Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 10 - Março 2020

Estimativas da perda de recurso de Sistema Único de Saúde (SUS) como decorrência da Emenda Constitucional 95/2016

Por Francisco R. Funcia


O objetivo desta breve Nota é demonstrar as perdas de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) como decorrência da Emenda Constitucional 95/2016.

Inicialmente, é oportuno informar que a palavra perda apresenta vários significados, dentre os quais: “1 Ato de perder. 2 Falta de algo que se chegou a possuir. (...) 8 Subtração parcial” (disponível em https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/perda/ Acesso em 07/03/2020).

Nestes termos, a perda de recursos do SUS a partir da vigência da EC 95/2016 significa que os recursos outrora existentes têm sido anualmente subtraídos parcialmente do financiamento federal dessas ações e serviços públicos.

Desta forma, quando se analisa a perda de recursos do SUS, as interpretações existentes decorrem das diferentes metodologias dos cálculos para apuração dessa perda, as quais, por sua vez, guardam relação direta com os diferentes pressupostos de análise dos autores desses cálculos. Para os objetivos desta Nota, serão consideradas como “perda” a diferença entre o valor efetivamente empenhado em 2019 e o valor calculado segundo cada parâmetro de comparação escolhido para esse fim.

Inicialmente, a mídia divulgou que a Secretaria do Tesouro Nacional apurou essa perda em R$ 9,05 bilhões em 2019 (disponível em g1/globo.com/noticia/2020/02/27/saúde-de-receber-r-9-bi-em-2019); esse valor foi obtido ao comparar o valor empenhado em 2019 com o valor de R$ 131,3 bilhões correspondente a 14,5% da Receita Corrente Líquida de 2019 (conforme escalonamento originalmente previsto pela EC 86/2015 para esse ano).

Cabe registrar que, com esse estudo, não há mais nenhuma dúvida dos efeitos maléficos da austeridade fiscal para a vida da população: afinal, a própria área econômica do governo federal admite perda de recursos para o financiamento federal do SUS por causa da EC 95/2016.

Contudo, o valor dessa perda está subestimado, pois a metodologia de cálculo adotada pela STN desconsiderou a decisão liminar do Ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595, que restabeleceu o princípio da vedação de retrocesso.

Considerando a aplicação federal no SUS pelo valor empenhado (critério que tem sido adotado na esfera federal desde a vigência da Emenda Constitucional 29/2000), as perdas de recursos sofridas pelo SUS em 2019 podem ser apuradas de duas formas, conforme ilustra a Tabela 1 a seguir.

Tabela 1 - Metodologia de Apuração das Perdas de Financiamento Federal do SUS em 2019

Elaboração Própria. Fonte: Adaptado de Ministério da Saúde - Planilhas de Execução Orçamentária e Financeira, posição dezembro encerrado) e de Secretaria do Tesouro Nacional – Demonstrativo da Receita Corrente Líquida (3º quadrimestre de 2019).
Notas:
(1) Respeito ao princípio constitucional da vedação de retrocesso, pois esse percentual vigorou em 2016 e 2017.
(2) Adoção de um percentual factível de empenhamento, porque efetivamente ocorrido em 2017, portanto, compatível com as contas públicas em época de teto de despesas primárias estabelecido pela EC 95.

É possível constatar que essas perdas significam redução de recursos para o financiamento do SUS: se estivesse em vigor o piso de 15% da RCL, o valor empenhado em 2019 seria R$ 13,2 bilhões maior que o efetivamente aplicado; mas, se fosse aplicado o mesmo percentual da RCL empenhado em 2017, o valor empenhado em 2019 seria 20,2 bilhões maior que o efetivamente empenhado.

Desta forma, fica caracterizado que a Secretaria do Tesouro Nacional subestimou a perda que a EC 95/2016 gerou para o financiamento do SUS – adotado o conceito de perda apresentado anteriormente, a saber, o SUS deixou de ter recursos que foram alocados anteriormente comparado ao piso e ao empenho como proporção da receita corrente líquida.

Porém, é urgente rebater o argumento frequentemente utilizado pela área econômica do governo e por analistas econômicos e da grande mídia, a saber, que a regra do “teto de despesa primária” precisa ser mantida “a qualquer custo”: a saúde estaria “protegida” dos efeitos da austeridade fiscal por causa da regra do piso federal estabelecida pela EC 95/2016 – a base de cálculo a partir de 2018 é o valor do piso de 2017 atualizado anualmente pela variação do IPCA/IBGE.

A comprovação da existência de perdas para o SUS como decorrência dos efeitos da EC 95/2016 está na Tabela 2, que apresenta o resultado da apuração dessas perdas acumuladas de financiamento federal do SUS a partir de 2018, quando a nova regra de cálculo do piso passou a vigorar como referência para a execução da despesa sob a lógica do teto de despesa primária federal total.

Para isso, foi considerada a aplicação de 15,77% da RCL, que foi o percentual efetivamente empenhado em 2017 sob a vigência da EC 95/2016; isto significa que foi possível garantir esse nível de financiamento para o SUS no cenário de restrição orçamentaria e financeira ou de austeridade fiscal. Nestes termos, aplica-se o conceito de perda, a saber, redução da aplicação em saúde verificada anteriormente.

Tabela 2 - Apuração das Perdas de Financiamento Federal do SUS no Período 2017 a 2019

Elaboração Própria. Fonte: Adaptado de Ministério da Saúde - Planilhas de Execução Orçamentária e Financeira (de 2017 a 2019, posição dezembro encerrado) e Relatório Anual de Gestão do Ministério da Saúde (2017 e 2018) e da Secretaria do Tesouro Nacional – Demonstrativo da Receita Corrente Líquida (3º quadrimestre de 2017 a 2019).

Em termos nominais (ou a preços correntes), se fosse adotada a aplicação de 15,77% da RCL verificada em 2017, a aplicação federal do SUS seria R$ 10,2 bilhões e R$ 20,2 bilhões maior que os valores efetivamente empenhados em 2018 e 2019 respectivamente, o que resulta numa perda acumulada (em termos nominais) de R$ 30,4 bilhões em dois anos!

A EC 95 está retirando recursos para o atendimento às necessidades de saúde de mais de 200 milhões de brasileiros, recursos esses que já eram insuficientes para esse fim – é sempre oportuno recordar que os gastos públicos consolidados em saúde (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) correspondem a cerca de R$ 3,60 por habitante/dia, equivalente a 4,0% do PIB (metade dos 7,9% dos gasto público em saúde da Grã-Bretanha em 2015, segundo a Organização Mundial de Saúde). Desses gastos públicos consolidados no Brasil, a parcela federal é de 43%, sendo que cerca de 2/3 dos gastos do Ministério da Saúde são transferências para Estados, Distrito Federal e Municípios.

Portanto, a EC 95/2016 prejudica duplamente essas esferas subnacionais: primeiramente, porque a atividade econômica cresce muito pouco a cada ano (em torno de 1%), o que compromete negativamente a arrecadação; e, também, porque gera pressão para alocação adicional de recursos próprios para o financiamento do SUS, o que representa uma “asfixia financeira” principalmente para os municípios, que tem aplicado muito acima do piso estabelecido pela Constituição Federal e pela Lei Complementar 141/2012.

Por isso, urge tramitar a PEC 01-D (que estabelece 19,4% da Receita Corrente Líquida da União como piso federal do SUS) para a aprovação em segundo turno na Câmara dos Deputados (pois já foi aprovada em primeiro turno em 2016) e nos dois turnos no Senado Federal, de modo a revogar as regras da EC 95/2016. Vale lembrar que o Conselho Nacional de Saúde, instância máxima de deliberação do SUS, deliberou favoravelmente sobre isso, sendo que a responsabilidade fiscal está garantida nessa PEC – o percentual de 19,4% seria atingido de forma gradual e escalonada em sete anos, o que possibilita adequar as contas públicas para esse financiamento.


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP. Integrante da equipe de editores da Revista Eletrônica Domingueira da Saúde “Gilson Carvalho” do Instituto de Direito Sanitário (IDISA), Professor e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), Consultor na área de gestão e finanças públicas com participação em projetos da Fundação Getulio Vargas (FGV Projetos) e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) na área de orçamento e financiamento do Sistema Único de Saúde.




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