Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 12 - Março 2020

Coronavírus e o Desfinanciamento do SUS: revogar EC 95/2016 já!

Por Francisco R. Funcia


O combate à pandemia do Coronavírus parece ter despertado o interesse de diferentes setores da sociedade brasileira para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Está claro para todos os que tem bom senso e respeito ao conhecimento científico na área da saúde que, inicialmente, é preciso adotar medidas de distanciamento social para minimizar os efeitos negativos dessa pandemia para a saúde da população.

Mas, como decorrência, está ficando claro que o governo precisa aumentar os gastos públicos por meio de aumento da dívida pública para financiar as despesas necessárias tanto na área da saúde, como nas demais áreas sociais e de infraestrutura urbana diretamente afetadas pelas consequências da queda do emprego e da renda decorrentes das medidas de distanciamento social que estão sendo adotadas e que precisam ser mantidas, a despeito da irresponsabilidade das autoridades que pensam o contrário e que gastam dinheiro público em campanha publicitária contrária ao distanciamento social, que deveria estar sendo gasto para garantir a saúde da população.

Está ficando claro também que, agora, precisam ser tomadas medidas institucionais para possibilitar a retomada do processo de crescimento econômico após o final dessa pandemia. Uma das medidas diz respeito ao abandono da política econômica de austeridade fiscal que, desde 2015, está sendo responsável por recessão e/ou baixo crescimento econômico, sendo que a Emenda Constitucional 95/2016 foi a forma de materialização da austeridade fiscal.

A EC 95/2016 faz mal à sociedade, e à saúde em particular. A Tabela 1 apresenta os cálculos da perda do SUS como consequência da EC 95/2016 – R$ 22,5 bilhões até o momento.

Tabela 1 - Perdas de Financiamento Federal do SUS a partir de 2018

Em termos de Receita Corrente Líquida, tanto o piso federal do SUS foi reduzido (de 15% em 2016 e 2017 para 13,95% em 2018 e 12,95% em 2019), como também houve queda do valor empenhado (de 15,77% em 2017 para 14,51% em 2018 e 13,54% em 2019).

O governo deveria encaminhar imediatamente uma Proposta de Emenda Constitucional que mude o prazo de vigência da EC 95/2016, para encerrar seus efeitos imediatamente após a promulgação. Desta forma, na prática, seria revogada a EC 95/2016, conforme mobilização que está ocorrendo sob a coordenação do Conselho Nacional de Saúde. E, consequentemente, deixaria de valer a regra de cálculo do piso federal do SUS e do teto de despesas primárias da União. Essas perdas sofridas pelo SUS agravaram o processo de subfinanciamento do SUS, fragilizando a estruturação do sistema em termos de pessoal, materiais, medicamentos, equipamentos e instalações, que nos dias de hoje, de combate ao Coronavírus, estão fazendo mais falta do que antes.

Além disso, neste momento, é preciso “dinheiro novo” para o Ministério da Saúde, pois o que houve até 26 de março foi apenas um remanejamento de dotações orçamentárias do próprio Ministério – foi retirado recurso da Atenção Básica e da Assistência Hospitalar e Ambulatorial para criar uma ação específica de combate ao Coronavírus, como se as necessidades de saúde da população a serem atendidas com esses recursos tivessem acabado.

Tabela 2 – Demonstrativo da Movimentação Orçamentária do Ministério da Saúde em 2020 com a criação da ação para enfrentamento do Coronavírus


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.



Direito à vida e à dignidade em época de pandemia

Por Lenir Santos


Após as atrocidades impensáveis ocorridas na Segunda Guerra Mundial, o mundo, horrorizado com o desrespeito à vida, começou a empreender esforços de reconstrução dos países devastados física e moralmente pela insanidade de governantes que a banalizaram em nome de delírios de poder absoluto sobre as pessoas, escolhendo quem deveria viver, morrer ou ser subjugado em sua liberdade.

Um desses esforços, que não podemos olvidar, foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH (Paris, 1948), fruto da convergência de pensamentos e desejos dos estados-partes da ONU em Assembleia Geral. Assumiu-se pública, solene e formalmente a proteção universal dos direitos humanos, afirmando-se que os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Essa afirmação deve ser tida como premissa, baliza, guia da ação do Estado, fundamento para a positivação de direitos nos ordenamentos jurídicos e consequente adoção de políticas sociais e econômicas em relação ao povo de uma Nação. Sendo isso paradigma a orientar a ação do Estado, sempre se poderia confiar nos governantes eleitos por estarem orientados politica e moralmente pelos princípios de respeito e prevalência da vida humana, com atos consequentes ao princípio universal de defesa da vida, independentemente de convicções políticas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos expressa os direitos anteriores e superiores à formação do Estado, porque naturais e próprios dos seres humanos; e por preceder o Estado, deve ser reconhecida de status superior. Com a exigência própria do Estado moderno de ação governamental de proteção dos mais fracos, mediante políticas públicas de garantia do mínimo existencial, a sociedade passou a exigir uma atuação estatal em consonância entre a moral e a política.

Norberto Bobbio[1] ao discorrer sobre esse tema da moral e da política, afirma que a conduta política e a conduta moral não andam juntas, prevalecendo a teoria maquiavélica de que os fins justificam os meios em nome das razões do Estado e que o que vale na política são as grandes coisas e não os princípios políticos; por isso a Declaração Universal, pós o genocídio humano, veio lembrar que as razões do Estado devem pautar-se pela moral política, mas sempre esquecido por outras razões, como a da austeridade fiscal que impõe ajustes a qualquer preço, que aprofunda a desigualdade, o enriquecimento seletivo num sistema de capitalismo ultraliberal. A grande coisa de que nos fala Bobbio deveria ser a dignidade de todos e não políticas de concentração de renda. Mas não o é.

Essa crise pandêmica veio nos relembrar da necessidade de se reafirmar os princípios da DUDH de que os direitos que decorrem do valor da vida e do seu viver digno são cláusulas pétreas do processo civilizatório que orientou o mundo e não pode retroceder. Retroceder é a volta da barbárie, da orientação nazifacistas de desvalorização do ser humano e privação da liberdade de escolha, com obstáculos à caminhada rumo à fraternidade, cooperação e igualdade; não se deve cair duas vezes no mesmo abismo.

A orientação econômica dominante no mundo de austeridade fiscal levou os países a encolherem seus sistemas de saúde públicos cujos danos estamos presenciar horrorizados nesses meses de pandemia. No nosso país já sentíamos antes mesmo dessa crise os drásticos reflexos econômicos de aumento do abismo social, num Estado que quase sempre fechou os olhos para o enfrentamento corajoso da vergonhosa desigualdade que prospera à beira do precipício.

Na área da saúde, é mais do que chegada a hora de honrarmos a Constituição na garantia desse direito e na instituição do Sistema Único de Saúde, palco de lutas históricas entre seus construtores e as barreiras econômicas no tocante ao seu financiamento nesses 32 anos.

Crises notórias, como a de 1993, quando o Governo Federal decidiu não repassar ao Ministério da Saúde os recursos que lhe cabiam como parte das arrecadações das contribuições sociais da previdência social, tendo sido necessário a intervenção do Procurador Geral da República. Outras crises foram se instalando e sendo debeladas, sempre com perdas para o SUS, como essa de 93 que resultou na perda de dois bilhões de reais; a saga do financiamento errático do SUS pode ser conhecida em diversos artigos e estudos, sendo de se ressaltar, o papel do pioneiro e incansável Gilson Carvalho.

Nesse momento de pandemia quando todos os olhos se voltam para a garantia da vida, devemos lembrar a luta anônima de tantos profissionais de saúde, pesquisadores, movimentos populares, conselhos de saúde na construção do SUS para hoje a população possa se sentir minimamente segura e protegida pelo sistema público, de acesso universal e igualitário, que é o SUS.

Como diz Gianni Tognoni[2], esta pandemia é o resultado do descaso com a saúde pública em seu sentido lato, e exemplifica a absurda concentração de renda gestada pelas políticas econômicas de austeridade e descaso com a vida com o acordo bilionário de Jeff Bezos, dono da Amazon, que entregou a sua ex-mulher 25 bilhões de euros em seu divórcio! Do espanto à indignidade das diferenças sociais, como a obra seminal de Zola, “Germinal”. Esse dado, segundo o autor, mostra a desproporção entre gastos públicos e concentração de renda neste mundo de liberalismo absoluto.

O SUS no Brasil está em pé pela teimosia de poucos proporcionalmente a tantas tentativas de derrota-lo mediante a asfixia orçamentária, que talvez agora possam deixar de ocorrer pelo discernimento da população que passa a ter sentimento de pertencimento ao SUS, como um patrimônio público que garante o direito à vida e à dignidade.

A última tentativa de sua asfixia, como um punhal de prata, foi a edição da EC 95, que de modo inconcebível em todos os sentidos, por gastar R$630,00 per capita ano, 4% do PIB para a garantia de todas as ações necessárias à proteção e recuperação da saúde, enquanto países europeus como o inglês, gasta em média 7.9% do PIB. Ela esvazia de conteúdo, o direito à saúde. A austeridade fiscal- a grande ação governamental que atua desacompanhada dos princípios que deveriam pautar a política - demonstrou não ser capaz de diminuir as desigualdades e garantir o direito a uma vida digna, nem a melhorar o sistema público de saúde, nem promover o desenvolvimento econômico-social.

A prevalecer a EC 95, que retirou do SUS nesses dois últimos anos 20 bilhões de reais, a despeito de suas filas intermináveis, da falta de incorporação de determinadas tecnologias e medicamentos necessários, da mora no atendimento de doenças graves, como o câncer, a tendência é do mais absoluto sucateamento de seus serviços, o que a sociedade e os poderes públicos não podem compactuar pela experiência que estão a viver que evidencia não ser o plano de saúde privado a dar garantia a proteção sanitária, mas sim o Poder Público, com suas ações em todos os campos, da vigilância epidemiológica e sanitária aos cuidados com doenças crônicas, emergenciais, câncer e muitas outras. Na crise sanitária, é para o Ministério da Saúde e o SUS que todos os olhos se voltam diariamente a pedir segurança sanitária.

Sem um sistema público de saúde como o SUS, que se espraia em 5.570 municípios e 27 estados, a população não teria durante esses 32 anos nenhuma proteção e nessa pandemia estaria sem a menor cobertura pública por falta de capacidade instalada. O tão criticado SUS é a luz que ampara a sociedade nessa pandemia e lhe diminui o medo pelos riscos, numa atuação construída ao longo desses 32 anos a duras penas.

Além do mais, crises devem ser resolvidas com o sentimento de dever com o destino humano e de que o barco é um só e não será com palavras, conflitos e gestos agressivos que se elevarão o sentimento de união. O ser humano encontra ressonância na solidariedade e na cooperação. A competição divide o que precisa ser unido.

As armas governamentais devem ser a proteção à vida e à dignidade e atitudes que revelem a grandeza de espírito, a solidariedade, a fraternidade. É hora de se fazer brotar o sentimento de dever com o destino humano e de que o barco é um só. A Constituição jurada pelos governantes deve pautar a sua conduta. Como nos lembra Éric Vuillard[3], o direito constitucional é como a matemática, não pode trapacear (...) Não é para cupins nem para ratos; é para os verdadeiros homens de Estado. Que todos se transformem em homens de Estado; foram eleitos para isso. Esse é um momento crucial de mudança da rota do mundo e reflexões precisam ser feitas.

Alguns pontos para reflexão:
1. Consagração absoluta da Constituição como baliza ético-política da ação do Estado.
2. Respeito os objetivos da República brasileira de garantia da vida, adotando-se medidas sanitárias e econômicas para a sua preservação, e cumprimento dos mandamentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 para unir moral e política.
3. Reafirmação do papel do Estado como garantidor do bem estar social, com medidas fiscais que amparem a sua população, com prioridade para os que vivem em vulnerabilidade social e atuação em prol dos mais necessitados.
4. Concessão contingencial de renda mínima social como imperativo ético-político.
5. Proteção político-social e econômica do sistema interfederativo de saúde, mediante a garantia de recursos suficientes, com revogação da EC 95 que asfixia o seu funcionamento, fazendo chegar recursos suficientes aos entes federativos que integram esse sistema de responsabilidades compartilhadas e interdependentes.
6. Proteção às entidades privadas participantes do SUS complementarmente, cujos serviços foram suspensos, com continuidade de repasse de recursos financeiros, mensalmente, sem interrupção ou diminuição.
7. Planejamento das ações do Ministério da Saúde para cobertura físico-financeira eventual e futura de atendimento de desastres naturais ou provocados, como os de Mariana e Brumadinho, epidemias e pandemias.
8. Atuação do Brasil junto à OMS num protagonismo de defesa da positivação nos ordenamentos jurídicos das nações, do direito universal à saúde e criação um fundo garantidor de pandemias com recursos dos estados-partes e das empresas que faturam acima de determinados valores. A governança global da saúde precisa ser revivificada na OMS e sensibilizar as responsabilidades solidárias globais.

Neste momento tão impactante quando o mundo não mais será o mesmo e tudo precisará ser repensado, em especial o papel do Estado e o bem estar da sociedade, a frase de Hannah Arendt, em sua obra a Condição Humana, é bastante atual: ainda que os homens devam morrer, eles nascem para começar.


[1] Bobbio. N. Elogio da serenidade. São Paulo: Editora UNESP. 1998.
[2] Tutameia.jor.br. em 25 de março de 2020. Lucena, E. e Lucena, R.
[3] Vuillard. É. A ordem do Dia. Editora Tusquets. 2019


Lenir Santos, atual presidente do Idisa, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp e professora colaboradora da Unicamp.




OUTRAS DOMINGUEIRAS