Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
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ISSN 2525-8583



Domingueira nº 08 - março 2023

Índice

  1. Breve história do SUS, na narrativa de um mestre - por Gabriela Leite, entrevistando Nelson Rodrigues dos Santos

Breve história do SUS, na narrativa de um mestre

Por Gabriela Leite, entrevistando Nelson Rodrigues dos Santos


“Nelsão” em lançamento do livro "SUS e o Estado de Bem-estar Social", em São Paulo. Foto: Victor Zambrano/Hucitec


Apresentamos a entrevista com Nelson Rodrigues dos Santos, em virtude do lançamento do livro SUS e Estado De Bem-Estar Social. Nelsão é dos sanitaristas mais destacados tanto na construção quanto nas reflexões sobre o Sistema Único de Saúde. O lançamento do livro aconteceu presencialmente em São Paulo, no auditório da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), ele dialogou com outros grandes pensadores da Saúde Pública.


Para somar esforços na divulgação da obra, Outra Saúde preparou-se para uma entrevista com Nelson. Ele nos atendeu pelo telefone em uma tarde do final do ano passado. As perguntas tinham sido elaboradas, mas mal precisaram ser feitas. Com a agudeza e habilidade de quem pensa a saúde pública há décadas, Nelson nos presenteou com uma análise minuciosa do nascimento e vida do SUS.


O sanitarista dividiu seu exame em duas partes. A primeira, diz respeito aos anos que antecederam a Constituição Federal de 1988 e como o SUS foi sendo gestado. Teve forte influência do pensamento sanitarista europeu do pós-guerra, mas também nítido tempero brasileiro. Os saberes dos sanitaristas e da luta pela saúde pública confluíram com uma grande mobilização popular pelo fim da ditadura e pela reconstrução da democracia.


Culminaram em um sistema de dar inveja pelo que está no papel, mas que nunca chegou a ser concretizado plenamente. É aí que começa a segunda parte da fala de Nelson. Segundo ele, a partir do dia seguinte à promulgação do SUS, o governo federal já começou a sabotá-lo. Foram, segundo ele, ao menos cinco fortes investidas: o subfinanciamento, o desfinanciamento, a não realização de uma reforma administrativa para transformar a gestão do sistema, o contínuo incentivo ao setor da saúde de mercado e, a partir de 2017, a Emenda Constitucional 95 do “teto de gastos”. Essa parte da reflexão, publicaremos na semana que vem.


No debate participaram também Ubiratan de Paula Santos, médico do InCor e professor da Faculdade de Medicina da USP; Adriano Massuda, médico sanitarista e professor da FGV-SP; Marília Louvison, médica sanitarista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.


Para começar a explicar como surgiu o SUS, é possível comparar os sistemas de saúde pública fortes que há no mundo com os fatos concretos do dia-a-dia e as forças políticas que atuam nas sociedades. Alguns sistemas, pela sua constituição, são iguaizinhos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Suas bases surgiram sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Países como a Alemanha, a Inglaterra, a Suécia e a França têm, em sua Saúde, as mesmas diretrizes do nosso SUS.


E o que faz com que eles deem mais certo lá do que aqui?


Para entender os motivos estruturais de por que a Saúde brasileira passa por tantas dificuldades, e para criar estratégias de superação, é preciso entender em que bases o SUS – e os outros sistemas semelhantes – foram criados. Nos países europeus, há quase um século, depois da Segunda Guerra, eles receberam o nome de sistemas universalistas.


Esse é um jargão que ao longo das décadas foi se confirmando. Sob esse entendimento está o significado de que os cidadãos desses países, para efeitos do sistema de saúde, não tem diferença quanto a classe social; ao fato de estarem empregados ou desempregados; à cor da pele ou à religião. Quer dizer, está presente a ideia de que apesar de todas as diferenças que as sociedades vão estabelecendo entre as pessoas, o que está por trás delas é que são todas seres humanos.


Está garantida a toda a população as ofertas de serviços, tanto dos preventivos, para promover a saúde e impedir a doença, quanto daqueles para diagnosticar e curar quem adoeceu. Aí entra uma série de providências de prevenção e cura, pois não há nenhum cidadão que tenha em algum momento a necessidade de só se prevenir ou só se curar. Todos temos alguma doença que já está estabelecida com sintomas, que está se estabelecendo ou que está fermentando, ainda sem sintomas mas a partir de processos. Para elas, existe o diagnóstico precoce, quer dizer, uma série de exames para detectar doenças no nascedouro, antes de nos prejudicar com os sintomas.


É aí que surge a segunda diretriz, da integralidade. Trata-se da simples admissão de que todo o ser humano precisa simultaneamente ser beneficiado com prevenção e cura. Não tem que entrar em um prédio para curar e em outro para prevenir – isso é um desperdício de recursos e oportunidades.


Essas foram as diretrizes da universalidade e da integralidade. A terceira diretriz é a da equidade, ou igualdade. Quer dizer, as pessoas que têm mais necessidades precisam que haja disponíveis a elas mais serviços de saúde do que as que têm menos necessidades. Aí entra o chavão que utilizamos, que é “tratar desigualmente os desiguais”. De uma certa linha da desigualdade para baixo, a quem precisa de mais, oferecemos mais. Aqueles que estão acima, terão menos.


Essas diretrizes foram extremamente debatidas depois da Segunda Guerra Mundial. Isso porque a devastação causada pelas duas guerras do século XX na Europa foi arrasadora. Foi muito desmoralizante para o continente que tinha maior grau de desenvolvimento do mundo – conquistado através do colonialismo e acumulação de riquezas e conhecimento de outras regiões e culturas. Por isso, filósofos, lideranças políticas, pensadores de todas as correntes construíram um consenso: guerra interna, nunca mais.


Os governos europeus, no pós-Segunda Guerra, deram prioridade ao desenvolvimento cultural e científico para a grande industrialização. Mas, pressionados pelas populações, resolveram recriar uma civilização europeia com a garantia de direitos básicos e políticas sociais. O Estado jogaria no capitalismo, na lógica do lucro, do enriquecimento, mas não deixaria sua população nas mãos do capital privado para obter esses direitos básicos. Aí nasce o Estado de Bem-Estar Social.


Nessa época, no Brasil, nem se sabia o que estava acontecendo na Europa em termos de políticas públicas. Mas, passadas algumas décadas, vem o golpe militar e a ditadura de 1964. Naquele período, que durou vinte anos, houve um grande estímulo ao crescimento econômico e industrial mas simultaneamente um processo de empobrecimento enorme da população. A intensidade foi tanta que, em pouco tempo, a população deixou de ser predominantemente rural e passou a viver nas cidades médias e grandes.
Essa também foi uma época de concentração extrema de renda, de pauperização em massa da população. O que gerou um trauma enorme para os brasileiros e fez crescer, a partir de 1981, 82, uma mobilização social de uma intensidade surpreendente. O movimento criou a ideia de Diretas, Já, que era uma expressão que estava nas mentes e nos corações de toda a população, independente do nível de instrução, se tinha estudo ou não, se trabalhava no comércio ou se era assalariado. Todos os segmentos da população se empolgaram com a bandeira das eleições diretas, porque já estavam sentindo na carne que, sem eleições, o sofrimento nunca iria acabar.


Aquele foi um chamamento muito espetacular. Cientistas sociais, cientistas políticos e historiadores sustentam que nos anos 1980, com a luta contra a ditadura, houve a maior mobilização democrática da história do Brasil. Não houve outra organização maior, nem no movimento dos abolicionistas no final do século XIX.


Esse fenômeno brasileiro trouxe dentro de si o que já havia acontecido na Europa no final da Segunda Guerra: o grande debate sobre qual sociedade queremos. Estamos acabando com a ditadura, como vai ser a sociedade daqui em diante? Qual vai ser o Estado brasileiro? Uma nova sociedade com direitos humanos garantidos e um novo Estado democratizado passaram a ser as grandes bandeiras dessa mobilização. Aí florescem os direitos públicos da saúde, que vão para os debates da construção de uma nova Constituição e são aprovados.


É importante essa comparação entre o que foram os efeitos da Segunda Guerra Mundial numa Europa arrasada e o final de nossa ditadura militar, com uma sociedade também destruída, guardadas as proporções. Mas, na Europa, por haver esse enorme poder e capacidade tecnológica, as mudanças foram muito mais estruturantes. O Estado de Bem-Estar Social por lá teve raízes muito mais sólidas através das décadas.


No caso do Brasil, nosso entusiasmo para sair da ditadura nos colocou com a sensação de que iríamos seguir o caminho europeu. Então aprovamos, no debate constitucional, os pilares de universalidade, integralidade e equidade. Há ainda outras diretrizes interessantes, comuns a esses sistemas públicos, como a regionalização dos serviços de saúde. Essa é uma jogada estratégica espetacular, porque a população mobilizada, que luta por seus direitos, tem um poder de força muito mais consistente dentro das regiões de saúde, com muito mais resultados. As diretrizes do SUS acontecem mais concretamente, entram em seu melhor estágio, nos países em que se dividem as regiões de saúde.


Em bases gerais, a Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde pode ser definida com dois dizeres da sabedoria popular: “mais vale prevenir do que remediar” e “mais vale tratar a doença no começo que no final”. É papel do Estado ter competência de planejamento e gestão de serviços para fazer a associação da prevenção com a cura. Quando isso acontece em bons termos, dá-se algo quase inacreditável: de 80% a 90% dos problemas de saúde de toda a população são resolvidos.


Esse foi um debate muito rico no Brasil dos anos 1980, que foi incorporado pelo SUS e pegou muito fácil entre a população, porque experiências nesse sentido já estavam sendo postas em prática antes. Quando aconteceu o fenômeno da pauperização, da urbanização, houve uma tensão social enorme nas periferias, não só pela falta de saúde como de transporte público, emprego, educação. Então os prefeitos receberam uma bomba na mão, no final dos anos 1970, e tiveram de dar conta disso.


Nessa época, era uma outra realidade, porque as prefeituras não tinham responsabilidade pela saúde dos cidadãos. Elas precisavam manter prontos-socorros municipais com médicos plantonistas – não tinham nem orçamento nem profissionais para ir além disso. Mas, com o caos social, essas prefeituras tiveram de ir criando os primeiros atendimentos simples de atenção básica nas periferias.


Sem nenhum assessoramento, os prefeitos chamavam alguns profissionais de saúde, aposentados ou que não estavam atuando na área, médicos, enfermeiros, dentistas, e punham para trabalhar nas periferias dentro de uma kombi qualquer. A cada dia da semana, essa kombi ia a um bairro. A população fazia fila para ser atendida. Era um atendimento de bom senso, para o que desse e viesse, e já era melhor que nada.


Mas rapidamente essas experiências foram sendo enriquecidas pelos jovens sanitaristas, que já tinham informação do que era a Atenção Primária na Europa. Eu, naquela época, era um desses jovens. Trabalhei em Londrina (PR) e depois em Campinas (SP). Aí foi açúcar no mel. Quando esses sanitaristas começaram, no final dos anos 1970, a dar apoio para as prefeituras, começaram a ser construídos os postinhos. Geralmente se alugava uma casinha no bairro, por um preço bem baixinho, e os atendimentos aconteciam três vezes por semana. A prefeitura começou a dar treinamento para os profissionais de saúde, começou a contratar auxiliares do próprio bairro, e o trabalho se dava de forma permanente.


Isso foi uma bola de neve, porque a própria população percebeu o benefício que passaria a ter, e começou a fazer pressão em cima dos prefeitos. A cada eleição, prefeitos e vereadores que prometessem ampliar esse projeto eram os mais bem votados e eleitos. A Atenção Primária nasceu assim no Brasil, muito antes da criação do SUS. No final da década de 1970 e começo dos 80, as cidades médias do Brasil já estavam assessoradas por sanitaristas praticando a universalidade, a equidade e a integralidade a nível municipal.


Estou tentando mostrar como o SUS nasceu antes da Constituição de 1988. Quando se deu aquela explosão democrática da sociedade, para pôr fim na ditadura, a elucubração, a formulação, os estudos de planejamento e de gestão pública para um novo sistema de saúde já tinham essa base. Não precisamos imitar os sistemas europeus, as prefeituras municipais já estavam dando aula disso.


Nos anos 1980, cada estado já tinha o seu Cosem, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde. Esses secretários se organizavam para trocar experiências e fortalecer os sistemas municipais. Esse foi um elemento histórico do surgimento do SUS, bem como a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Ela foi muito frutífera, porque não se tratava apenas de debater teoria: os secretários municipais deram testemunho de que tudo aquilo que estava sendo discutido já estava começando a ser posto em prática.


Naquela época, tinha-se como modelo o National Health Service (NHS) inglês e o sistema italiano. Também nos anos 1980 a Itália estava fazendo sua própria Reforma Sanitária, então foram convidados líderes italianos para debater e ajudar na construção do SUS brasileiro. Foi assim que o SUS surgiu e foi sendo concretizado.


O que foi aprovado no papel, em nossa Constituição, era equiparável aos melhores e maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Isso foi uma coisa muito positiva, os membros da Constituinte mostraram que tinham grande confiança naquilo que estava sendo feito e debatido entre os sanitaristas.


Até chegar a Constituição de 1988, o sistema de saúde brasileiro cobria apenas cerca de 50% da população. Não só o público, também o privado. Então metade da população estava ao deus dará, a mortalidade, o sofrimento e a taxa de doenças era altíssima. O que gerou um fenômeno social e político muito importante. Porque, nos debates contra a ditadura, a expressão “inclusão social” passou a ser muito assumida pela população. Não era uma bandeira apenas dos politizados e desenvolvimentistas, foi uma chama que incendiou o país. A metade que estava excluída foi para cima dos postos de saúde, hospitais e prontos-socorros com a sensação de que eles pertenciam a ela.


Essa sensação de inclusão social vem até hoje, apesar de todas as dificuldades do SUS. E é um dos maiores motivos da sua sobrevivência. Quando um simples postinho de saúde, um pronto-socorro ou um ambulatório maior reprime a demanda, a população se revolta, vai questionar o vereador, faz uma manifestação na frente da unidade de saúde. Há mobilização, a população não aceita passivamente não ser atendida.


A noção dos direitos de cidadania, para a saúde pelo menos, é uma noção que foi assumida e que não havia antes do SUS. Reinava um conformismo com o fato de metade da população estar abandonada. Hoje ela não se sente mais assim, e vai à luta.


SUS: cinco entraves e uma esperança


Nelson Rodrigues dos Santos em entrevista a Gabriela Leite


Para transformar o SUS, é preciso compreendê-lo a fundo. Uma das maneiras de entender como ele se formou e por que nunca chegou a ser implementado de acordo com seu projeto original é escutando alguns dos personagens mais importantes na sua criação. É justamente essa a importância do novo livro de Nelson Rodrigues dos Santos, chamado SUS e Estado De Bem-Estar Social, que foi lançado na última sexta-feira, 17/3. É também com esse objetivo que o Outra Saúde publica, hoje, a segunda parte da entrevista com o autor.


Na primeira parte, “Nelsão” traça uma breve história dos anos que antecederam o SUS. O mestre descreve a grande efervescência política dos anos 1980, a consciência política que se formou na sociedade para derrubar a ditadura e a sensação de que a justiça social precisava ser alcançada. Naquele momento em que se refletia sobre que novo Brasil devia ser construído, o movimento sanitarista brasileiro também dava grandes frutos.


Nelson explica que, com a urbanização acelerada e a pauperização da população, as periferias viraram lugares de enorme tensão. Tornaram-se, então, laboratórios para a construção da Atenção Primária à Saúde à moda brasileira. Sanitaristas que estudavam modelos de sistemas de saúde europeus uniram-se a prefeituras que enxergavam a urgência da mudança e começaram a construir as bases do que viria a ser o SUS.


Esse espírito e essas ideias confluíram na assembleia constituinte, e daí nasceu o Sistema Único de Saúde, na Constituição de 1988. Mas algo também se movia, mundo afora, em sentido contrário. O neoliberalismo chegou atrasado ao Brasil, mas ainda assim teve efeito devastador. O SUS, que estava pronto e poderia levar a saúde brasileira a outro patamar, foi sabotado desde o seu nascedouro.


Nelson aponta cinco grandes investidas ao sistema público de saúde brasileiro. Quatro deles atravessaram todos os 34 anos da democracia brasileira, tanto em governos do PSDB, quanto do PT, e também sob Michel Temer e Jair Bolsonaro. São: o subfinanciamento, o desfinanciamento, a não realização de uma reforma administrativa para transformar a gestão do sistema e o contínuo incentivo ao setor da saúde de mercado. O quinto elemento foi o chamado “teto de gastos” pós-golpe de 2016.


Essa segunda parte da entrevista com Nelson é elemento importantíssimo para compreender por que chegamos onde estamos. Ele explica como funcionam essas cinco puxadas de tapete que fizeram prosperar a saúde de mercado e minaram as possibilidades de o SUS concretizar suas três diretrizes de fato. Hoje temos a saúde universal, mas ela ainda falha em ser integral e equitativa.


Na abertura do livro SUS e Estado De Bem-Estar Social, o professor da e Saúde Coletiva da Unicamp, Gastão Wagner, escreve: “A esperança do professor Nelson emerge em cada página deste livro, de modo incansável, quando analisa os problemas sempre buscando renovar as estratégias de resistência e de avanços na batalha contra a desigualdade, por um SUS público e pela radicalização da democracia”.


Também nesta entrevista, que escancara tantos desafios, há um fio de esperança mobilizadora. Nelson enxerga os cinco grandes entraves e assegura: o SUS só está vivo graças à chama de luta política que foi acesa nos anos 1980 – e ainda não se apagou. É preciso aproveitá-la, mantê-la ardente, para que as transformações necessárias sejam alcançadas. Essa pode ser a tarefa da luta pela democracia hoje, em tempos sombrios – eis a tocha passada por “Nelsão” para as novas gerações.


A segunda parte da minha reflexão diz respeito aos anos após a Constituição de 1988. Para fins de análise, há cinco enfoques que podem ser destacados. São todos pontos negativos, investidas contra o SUS que explicam por que o sistema tem grandes falhas até hoje – apesar da forte resistência.


O primeiro que eu colocaria é o subfinanciamento federal. Logo depois da Constituição ter sido aprovada, em 1988, já nos anos de 1989 e 90, o governo surpreende afirmando que não investiria a mais na saúde – pelo contrário, se possível começaria a retrair a verba. Essa foi uma estratégia federal assumida durante os 34 anos do SUS, desde 89 até os dias de hoje.


Essa retração orçamentária federal coloca pode ser medida e comparada analisando a porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB). No mundo inteiro, o maior indicador de financiamento da Saúde é a porcentagem do PIB que vai para o sistema público. Nos países europeus e em outros com sistemas estáveis e bons, como Canadá e Japão, o gasto público é de 7% a 8%. No Brasil, essa porcentagem manteve-se sempre a cerca de 3,8% – por volta da metade dos países desenvolvidos.


Essa é uma estratégia federal que não dependeu de partido nem de governo, foi adotada por todos eles. E esse subfinanciamento pode ser visto também num número bastante impressionante que é o gasto per capita. Se pegar todo o dinheiro público usado para a Saúde e dividir pelo número de habitantes da população, o resultado brasileiro é 4 a 5 vezes menor que o desses outros países. Esses números são bem contundentes do ponto de vista do financiamento federal. Não adiantou estados e municípios investirem mais, durante essas três décadas foi colocado muito mais dinheiro por esses outros entes, mas o gasto federal retraiu consistentemente, mantendo os números estáveis.


O segundo ponto é consequência desse, mas diz respeito ao próprio financiamento do SUS. Trata-se do desfinanciamento. Ao contrário dos sistemas públicos de saúde europeus, dentro do SUS, 65% das internações hospitalares no Brasil são feitas em hospitais particulares. Quer dizer, em vez de incentivar e investir em hospitais públicos de boa qualidade, o SUS desinveste. O desinvestimento federal impulsionou o desinvestimento na construção de mais hospitais e colocou dinheiro na contratação de hospitais privados para atender o público. Entre todas as internações pelo SUS, 65% se dão em hospitais privados contratados.
Em termos dos chamados exames e tratamentos auxiliares, algo que dá muito mais dinheiro que internação, onde estão as tecnologias de saúde mais caras e sofisticadas, mais de 90% é contratado do mercado pelo SUS. É ali onde a própria produção capitalista mais apropriou tecnologia e mais investiu – e onde o desinvestimento federal foi ainda maior.


Outra consequência do desinvestimento federal são os recursos humanos de saúde. Diz respeito à abertura de concursos públicos para selecionar e treinar bons profissionais, como acontece em sistemas públicos de saúde europeus. Também isso foi retraindo no Brasil, e hoje, 65% dos profissionais de saúde que trabalham no SUS são fornecidos por empresas privadas. E eles são subremunerados, para caber no orçamento público encolhido. Ao diminuir o investimento público, o SUS não pode contratar e pagar bons salários a seus próprios profissionais de carreira, então é obrigado a contratar empresas que pagam pior.


A última das consequências do desinvestimento é a própria gestão dos serviços públicos, de hospitais, laboratórios e até Unidades Básicas de Saúde. Ao longo do tempo, elas foram deixando de ser geridas por diretores públicos. Aí surgem gestores privados, e os mais conhecidos são as Organizações Sociais (OSs). Hoje, no Brasil, 73% das unidades públicas, desde unidades básicas até hospitalares, são geridas por entes privados contratados pelos governos.


Assim se dá a privatização por dentro do SUS, causada pelo desinvestimento federal.


O terceiro ponto se refere a um acontecimento de decisão política do governo federal, na década de 1990. O governo de Fernando Henrique Cardoso teve a iniciativa de fazer uma grande reforma administrativa do Estado Brasileiro – até criou um ministério para isso. Passado quase um ano dessa reforma, qual foi o resultado? Uma vasta privatização de instituições, e mesmo parte da gestão pública – não só da área de Saúde, mas em todas as outras.


No papel, a reforma administrativa que foi aprovada pelo Congresso Federal tinha dois grandes componentes: a privatização e a “reforma da gestão pública”, tendo em vista uma melhora na eficiência. Mas essa segunda parte nunca foi concretizada. Faltou dar o passo seguinte, que era tornar a gestão pública mais eficaz e mais moderna.


Na Saúde, isso foi tão drástico que acarretou até num pedido de demissão de dois ministros: em 1993, Jamil Haddad, e em 1996, Adib Jatene. Ambos se demitiram por perceber que, com a reforma pela metade, com o desinvestimento e o subfinanciamento federais, não seria possível construir o SUS como ele havia sido pensado, segundo a Constituição.


Em quarto e penúltimo lugar entre os retrocessos e obstáculos ao SUS foi o financiamento e as ajudas concedidas à saúde de mercado. O setor privado tem o nome oficial de “suplementar”. Os planos e empresas de saúde, que são hoje centenas, atendem apenas 25% da população – que vai desde pessoas que pagam planos muito baratos até os da elite, que chegam a custar mais de 10 mil reais por mês. Outros três quartos dos brasileiros não têm condições de comprar nenhum plano ou serviço privado, por mais barato que seja.


Esses incentivos do governo federal para o mercado de saúde se dão por meio de injeções de recursos públicos – a principal se chama renúncia fiscal. O Brasil não cobra impostos dessas centenas de empresas, além de não cobrar imposto de renda de pessoas físicas que pagam plano de saúde.


Esse ponto expõe claramente a puxada de tapete que o governo federal dá no SUS há 34 anos. O incentivo é tão volumoso que a soma das renúncias fiscais federais para essas centenas de empresas de planos privados dá um valor maior que a soma de todo o lucro líquido declarado por elas. Enquanto se retrai o orçamento do SUS consistentemente ao longo de três décadas, abre-se caminho para o crescimento do setor privado.


Eu gostaria de deixar claro que esses quatro primeiros obstáculos que listei, que o governo federal impõe ao SUS, foram mantidos por todos os governos e coalizões partidárias, desde o início da Nova República.


Já a quinta e última pancada federal no SUS é mais recente, teve início no final de 2016, com a Emenda Constitucional 95, que criou o chamado “teto de gastos” que estrangulou investimentos sociais, aprovada com suporte do governo de Michel Temer. Foi mais uma medida para retrair os recursos federais destinados ao SUS.


Agora, gostaria de elaborar duas grandes conclusões finais. A primeira consiste em reforçar que essas estratégias atravessaram todo o período democrático, independente de quem ocupava o governo. Esse é um debate que está acontecendo e deveria estar posto para toda a militância política, todas as entidades como Abrasco, Cebes, a imprensa da área da saúde e principalmente toda a sociedade brasileira. É preciso que haja compreensão da força negativa que é posta contra os direitos da população durante os 34 anos do SUS.


A outra constatação que acho muito interessante é aquilo que falei no início da minha análise: o SUS foi crescendo antes da Assembleia Nacional Constituinte, já estava sendo implementado antes de sua criação – e precisava ter sido acelerado a partir dela. Pelo contrário, os estímulos foram muito menores do que se esperava. A velocidade com que o SUS cresceu nos anos 1980 foi muito maior antes da Constituição do que no pós-1988 – porque o governo federal privilegiou o setor privado de saúde.


Essa constatação precisa suscitar um debate em que a sociedade se reaproprie da luta pelo SUS, ela mesma como ator principal de uma política pública de cidadania. A saúde como bem público, assim como a educação, são conquistas sociais de direito e cidadania, que foram muito potencializadas nos anos 1980. E essas mesmas lutas foram sendo disfarçadas, desviadas por uma estratégia federal a partir da década seguinte.


Agora, é possível fazer uma constatação que acho que pode ser muito interessante Dessas quatro primeiras pancadas que o SUS levou – o subfinanciamento, o desfinanciamento, a reforma administrativa falsa e a proteção ao setor privado suplementar – se qualquer uma for aplicada a qualquer bom sistema de saúde europeu, o que vai acontecer?


Se aplicarmos o subfinanciamento no NHI inglês, o desinvestimento federal no sistema sueco, a reforma administrativa que só serviu para privatizar no sistema canadense, o enorme privilégio do setor privado no sistema francês… O que acontece?


Os sistemas serão destruídos.


É uma comparação que está sendo feita em muitos debates. Como foi que o SUS aguentou tantas pancadas ao longo de 34 anos?
Eu estou entre os que acreditam muito nessa força da população brasileira. Aquele impulso dos anos 1980, há mais de 30 anos, que conquistou de volta a democracia, que derrubou a ditadura e foi capaz de criar uma Constituição de direitos humanos universais, criou uma chama que passa de geração em geração e ainda está presente na sociedade.


Durante todos esses anos, as diretrizes de equidade e de integralidade não estão acompanhando a de universalidade. Esta última está dada, mas as duas primeiras – que resolveria de 80% a 90% das necessidades básicas de saúde, ainda não foram conquistadas pela população brasileira.


Mas dentro do trabalho dos Conselhos Municipais, Estaduais e Federais de Saúde, no trabalho diário das secretarias municipais, essa é uma chama que não foi apagada. Esse sentimento de inclusão social, que é uma chama de esperança, continua habitando a cabeça da população.


Nessa linha que estou formulando, a pandemia foi de fato muito trágica, mas trouxe esse aspecto bom. Ela reacendeu a chama do SUS na cabeça das pessoas – por mais insuficiente que o combate à pandemia tenha sido, foi no sistema público de saúde onde a pandemia foi combatida para valer. Então apesar de tantos desastres, tantas mortes desnecessárias causadas pelo governo federal, o SUS mereceu as esperanças da população.


Mesmo com essa realidade de destruição, a nossa população brasileira ainda mantém a chama do SUS acesa para defendê-lo. Aí reside uma esperança de retomada do movimento em favor dele.


E o novo governo não pode atacar apenas o “teto de gastos”, é preciso superar os cinco obstáculos. Enfrentar o subfinanciamento, o desinvestimento, implementar uma reforma administrativa para fazer a gestão pública mais eficiente, retirar o apoio financeiro para o mercado de saúde… e acabar com a Emenda 95.


Como fazer essa chama aumentar para provocar o governo Lula a fazer mudanças reais?


Isso vai depender do grau de politização e orientação que vai haver nos debates em relação a esse governo. Vamos ter que continuar enfrentando essas coisas que coloquei. O mercado de saúde também existe na Europa, no Canadá e nos países orientais, mas esse mercado abrange entre 10% e 15% da população. Os fregueses são apenas a classe média alta e a elite social.


No Brasil, com essa enorme e crescente ajuda federal concedida ao mercado, a taxa é de 25%. Isso abrange a classe média-média. Ali está também grande parte das lideranças da população, que poderiam fortalecer a luta em favor do SUS. Dentro dessa classe está quase a totalidade dos trabalhadores assalariados sindicalizados. As centrais e federações sindicais estão de cada estado resolvem a saúde de seus membros no setor privado, não no SUS.


A sociedade está perdendo essa grande força política. Nos países com sistemas públicos fortes, os sindicatos fazem uma pressão importante para mantê-los. Aqui, a pressão dos trabalhadores cai em cima do ministério da Justiça, porque é lá onde são discutidos os dissídios salariais e os planos de saúde. Esse é um desdobramento que temos que pensar também.


Para se ter uma ideia dessa distorção, os planos privados de saúde, no começo do SUS, eram apenas uma meia dúzia de empresas. Algumas no ABC paulista e outras no Rio de Janeiro. A maior parte era até estrangeira. Então, no momento em que foi aprovada a Constituição, teria sido fácil para o governo estar ao lado do SUS. Mas ele fez o contrário: poucas empresas se transformaram em centenas, com a concessão de renúncia fiscal. O SUS foi sabotado e o mercado de saúde engordou – e atraiu a classe trabalhadora.


Teremos abertura para mudanças nesse novo governo Lula?


Nós fomos tão enforcados durante 34 anos que isso não será trabalho para um ano de governo, ou mesmo para um mandato. É um trabalho que vai precisar ser feio ao longo de um período maior, para fazer com que centenas de planos privados comecem a perder clientes. Essa estratégia precisa ser inteligente e muito bem debatida, para ter força suficiente – e mesmo assim vai precisar se estender ao longo de algumas gestões. Mas para mudar, precisa querer desde já.


Entrevista publicada na revista digital Outra Saúde, em 24.03.23:
Primeira parte: https://outraspalavras.net/outrasaude/breve-historia-do-sus-na-narrativa-de-um-mestre/


Segunda Parte:
https://outraspalavras.net/outrasaude/sus-cinco-entraves-e-uma-esperanca/


Assista o debate do lançamento do livro SUS e Estado De Bem-Estar Social, de Nelson Rodrigues dos Santos: https://youtu.be/h5o5fImUNsw




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