “Mas ele combate privilégios!”, “Mas ele vai tirar o Brasil da crise!”, “Mas ele não tem rabo preso!” e o mais tragicômico “Mas ele vai unir o país!”. (DOSSIÊ BOLSONARO, 2019).

Para os que acompanham os acontecimentos, sistematizando-os e tecendo análises críticas e politicamente engajadas na defesa dos direitos sociais (dos quais a saúde é um deles), trata-se de um ponto de inflexão histórica que está se anunciando: fechamento do regime político e ascensão de políticas ultraliberais (CARNUT; MENDES, 2020). Não se pode esquecer que na área da saúde vimos assistindo à escalada de medidas destrutivas (ver DOMINGUEIRAS recentes), especialmente, pela asfixia financeira do SUS (FUNCIA, 2020), pelo forte abalo do princípio constitucional do SUS universal com o novo modelo de alocação dos recursos federais para a Atenção Primária à Saúde e pelo fim do Nasf (MENDES; CARNUT, 2019; 2020).

O regime político é central no processo de destrave da acumulação do capitalismo dependente (DEMIER, MELO, 2019), como o Brasil, e sua mudança para um regime de alta restrição é a intenção da face bárbara do capital (SALAMA, 2015), sendo reforçado pela necessária intensificação da transferência de valor para os países imperialistas e a superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação (LUCE, 2018) num contexto de crise.

Mas claro, isso não é anunciado pelo capital (e nem ele ousaria revelar). Isto tudo aparece na sociedade como novas formas de fascismo (CRUZ apud BEINSTEIN, 2019) ou, como vem sendo denominado na literatura internacional ‘neofascismo’ (BULL, 2012). Com fascismo não se brinca! A história nos ilumina de sabedoria sobre isso. Assim, articular a luta antifascista é essencial. E, o campo da saúde coletiva, em particular, deve ter isso muito claro, especialmente com o processo de desmonte do SUS universal em curso. Para tanto, precisamos entender o fenômeno e reconhecer que há uma nova conformação do tipo fascista explícito. Mesmo reconhecendo o limite tênue entre o conservadorismo e práticas neofascistizantes, citamos aqui alguns destas características reunidas pela literatura (CARNUT, 2019) e que devem servir de alerta e fazer parte da agenda de enfrentamento do setor saúde, contribuindo para a construção de uma resistência dura a estas práticas.

Tratam-se de algumas ‘práticas neofascitizantes’ aquelas que:
a) tem caráter antidemocrático no discurso/prática mesmo não negando a democracia enquanto procedimento (respeito à ‘formalidade democrática’);
b) usam de figura/liderança carismático-populista;
c) fazem readaptações ou reinterpretações das políticas fascistas tradicionais às novas circunstâncias;
d) fazem emprego da violência (simbólica/psicológica/física);
e) expressam, por trás da visão autoritária e discriminatória de mundo, descontentamentos legítimos ganhando adeptos;
f) canalizam medos e as esperanças de certo grupo de pessoas para uma alternativa política que conduz ao aumento da discriminação;
g) forjam, contraditoriamente, uma espécie de “nacionalismo pró-imperialista” (no caso de países de capitalismo dependente);
h) apresentam grande salto qualitativo na dinâmica de exploração-opressão do capitalismo triturando liberdades democráticas, garantias sociais das classes baixas, identidades culturais (marcadores sociais da diferença: gênero/raça/sexualidade/etnia/deficiências etc);
i) se apresenta como um movimento de massas, no qual exerce papel decisivo uma pequena burguesia atingida pela crise, mas também as parcelas do proletariado e do subproletariado marginalizadas por essa mesma crise (‘histeria da classe média’);
j) se aproveitam para germinar na ausência de saídas progressistas confiáveis e depositam na figura carismática (excêntrica - um louco) simpatia por soluções ultraliberais;
k) buscam a resolução de conflitos por meio da guerra, especialmente, através da ‘guerra cultural’ criticando os meios de comunicação de massa (mesmo que os utilizem para disseminar suas ideias), preterindo-os face aos clássicos escritos patrióticos/nacionalistas como fonte de informação;

Assim, uma prática como esta recente do presidente em conclamar o “fechamento do Congresso’ é alarmante para a saúde das brasileiras e brasileiros e encontra sintonia com a escalada do regime político para a sua restrição. Não se trata de mais uma bobagem, dentre as milhões já verbalizadas por este presidente sucedâneo de um golpe. É uma carta bem marcada no tabuleiro do jogo político, cuja responsabilidade do setor saúde é organizar-se na Frente de uma luta antifascista. A defesa do SUS universal deve passar por essa reflexão e ação!

Referências
1.Brasil de Fato. Engajamento e protestos marcam o carnaval 2020 em todo o país. Acesso 26 fev, 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/23/engajamento-e-protestos-marcam-o-carnaval-2020-em-todo-o-pais
2.Metro. Carnaval politizado: Foliões se travestem de retroescavadeira e pacientes da Cedae. Acesso 26 fev, 2020. Disponível em: https://www.metrojornal.com.br/entretenimento/2020/02/24/carnaval-politizado-folioes-se-travestem-de-retroescavadeira-e-pacientes-da-cedae.html.
3.Folha de S. Paulo. Acesso 26 fev, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/jesus-fake-news-e-laranjas-dao-tom-politizado-a-enredos-do-carnaval-carioca.shtml
4.MENDONÇA, A. L. O.; GONÇALVES, L. A. P. ‘Sobre o conceito da História’ na saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. Esp. 8, p. 203-218, 2019.
5.CHAUÍ, M. Neoliberalismo: a nova forma do totalitarismo. Acesso 26 fev, 2019. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo/
6.MORAES, R. C. C. Neoliberalismo e neofascismo és lo mismo pero no és igual? Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, v.1, n.7, 1998, p.121-126.
7.Forum. Bolsonaro dispara vídeo no WhatsApp convocando para ato contra o Congresso. Acesso 26 fev, 2020. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro-dispara-video-no-whatsapp-convocando-para-ato-contra-o-congresso/
8.CARNUT, L.; MENDES, Á. Estado, golpe e regime político: o dilema institucionalismo versus historicização na saúde. Izquierdas (Santiago), 2020. (No prelo).
9.FUNCIA, F. Saúde é direito de todos e dever do Estado: o piso federal desidratado, os restos a pagar do Ministério da Saúde e a lógica invertida do “carnê das Casas Bahia”. Domingueira Nº 07 - Fevereiro 2020. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-07-fevereiro-2020
10.MENDES, Áquilas; CARNUT, Leonardo. Novo modelo de financiamento para qual atenção primária à saúde? Domingueira Nº 36 - Outubro 2019. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-36-outubro-2019
11.MENDES, Áquilas; CARNUT, Leonardo. NASF, porrete e bolsonarismo. Domingueira Nº 06 - Fevereiro 2020 - Edição Especial. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-06-fevereiro-2020-edicao-especial
12.DEMIER, F. Da ditadura bonapartista à democracia blindada: regimes políticos e dominação de classe no Brasil recente. MATTOS, M.B. Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017. p. 67-102.
13.MELO, D. Bolsonaro, fascismo e neofascismo. Acesso em: 10 ago. 2019. Disponível em: [http://www.niepmarx.blog.br/MM2019/Trabalhos%20aprovados /MC19/MC191.pdf](http://www.niepmarx.blog.br/MM2019/Trabalhos%20aprovados /MC19/MC191.pdf).
14.SALALMA, P. L´etat e ses particularités dans les pays émergents Latino-Américaisn : une approche théorique à partir de L´Ecole de la dérivation.In : ARTOUS, A.; GONZÁLEZ, J.L.S.; SALAMA, P.; HAC, T.H. Nature et forme de l`etat capitaliste : analyses marxistes contemporaines. Paris : Éditions Slyllepse, 2015.
15.LUCE, M.S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
16.CRUZ, N. R. Neofascismo e Decadência: o planeta burguês à deriva. Acesso em: 10 ago. 2019. Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/neofascismo-e-decadencia-o-planeta-burgues-deriva.
17.BULL, A. C. Neo-fascism. The Oxford Handbook of Fascism. Print Publication Date: Oct 2010 Subject: History, Modern History (1701 to 1945) Online Publication Date: Sep 2012.
18.CARNUT, L. Neofascismo como objeto de estudo: contribuições e caminhos para elucidar este fenômeno. Semina: Ciências Sociais e Humanas. 2020 (No prelo).


Leonardo Carnut, Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento de Ensino Superior em Saúde (Cedess) da Unifesp.

Áquilas Mendes, Professor Dr. Livre-Docente de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUCSP.




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