Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 12 - Março 2019

Índice

  1. DESVINCULAÇÃO ORÇAMENTÁRIA: AVANÇOS E RECUOS NO FINANCIAMENTO DA SAÚDE - por Lenir Santos e Francisco R. Funcia

DESVINCULAÇÃO ORÇAMENTÁRIA: AVANÇOS E RECUOS NO FINANCIAMENTO DA SAÚDE

Por Lenir Santos e Francisco R. Funcia


O ministro da Economia, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, defendeu a desvinculação total do orçamento público (100%), afirmando, em dado momento, que os parlamentares ficam escondidos atrás de um documento escrito há 30 anos[1]. Preliminarmente, cabe dizer que, como não veio à lume o texto sobre a referida proposta, nossos comentários são no campo das hipóteses e que causou estranheza o fato de despesas de caráter obrigatório e continuado, como saúde e educação, por serem cláusulas pétreas em decorrência do disposto no artigo 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição, estarem no bojo da flexibilização. Aliás, para desvincular 100% do orçamento para disponibilizá-lo ao Legislativo, muito haveria que ser alterado, pois são obrigatórios o pagamento dos salários dos servidores, as despesas com previdência e os encargos da dívida, dentre outros, além da necessidade de uma ampla reforma tributária. Esse tema foi bem tratado por Fernando Scaff nesta ConJur[2].

Além disso, essa proposta despreza o ciclo orçamentário e seus instrumentos (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual) por defender a “desvinculação” e “flexibilização” do orçamento — pilares da gestão fiscal responsável estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

A referência também à Constituição como um simples “documento”, causa perplexidade por se tratar do pacto político-social regente da nação, resultado de uma Assembleia Nacional Constituinte, que se impõe aos parlamentares, presidente da República e demais autoridades que não podem “se esconder atrás” da carta política do país, mas, sim, tê-la como guia, devendo observá-la, cumpri-la e respeitá-la, como juraram ao ser empossados.

Lógico que isso não significa impedimento em promover mudanças necessárias, tanto que há mais de 90 emendas à Constituição nestes 30 anos, sendo obrigação primordial o respeito aos seus fundamentos, objetivos, cláusulas pétreas, sob pena de correção pelo STF, o seu guardião. A macrojustiça tem seus pilares nesses fundamentos, exigente de medidas como as vinculações de recursos da saúde e educação, pois sem recursos financeiros não há garantia de efetividade dos direitos sociais fundamentais.

É com esse espírito que elencamos abaixo, de modo cronológico e pedagógico, a saga do financiamento da saúde no Brasil desde 1988, como alerta aos que pensam ser pacífica a garantia de alocação de recursos para o seu financiamento de modo maduro e responsável, sem exigência de medidas de sua garantia para o alcance da justiça social, como o são as duas vinculações constitucionais para áreas essenciais da saúde e educação. As cláusulas pétreas da Constituição atuam como cofre de segurança contra medidas de retrocesso na garantia de direitos fundamentais, na forma federativa de Estado, na separação dos Poderes e outros. Só tem essa chave a Assembleia Nacional Constituinte.

Em 30 anos de Constituição, comprova-se a necessidade dessas medidas de segurança contra o desrespeito à garantia de financiamento adequado (temática abordada por Áquilas Mendes e Leonardo Carnut na Revista Domingueira da Saúde[3]). Não é o engessamento do orçamento que se persegue ao se fazer vinculações, mas, sim, a certeza da garantia de recursos para as áreas sociais, sempre preteridas, na mesma medida em que são essenciais para uma nação se desenvolver, como é o caso da educação, ciência e tecnologia, saúde; uma população saudável, digna, com força de trabalho físico, intelectual, afetivo, mental é indispensável à nação.

Vejamos abaixo o percurso do financiamento da saúde em 30 anos, de forma cronológica e pedagógica, a demonstrar porque a defesa da vinculação de recursos mínimos ao seu custeio:

  • 1988– ADCT, artigo 55: 30% do orçamento da seguridade social seriam destinados à saúde. Não cumprido ante acréscimos de serviços que não os de saúde;
  • 1993- Crise com o Ministério da Previdência Social. Foi protagonizada uma crise na saúde pelo não repasse devido pelo MPAS por mais de cem dias, tendo sido necessário haver uma representação ao Procurador Geral da República que abriu um inquérito civil público. Perdas de mais de 2 bilhões de reais;
  • 1994 – Fundo Social de Emergência: EC de Revisão 1, de 1994, antecipou e deu origem à Desvinculação das Receitas da União (DRU);
  • 1996 – Fundo de Estabilização Fiscal: EC 10, de 4/3/1996; continuidade da desvinculação de receitas;
  • 1996 – CPMF: EC 12, de 15/8/1996. Vigorou entre os anos de 1997 e 2007. Não acresceu na saúde os recursos pretendidos pelo fato de parte deles terem sido destinados a outras áreas;
  • **1998 **– vinculação das contribuições sociais à Previdência: EC 20, de 4/6/1998. Vinculou à Previdência Social contribuições sociais que antes eram destinadas às três áreas da seguridade social, com prejuízo para a saúde;
  • 2000 – vinculação de recursos: EC 29, de 13/9/2000, criou os pisos mínimos da saúde: 15% das receitas de impostos e transferências de impostos dos municípios e 12% dos estados; e, para a União, o valor empenhado no ano anterior, acrescido da variação do PIB, vedada a regressividade quando essa variação fosse negativa. Essa medida foi para por cobro às restrições de recursos para a saúde;
  • 2007 – DRU: EC 56, de 20/12/2007. Prorrogou o prazo de vigência da DRU de 20% até o ano de 2011;
  • 2012 – DRU: EC 68, de 21/11/2012. Prorrogou o prazo para até o ano 2015;
  • 2015 – alterou o piso mínimo da saúde para a União. EC 86, de 17/3/2015. 15% das RCL, de forma escalonada (cinco anos para atingir esse percentual, com início de 13,2% em 2016). Suprime a progressividade no piso da saúde ao incorporar os recursos do pré-sal no conjunto do financiamento do piso;
  • 2016 – DRU: EC 93, de 9/9/2016, prorroga o prazo até 2023; aumentou a alíquota para 30% e estende para estados e municípios. O provisório, permanente. Serão 29 anos de provisoriedade...;
  • 2016 – congelamento dos gastos primários: EC 95, de 15/12/2016: revogou o escalonamento do piso da saúde para vigorar 15% da RCL em 2016 e 2017, sendo que, para o período 2018-2036, congelou o valor do piso de 2017 (indexado à variação do IPCA/IBGE); além disso, a disponibilidade financeira do Ministério da Saúde ficou condicionada até 2036 ao teto geral das despesas primárias federais, calculadas a partir da atualização (pela variação do IPCA/IBGE) do valor pago em 2016.

O financiamento da saúde nos mostra em sua trajetória a não priorização do setor, nem o reconhecimento de sua essencialidade para o desenvolvimento do país. Isso fica patente no histórico abaixo, agora em valores reais, os percentuais de recursos alocados à saúde nesses 30 anos:

  • uma década de crise (anos 90) no financiamento da saúde, que exigiu a atuação da Procuradoria-Geral da República em 1994, somente parcialmente mitigada com a vinculação de recursos em 2000;

  • aumento progressivo do financiamento alcançado somente em 2000 com a EC 29: de 2,9% do PIB para 4,0% em 18 anos (soma da União, dos estados, Distrito Federal e municípios), mas ainda muito abaixo dos 7,9% aplicados nos países com sistemas universais e recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS);

  • crescimento expressivo da participação municipal nesse aumento progressivo do financiamento, que representou 31% do total em 2017 e uma aplicação acima de 24% das receitas municipais que servem de base de cálculo (muito acima do piso de 15%), enquanto o financiamento federal ficou estagnado em torno de 1,6% e 1,7% do PIB nos últimos 18 anos — este quadro aponta para o esgotamento da capacidade de alocação adicional de recursos municipais para o financiamento da saúde e para o ente federativo mais prejudicado;

  • mudança no piso federal da saúde, que deixou de ser o valor do ano anterior acrescido da variação nominal do PIB, para ser 15% da RCL da União e a supressão de sua progressividade prevista na Lei 12.351, de 2010, que considerou a quota-parte do pré-sal (25%) como valor a integrar o piso federal do SUS

  • ADI 9.558 (STF): medida liminar mantendo a progressividade do valor do pré-sal, isto é, a ser acrescido ao piso mínimo da saúde, com o resgate do seu caráter de adicionalidade de recursos para a garantia de direitos fundamentais (no caso, o direito à saúde);

  • EC 95: as novas regras trouxeram perdas em 2018, tanto dos valores dos pisos como das despesas empenhadas; situação semelhante deverá ocorrer em 2019 — para este ano, as perdas foram calculadas com base nos valores da Lei Orçamentária. Confirmam-se as projeções baseadas na regra de que nenhum centavo de acréscimo da receita será destinado à saúde e demais despesas sociais, pelo contrário: no caso da saúde será retirada parcela da receita destinada ao seu financiamento, que ficará abaixo de 15% da RCL — somadas as perdas dos pisos de 2018 e de 2019, a retirada de recursos da saúde em dois anos totalizará R$ 14 bilhões, se comparado aos pisos de 15% que vigoraram em 2016 e 2017.

Os gastos públicos consolidados (União, estados, Distrito Federal e municípios) em saúde foram de R$ 265 bilhões (em 2017), o que representou cerca de R$ 3,60 per capita-dia (sendo que, desse valor, o da União foi de aproximadamente R$ 1,55 per capita-dia).

Pelo presente quadro, a conclusão é que a saúde sempre foi subfinanciada e a vinculação em 2000, pela EC 29, decorreu da mais absoluta necessidade de se assegurar um valor mínimo, sob pena de seus recursos serem suprimidos ano a ano; infelizmente, esse processo está ocorrendo com as desvinculações decorrentes da revogação da regra da EC 29/2000 e da vigência do congelamento do piso aos níveis de 2017, implementado pela regra da EC 95/2016, bem como da inclusão (pela EC 86/2015) dos recursos do pré-sal (sub judice) no conjunto das receitas destinadas para o financiamento do piso (dar com uma mão e retirar com a outra).

Para se alcançar maior qualidade e quantidade de serviços compatíveis com as necessidades de saúde da população, os seus recursos teriam que ser no mínimo o dobro do gasto nos últimos anos, considerando os parâmetros internacionais e a situação atual de insuficiência de serviços públicos de saúde.

Há tecnologias e medicamentos ainda não incorporados e que são essenciais e têm sido garantidos judicialmente. Isso não significa que todas as inovações devam ser incorporadas, pois defendemos rigor na análise custo-benefício e evidências clinicas pela Conitec. A saúde deve ser praticada de modo racional e com muita sobriedade para não cair no canto da sereia das inovações tecnológicas e farmacêuticas que visam primeiramente engordar desmedidamente os lucros das empresas.

Há, de modo comprovado, defasagem quanto à quantidade e qualidade dos serviços, sendo imperioso planejamento de longo prazo que considere: a demografia crescente e o envelhecimento populacional, sendo que, por volta de 11% da população tem mais de 60 anos, com previsão de ser o dobro em dez anos; as novas tecnologias essenciais; as políticas de prevenção das mortes violentas e as dos acidentes de trânsito, em especial de moto, dentre outros aspectos. Outro dado relevante é de se instituir, de modo sistemático, em especial no âmbito do Ministério da Saúde, avaliação de desempenho dos serviços para informar o planejamento da saúde permanentemente.

Mas, no lugar do planejamento e da alocação adicional de recursos para saúde de forma compatível com as necessidades da população e de forma escalonada segundo o crescimento da receita, as autoridades econômicas estão anunciando pela imprensa não um plano para a melhoria da saúde, mas o envio de uma proposta de emenda constitucional (PEC) ao Congresso Nacional para desvincular 100% do orçamento. O que temos visto é que a Economia, que já subordinou a Previdência Social ao seu ministério, poderá também subordinar as demais áreas que compõem o sistema de seguridade social (artigo 194 da Constituição) ao seu controle, com perda de suas autonomias.


[1] Disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,os-politicos-tem-de-controlar-100-do-orcamento,70002749472 (acesso em 24/3/2019).
[2] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mar-19/contas-vista-especulacoes-orcamento-ministro-guedes (acesso em 24/3/2019).
[3] Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-10-marco-2019#a0 (acesso em 24/3/2019).


Lenir Santos, atual presidente do Idisa, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp.
Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.


Publicado em conjur.com.br dia 26/03/2019




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