Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 09 - Março 2022

Índice

  1. Doação de Sangue Não Pode Parar! - por Carmino de Souza e José Francisco Comenalli Marques Jr.

Doação de Sangue Não Pode Parar!

Por Carmino de Souza e José Francisco Comenalli Marques Jr.



Foto: Leandro Ferreira/Hora Campinas

Muito se sabe, se fala e se argumenta acerca da necessidade de haver estoques de sangue nos hospitais para salvar vidas em situações de emergência. Mas pouco se vive na pele de outra pessoa, o que é ser dependente de sangue para sobreviver, como muitos pacientes com anemias de causas genéticas, falências da medula óssea, entre outros. E essa é uma situação que se agravou recentemente, pela mudança de paradigmas que vivemos hoje. Essa mesma necessidade de sangue, seus componentes e derivados, se faz progressivamente crescente, tanto pelo envelhecimento global da população, como pela maior complexidade dos tratamentos, destacando-se os oncológicos, grandes cirurgias, transplantes, entre outros.

No Brasil, dados do Ministério da Saúde apontam aproximadamente 3 milhões de doações de sangue por ano no país. Necessárias? Obviamente, sim! Suficientes? Certamente, não.

Esse dado representa aproximadamente apenas 1,6% da população doando sangue regularmente, e o suficiente, segundo a Organização Mundial da Saúde, seria de, pelo menos, 3%. Mas de quem é a responsabilidade pela manutenção de estoques suficientes de sangue? Podemos dizer, com total certeza, que de TODOS e de TODAS! Uns mais diretamente, como os órgãos governamentais ligados à saúde, Associações de Pacientes, Sociedades Médicas, etc., e outros, por incorporar uma cultura de fazer bem ao próximo e a si mesmo, congregando desde o cidadão comum, por um ato de cidadania, passando por formadores de opinião, entidades organizadas, imprensa, empresas, etc.

Destaque se faz, no Brasil, assim como em vários países do mundo, ao protagonismo de Associações Médicas ligadas à especialidade de Hematologia, no nosso caso, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular – ABHH, que investe constantemente tanto na divulgação como na viabilização de campanhas de doação pelo Brasil, orientando, coletando, divulgando e promovendo eventos que fomentam o afluxo dos doadores a locais e serviços de coleta de sangue. No momento, está a pleno vapor o projeto UM SÓ SANGUE (http://umsosangue.com.br), um programa robusto de incentivo à doação de sangue, tanto para o acesso dos doadores como para participação de entidades e serviços de hemoterapia. Vale a pena entrar nesse site e se inteirar dos detalhes. Mas outros aspectos compensam ser refletidos.

Um importante agravante dessa quantidade insuficiente de sangue coletado, é a sazonalidade das doações que, invariavelmente, diminuem em épocas onde as necessidades aumentam, como feriados, férias, finais de ano, etc. Tudo isso amplificado com a situação da pandemia desde o início de 2020, quando em diversos períodos, inclusive o atual, os estoques de sangue ficam criticamente baixos, comprometendo o tratamento de pacientes que dependem dele para viver, além de promover a suspensão das já comprometidas cirurgias eletivas.

Mas não é só no Brasil que a doação de sangue se mostra insuficiente quantitativamente para suprir a crescente necessidade de obtenção de componentes sanguíneos e matéria prima para a produção de Hemoderivados. Importante destacar um relevante aspecto dessa constante insuficiência, que é a necessária concorrência com a imprescindível qualidade exigida nesse campo da medicina. Explicamos: Uma vez que, por ser exclusivamente obtido de um ser humano, o sangue doado para fins transfusionais pode acarretar riscos remotos tanto para quem doa quanto para quem recebe.

Para quem doa, esses riscos são evitados através de exames pré-doação, entrevista acerca das condições de saúde, parâmetros antropométricos e dos sinais vitais. Para os pacientes, a situação é mais complicada, havendo potenciais e raros riscos imunológicos e/ou infecciosos. Essa dicotomia entre a exigência de uma maior qualidade em detrimento da quantidade se faz fundamental, mesmo não permitindo a doação ou se desprezando sangue coletado cujos exames, cada vez mais numerosos e sensíveis, impedem que seja transfundido para os pacientes.

A preocupação com a qualidade do sangue para minimizar riscos é relativamente recente e multifatorial, ao se considerar a contemporaneidade da Hemoterapia, tanto no aspecto social quanto no científico.

Lembramos que a circulação sanguínea foi descrita por William Harvey em 1627, quando começaram as tentativas de se transfundir sangue pela correlação que havia entre o seu extravasamento por traumas ou vias naturais, como boca, nariz, intestino, etc., e a morte, aferindo que a sua reposição poderia devolver a vitalidade. Porém, esse procedimento era raramente eficiente e com muitas reações fatais antes de 1900, quando foram descritos os grupos sanguíneos ABO, marco que denominamos como o início da fase científica da Hemoterapia.

Mais tarde, em 1941, foram descritos os grupos Rh, positivo ou negativo. A partir daí evoluções no campo da Hemoterapia culminaram em uma progressiva melhora da qualidade e da efetividade do tratamento através de transfusões, para ser considerado um procedimento altamente seguro nos dias atuais. Mas o grande salto na consciência da necessária melhoria da qualidade do sangue a ser transfundido se tornou muito mais evidente com o aparecimento da Aids no início da década de 1980 e a caracterização da sua transmissão por transfusão, vitimando muitos pacientes que dependiam de sangue, componentes e derivados para sobreviver, como pacientes portadores de talassemia, anemia falciforme e hemofilias.

A partir daí o Brasil, seguindo o modelo francês de Política de Sangue, implementou uma série de regras, cuidados, ações e logística para minimizar a transmissão dessas e de outras doenças. Há várias curiosas, como adição de violeta de genciana ao sangue doado para evitar transmissão de doença de Chagas, por exemplo. Mas não só de exames no sangue doado aumenta a qualidade e minimiza os riscos. Várias outras estratégias devem ser adotadas para garantir uma transfusão, a mais segura possível.

Uma das mais importantes e eficientes adotadas no Brasil foi a proibição da doação remunerada, que constituiu um marco na alavanca da qualidade do sangue coletado. Muitos países do 1º mundo, incluindo os Estados Unidos da América, ainda mantém essa prática, em detrimento da qualidade das informações prestadas pelos doadores na ocasião da coleta, com clara intenção de obter benefícios com sua doação.

Além disso, há necessidade de se evitar, também, outros benefícios menos evidentes, mas também importantes, como a coação, troca por prêmios, ingressos para jogos de futebol, promessas de empregos e, até, muito frequentes, apelo emocional por parte de família e amigos! O doador voluntário, benévolo e altruísta, sem dúvida, é o doador ideal, é a preocupação com o próximo, a ciência da sua responsabilidade, a índole se manifestando nas suas melhores intenções, que constituem os ingredientes básicos de uma nobreza de caráter.

A política de sangue no Brasil, hoje, é motivo de orgulho por ser um dos mais seguros do mundo, nascido de um projeto muito bem estruturado como um programa de governo. Claramente necessário, porém, volto a dizer, insuficiente. O Brasil ainda depende da produção de hemoderivados de outros países, pagando cifras altíssimas para importar os hemoderivados para os pacientes que os necessitam. Em processo de construção, a HEMOBRÁS, quando em funcionamento, que esperamos o mais breve possível, necessitará de muita matéria prima para a produção de fatores de coagulação e imunoglobulinas, principais hemoderivados utilizados na prática clínica, o que exigirá um aumento substancial da doação de sangue no país.

Para finalizar, além de boa saúde, para ser um doador de sangue a pessoa deve ter mais duas características básicas, como já dito anteriormente: benevolência e altruísmo.

Benevolência remete ao afeto e estima em relação a alguém. Altruísmo é pensar no outro antes de pensar em si mesmo. A junção dessas duas características remete à nobreza de caráter e um alto grau de humanismo. É fundamental que essas pessoas se auto incentivem e busquem disseminar a prática da doação de sangue, que não lhe tira nada, mas oferece vida, esperança e tempo para outras pessoas usarem em suas conquistas, sonhos, prazeres e cumprimento de missões que determinaram para suas vidas. E tão importante quanto, é que as entidades governamentais, científicas e sociais fomentem e invistam recursos e criatividade nessa iniciativa.

A felicidade do mundo depende de cada um! Façamos a nossa parte. Se você não puder doar sangue, convença alguém de bem a doar! O resultado é o mesmo! E não pode ser melhor! Por tudo isso, são justificáveis as razões para as campanhas de incentivo à doação de sangue constantes e frequentes! Altamente necessárias. E que sejam suficientes!


Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020.

José Francisco Comenalli Marques Jr é médico hematologista e hemoterapeuta, com mestrado e doutorado em Clínica Médica e Presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) da Associação Médica Brasileira (AMB)


Fonte: Artigo publicado no site Hora Campinas em 28 de fevereiro de 2022.




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