Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 12 - Abril 2023

O uso indevido do termo “Gerenciamento de Unidades Públicas por Terceiros”

Por Valéria Alpino Bigonha Salgado


A terminologia “gerenciar serviços públicos de saúde”, frequentemente adotada em leis, normas e documentos técnicos para definir a natureza das relações estabelecidas por Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde com entidades civis sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais, é imprópria e inadequada, considerando que, à luz das normas constitucionais e legais e da doutrina jurídica que disciplinam o Direito Administrativo no Brasil, não haveria a possibilidade de uma entidade privada ser contratada para "administrar" (gerenciar) um serviço público.

A Administração pública é administrada, exclusivamente, por servidores ou empregados públicos, investidos em cargos ou empregos públicos, nos termos estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal. Conforme dispõe o Supremo Tribunal Federal, no Acórdão da ADI n. 1923, relativo à Lei Federal n. 9.637, de 1998, de organizações sociais, a publicização de serviços para uma organização social implica a terceirização da prestação de serviços e não da "gestão de serviços públicos", sendo que os serviços prestados pela OS são privados, ainda que de "interesse público".

A qualificação de entidades civis como organizações sociais visa à celebração de parcerias entre o Poder Público e a sociedade civil organizada, mediante fomento público (suplementação de recursos) para que a entidade funcione e consiga atingir os objetivos e as metas de desempenho institucional estabelecidas no ajuste da parceria (contrato de gestão), que convergem com o interesse público e com as políticas e estratégias estatais.

Nesse ambiente, é possível ceder imóveis e móveis públicos para a OS qualificada utilizar, na busca de alcançar os objetivos e metas de desempenho assumidos como compromissos perante o Poder Público; sendo que essa cessão se caracteriza como fomento público, junto com os recursos financeiros destinados à entidade, mediante transferência. No âmbito do contrato de gestão, não há pagamento à OS por serviços prestados, mas suplementação de recursos para que ela alcance sua finalidade institucional e atinja os objetivos fomentados pelo Governo.

Assim, ceder móveis e imóveis públicos para uma entidade privada utilizar na consecução de fins de interesse público é uma medida prevista expressamente no Direito Administrativo, dentro das normas que disciplinam a gestão patrimonial dos bens estatais. Entretanto, esses bens móveis e imóveis, quando cedidos para um ente privado, são utilizados na sua atividade que também é privada, regida pelo Direito Privado e administrada por seus próprios órgãos de direção superior (privados). O fato de uma entidade privada utilizar um imóvel e um móvel públicos não transforma a atividade que ela exerce em pública. E é importante que fique bem claro que não se transmuta a natureza de uma entidade privada e das atividades e serviços que ela presta pela mera celebração de um contrato de gestão. Contrato de gestão não é uma modalidade de concessão ou permissão e organizações sociais não são concessionárias de serviços públicos.

Portanto, por mais cacófono que possa parecer essa afirmativa, é de extrema importância reafirmar que a Administração Pública, por definição constitucional, é administrada por administradores públicos, investidos de cargos efetivos e/ou em comissão, que têm um conjunto de responsabilidades inerentes aos seus cargos previsto na Constituição Federal e nas Leis. As atividades e serviços públicos prestados por instituições estatais sujeitam-se a uma série de requisitos impostos pelo Direito Administrativo, que lhes é próprio, responsáveis diretamente, na esfera administrativa, civil e penal, por seus atos.

Ainda que uma pessoa privada também deva observar condições de uso e conservação de patrimônio público, cuja posse a ela foi transferida mediante cessão ou permissão de uso, isso não a torna um servidor, empregado e muito menos um administrador público.

No caso das organizações sociais, o que é transferido, mediante contrato de gestão, é a obrigação de prestar serviços de saúde - não públicos, mas privados, reconhecidos como de interesse público. Os bens - no caso as instalações e os equipamentos do hospital – podem ser cedidos à OS para apoiarem a execução de suas atividades, cuja natureza é privada e não pública, ainda que reguladas pelas condições e outras regras estabelecidas pelo gestor público no contrato de gestão e aceitas pela parceira privada (a organização social).

Portanto, é fundamental não confundir cessão de bens públicos com delegação de serviço público. A prestação de serviços públicos (à exceção das concessões e permissões, previstas no art. 175 da Constituição Federal) é prerrogativa dos órgãos e entidades da Administração Pública, nos limites das atribuições que lhe foram formalmente delegadas por lei, decreto ou portaria.

As atividades e serviços públicos de um hospital público integrante da estrutura organizacional de uma Secretaria de Saúde, por exemplo, são exercidos por gestores e agentes públicos ocupantes dos cargos públicos. O hospital público não corresponde, simplesmente, ao seu patrimônio. Trata-se do conjunto de competências e responsabilidades legais e normativas estabelecidas; de cargos em comissão e cargos efetivos que integram a sua estrutura; de gestores e servidores públicos; e, também, de bens móveis e imóveis e outros recursos logísticos destinados ao exercício de suas competências.

O serviço é a ação, é a responsabilidade do administrador público e dos servidores, regida pelas regras exclusivas do Direito Público. E, na forma da Constituição Federal, não se pode transferir a gestão da Administração Pública para um particular. Há profundas diferenças intrínsecas, entre um serviço público, prestado segundo as regras públicas e um serviço privado, realizado por uma entidade privada, qualificada como uma organização social.

São questões conceituais basilares e muito importantes para estabelecer e disciplinar os limites entre a atuação pública e privada, sendo que tais limites devem ser corretamente compreendidos, aplicados e defendidos pelos gestores públicos de saúde e seus servidores e empregados públicos. Quando se celebra um contrato de gestão, passa-se uma atividade (que deixa de ser eminentemente pública) para uma entidade privada exercer, reconhecendo-a como de interesse público. É inclusive o que entende o Supremo Tribunal Federal, na sua decisão acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923, de 2005.




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