Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 09 - Março 2020

Índice

  1. Coronavírus, Saúde e Estado - por Lenir Santos

Coronavírus, Saúde e Estado

Por Lenir Santos


A disseminação global da doença causada pelo coronavírus, classificada até agora pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como de risco muito alto, certamente colocará em xeque os sistemas de saúde dos estados-partes pela exigência de respostas capazes tanto de prevenção coletiva quanto de assistência individual.

Dificilmente, no mundo globalizado, essa aldeia global, absolutamente conectada em seu mais amplo sentido, com grande mobilidade social, economia interdependente, será difícil evitar o alargamento de contágios, como o do coronavírus, se medidas globais de prevenção de riscos não forem adotadas e se o direito à saúde não for uma realidade jurídico-social. Isso nos faz voltar a atenção para a governança global em saúde e suas ações de prevenção de perigos sanitários em escala mundial, com a OMS, como organismo essencial à proteção à saúde mundial.

A governança da saúde global tem como campo de atuação evitar três ordens de riscos: a) danos à saúde coletiva (segurança sanitária; b) danos à saúde individual por falta de serviços assistenciais; e c) danos econômicos ao desenvolvimento mundial.

A responsabilidade dos estados-partes na adoção de medidas de segurança sanitária é fundamental e consequentemente colocará em evidência os seus sistemas de saúde, os quais devem responder pelas medidas de segurança coletiva e assistência individual. Sistemas universais de saúde, como o brasileiro, que garante a todo o cidadão o direito à saúde, de modo universal e igualitário, estarão à prova quanto à sua eficiência, sempre dependente de diversos fatores, como o financiamento adequado.

Países com serviços de saúde que não garantem acesso universal, certamente terão dificuldades em satisfazer um dos direitos essenciais do ser humano, previsto na Declaração Universal de 1948, com forte impacto no desenvolvimento econômico, pelos danos que uma epidemia como a do coronavírus pode causar às pessoas, dadas as suas características epidemiológicas que são a facilidade de contágio e a letalidade frente aos mais velhos[1] . O modelo norte-americano vêm demonstrando a sua inviabilidade perante a população na garantia desse direito, tanto que nas eleições americanas que se aproximam, a saúde tem sido considerada como elemento essencial para o cidadão, estando presente nos debates e programas políticos[2].

Isso mais uma vez demonstra que saúde é um direito de caráter universal, humano, que nasce com as pessoas e que deve ser garantido a todos, sem exceção, assim como o direito à liberdade, aliás, o qual não pode ser exercido sem que outros direitos sejam satisfeitos, como a saúde e os mínimos existenciais.

A História nos conta que o agravamento da situação de saúde dos povos e suas implicações econômicas, foram grandes promotores de mudanças políticas; o sofrimento e o clamor social nem sempre foram elementos essenciais para a garantia de direitos humanos, raramente tendo o sistema político se antecipado a doenças e mortes ante a omissão pública. Mas quando a economia foi afetada, mudanças foram promovidas, conforme bem demonstra Romero em sua obra sobre saúde e política[3] .

A epidemia causada pelo coronavírus certamente reafirmará a necessidade de aprofundamento da discussão global de positivação do direito à saúde – um direito humano que nasce com as pessoas – nos ordenamentos jurídicos dos países que ainda não o fizeram, para prevenir agravos e riscos e garantir assistência a sua população, e coibir danos globais por pandemias. Sistemas universais de saúde são uma necessidade humana que se impõe como um reclamo global, e, em momentos de perigo coletivo, como o de uma pandemia pelo coronavírus, ela se torna patente.

Assim, no âmbito da governança global em saúde deve-se propugnar pela garantia nos ordenamentos jurídicos dos países soberanos, o direito à saúde, expresso na Declaração Universal de Direitos Humanos, como medida de garantia do exercício das liberdades, em nome da dignidade e solidariedade dos povos.

Mas também não basta o reconhecimento do direito à saúde na legislação, é necessário suportá-lo de modo efetivo, observando-se certas premissas, como financiamento suficiente; modelo focado na atenção primária em saúde; a prevenção como prioridade; poderes para intervir nas causas das doenças, como a obesidade, o diabetes, a pressão alta, a não-imunização, meio ambiente, dentre outras.

O Sistema Único de Saúde (SUS), pelo Ministério da Saúde, e demais autoridades sanitárias federativas, vem mostrando a sua importância há 31 anos e agora, frente a situação do coronavírus, responde de modo eficiente ao risco epidêmico; por ser um sistema de saúde de responsabilidades estatais descentralizadas, com serviços em 5.570 municípios e em 27 estados, estará colocado em evidência em caso de uma epidemia, e dependendo de suas respostas assistenciais (prestacionais) à população, ensejará discussões, fundadas na realidade dos serviços para o seu fortalecimento, porque sem o SUS o país jamais teria condições de enfrentar tal risco sanitário, lembrando que novos vírus surgirão, novos riscos, mutações, doenças, que muito exigirão do sistema público de saúde num mundo globalizado e num país que envelhece a passos largos.

Em nível global é uma oportunidade para se debater nos organismos internacionais de governança da saúde a necessidade de os estados-partes contarem com sistemas universais de saúde, em especial pelas desigualdades que se aprofundam dia a dia. Em nível nacional, cabe ao Brasil reconhecer e reafirmar a importância do SUS, e a depender de sua capacidade de resposta em circunstâncias emergenciais como as de agora, discutir com maturidade e compromisso político-social, as suas carências frente ao seu preocupante desfinanciamento que afetará a todos, com ou sem novas epidemias.

O subfinanciamento da saúde brasileira é fato público e notório, sendo que o seu desfinanciamento, iniciado a partir da EC 95, vem se tornando também público, com o próprio Tesouro Nacional[4] identificando perdas na ordem de 9 bilhões de reais, em 2019. Uma oportunidade para as autoridades sanitárias demonstrarem à área econômica do governo, a urgente necessidade de se aportar mais recursos e romper com a EC 95, que impõe perdas de vidas, agravos à saúde e ampliação do risco sanitário. A própria OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)[5] reconhece que o surto do coronavírus causará uma recessão global e que saúde é essencial para o desenvolvimento econômico. Infelizmente, é preciso, muitas vezes, crises sanitárias, para o Estado deixar a cegueira do não reconhecimento de que acima dos mercados estão a vida e a saúde das pessoas.


Referências
[1] Coronavírus. Drauzio Varela. Folha de S.P. 1.3.2010. Ilustrada.
[2] Sistema de saúde será tema crucial para definir rival de Trump. Diogo Bercito. Folha de S.P. 28.2.2020. Mundo.
[3] Romero, LC. Saúde & Política. Brasília: Outubro edições. 2019.
[4] “Saúde deixou de receber 9 bilhões em 2019 devido à regra do teto do gastos, mostra Tesouro Nacional”. G1.globo.com
[5]“Coronavírus pode gerar nova recessão global, alerta OCDE”. Folha de S. Paulo, 3.3.2020. Mercado.


Lenir Santos, atual presidente do Idisa, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp e professora colaboradora da Unicamp.




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