Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 10 - Abril 2021

CRÔNICA DE QUATRO MIL MORTES DIÁRIAS ANUNCIADAS (COM TENDÊNCIA DE ALTA): A CONTRIBUIÇÃO PARA ESSA TRAGÉDIA DO (DES)FINANCIAMENTO FEDERAL DO SUS DURANTE UM ANO DE COVID-19

Por Francisco R. Funcia





















Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.



O FINANCIAMENTO DO SUS: FEITIÇOS E FEITIÇARIAS

Por Lenir Santos & Francisco Funcia


Sempre fez parte da vida humana a religião, a mitologia, a bruxaria, os feiticeiros. A astrologia ocupava lugar de destaque nas cortes, com astrólogos, oráculos, videntes. O ser humano mortal sempre buscou explicações para as suas subjetivas angústias, perplexidades e somente o desenvolvimento e o fortalecimento do conhecimento científico permitiu o desfazimento da névoa de crenças sem fundamentos.

Entretanto, parece que essa névoa não se desfez amplamente, pois ainda se enxerga jacaré na vacina e a terra plana. A crença na ciência não baniu a na água benta. Pois é isso o que ocorre com o direito fundamental da saúde a garantir a todos, ações e serviços para sua proteção, promoção e recuperação.

Um direito assegurado, cantado e decantado em artigos, livros, discursos, desde 1.988, com 32 anos de lutas pela sua efetividade real, não enfeitiçada; para prover o Sistema Único de Saúde (SUS) de recursos financeiros suficientes, transformando o formal em real, sem mágicas e feitiçarias, apenas cumprindo as leis do país. Como diz Bobbio chega de proclamar direitos; é hora de usufruí-los.

O orçamento da saúde para o ano de 2021, apresentado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo, parece uma obra de feitiçaria. Primeiramente, com o feitiço lançado em toda a sociedade em 2016, o caldeirão mágico da EC 95, a fazer crer ser possível ao Estado manter as suas responsabilidades constitucionais de garantir uma sociedade justa, igualitária, com erradicação das desigualdades sociais, com recursos financeiros congelados por 20 anos, somente atualizados pelo IPCA, ou seja, desconsiderando-se as demandas de uma população que cresce 0,8% ao ano. Do orçamento total (despesas primárias somadas às despesas financeiras), deve-se excluir 47% para o pagamento dos encargos da dívida pública, reservando-se tão somente 53% do orçamento público da União para a sustentabilidade das despesas primárias destinadas a atender as necessidades da população e, nessa perspectiva, a razão de ser do Estado.

Somente um plano de feitiçaria para fazer crer que o Estado cumprirá as suas responsabilidades constitucionais com tais recursos, ainda mais em momento de queda do PIB, retração da economia brasileira e mundial, pandemia da Covid-19, exigentes de ampliação das despesas primárias para compensar os efeitos da crise sanitária e econômica, conforme muitos países vêm fazendo.

Focando no orçamento da saúde pública, os maiores atos de feitiçaria se iniciaram em março de 2020 ao se predeterminar que a pandemia da Covid-19 terminaria em 31 de dezembro de 2020, cessando assim a emergência sanitária. Uma feitiçaria de muitos feiticeiros do rei.

Decidiu-se em agosto de 2020, que no orçamento da saúde de 2021 não haveria recursos para a compra de vacinas, por desnecessário aos olhos dos feiticeiros da corte, e que não haveria recursos para quaisquer ações e serviços de saúde para o enfrentamento da Covid-19 em 2021, por ela findar-se magicamente no dia 31 de dezembro de 2020.
Mas os feiticeiros em suas prodigalidades decidiram também que o orçamento da saúde de 2021 não deveria conter recursos para o enfrentamento das demandas reprimidas, ou seja, para atendimento das pessoas com enfermidades no aguardo do alívio dos hospitais e serviços de saúde que retornariam em 2021. Os feiticeiros do rei não conseguiram com seus feitiços curar essas pessoas que continuam doentes. Esses feiticeiros da corte não são tão bons quanto eram os deuses do Olimpo que tudo podiam e tudo faziam, como atrasar 10 anos o regresso de Ulisses à Itaca (Odisseia, Homero).

O orçamento da saúde em 2021 deverá atender as demandas da Covid-19; compra de vacinas; atendimentos reprimidos de 2020; alta da inflação de insumos, equipamentos, produtos da saúde; manutenção dos leitos de UTI e clínicos para a Covid-19; as insuficiências próprias do SUS; a contratação de pessoal; dentre outras necessidades, com apenas R$ 134 bilhões – valor que corresponde ao piso federal de 2017 (R$ 123,8 bilhões), acrescido da variação do IPCA, e mais R$ 10 bilhões de emendas parlamentares, das quais, apenas R$ 1,1 bilhão se destina ao enfrentamento da Covid-19. Só muito realismo mágico para contemplar todas essas ações no orçamento de 2021, previsto e aprovado pelos Poderes da República.

Como não há mais emergência sanitária declarada formalmente, não se poderá prover novos créditos extraordinários para a saúde por não haver mais nenhuma situação urgente e imprevista. Será inconstitucional emitir créditos extraordinários para Covid-19 em 2021, podendo-se dizer tratar, isso sim, de uma “mega” pedalada fiscal, combinada com “contabilidade criativa” própria de “feitiçaria”, em flagrante desrespeito ao princípio legal da gestão fiscal responsável, por inviabilizar o planejamento do setor público e transformar, literalmente, o orçamento numa “peça de ficção”, porque não há feitiço contra a Constituição, ainda que sempre existam feiticeiros.

Outra questão é considerar despesa extraordinária, com lastro em recursos extraordinários, como piso mínimo obrigatório da saúde. Recursos extraordinários destinam-se a cobrir despesas imprevisíveis, extraordinárias e temporárias, o que não têm a ver com recursos ordinários para o custeio permanente do SUS. Mais uma obra de feitiçaria.

Em 2020, o valor empenhado em ações e serviços públicos de saúde foi de R$ 162,4 bilhões, sendo R$ 41,7 bilhões destinados exclusivamente para o enfrentamento da Covid-19. Ao se deduzir esse valor do total dos recursos da saúde 2020, temos R$ 120,7 bilhões para o custeio das ações e serviços públicos de saúde, ou seja, R$ 600 milhões abaixo do piso de 2020, que deveria legalmente ser de R$ 121,3 bilhões. Assim, o piso da saúde 2020 contém menos de R$ 2,1 bilhões (excluído desse cálculo os valores dos restos a pagar cancelados em 2020 e os recursos do pré-sal (que são valores a serem aplicados acima do piso)).

Como as despesas da Covid-19 do Ministério da Saúde – 2020, decorreram de créditos extraordinários, com destinação específica, esse valor deveria ser excluído do valor dos gastos com saúde não-covid-19, previstos no orçamento 2020, o que não ocorreu. São R$ 2,1 bilhões a menos.

Mas, pior que isso está sendo o ano de 2021. Um orçamento mágico, sem recurso para enfrentar a pandemia da Covid-19, que se agravou exponencialmente, numa segunda onda, com cerca de 4 mil pessoas diárias, sem ações do Ministério da Saúde para vacinar em massa a população no curto prazo, por incúria administrativa na gestão do planejamento e processo de compra de vacinas e insumos. Isso tudo sem recursos para viabilizar o pagamento de auxílio emergencial para a garantia do isolamento social, medida indispensável para conter o aumento do número de casos e de mortes pela Covid-19.

O que se dizer da repetição dessa tragédia anunciada também para 2022 – pois sem recurso orçamentário em 2021 – faltará vacina em 2021 e no início de 2022, dando ensejo a muitas ondas da epidemia e mutações viral a matar mais e mais pessoas.

Já passou da hora de o feitiço virar contra o feiticeiro.


Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.

Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.




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