Apresentação

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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 13 - Abril 2020

Índice

  1. Saneamento básico em tempos de Pandemia - por Núbia Natália de Brito

Saneamento básico em tempos de Pandemia

Por Núbia Natália de Brito


O acesso aos serviços públicos de saneamento é indispensável para a saúde humana, a falta desses serviços pode acarretar uma série de doenças provenientes de micro-organismos patogênicos, além de tornar insalubres os agrupamentos humanos nos ambientes urbano e rural. No Brasil a população de baixa renda pertence a grupos mais vulneráveis frente à ausência desses serviços [1,2,3].

Do ambiente vírus como o da síndrome respiratória aguda grave SARS-CoV pode ser transmitidos para as mãos e vias respiratória sendo persistentes em superfícies por até 96 h, há estudos que indicam infectividade por até 6 dias indicando uma capacidade de sobrevivências alta [4].

Atualmente o mundo está enfrentando um notável surto de coronavírus (SARS-CoV-2) com o primeiro epicentro em Wuhan, China rigorosa vigilância em outros países é necessária para impedir uma maior expansão global do surto, mas a compreensão dos mecanismos iniciais de transmissão é fundamental para medidas de prevenção[5].

Sabe-se que o ato de lavar as mãos e de higiene tornam se cruciais para evitar a disseminação de patógenos, mas como intensificar algumas ações se em alguns lugares no mundo, inclusive no Brasil nem toda população tem acesso à água tratada ou ao tratamento adequado de esgoto e lodos de esgoto? Lugares onde os resíduos sólidos ainda são lançados em lixões a céu aberto e o saneamento básico com um todo é precário. O impacto de uma intervenção educacional dever vir aliada a redução das barreiras de uma boa higienização.

A boa higienização vem em primeiro plano como medida de contenção do vírus em questão, até mesmo, porque de acordo com estudos de Wigginton e colaboradores sugerem que vírus envelopados (com é o caso do SARS-CoV-2) podem ser excretados em fezes humanas durante a infecção e apontam que muitos vírus envelopados são capazes de se manter infecciosos por dias em ambientes aquosos[6].

Essa possibilidade de transmissão fecal-oral do SARS-CoV-2 (COVID 19) deve ser avaliada aliada a isso a higiene pessoal durante a quarentena merece considerável atenção, portanto pesquisas adicionais devem ser realizadas nesse sentido[7]. Ao mesmo tempo em que a associação entre surtos de SARS, fatores meteorológicos e poluição do ar, ou seja, fatores ambientais também devem ser estudados[8,9].

Dentro desse contexto o Brasil precisa se preparar para demandas específicas que surgirão no país o que inclui quantidade e qualidade de diagnósticos, atendimento ao paciente, prevenção e promoção da saúde e que estão atreladas também a um bom saneamento básico.

Saneamento básico
A virologia ambiental compreende um extenso campo de pesquisa, possuindo interface com políticas públicas específicas, tais como: saneamento, recursos hídricos, gerenciamento costeiro, vigilância sanitária e epidemiológica[10].

Os serviços de saneamento básico têm papel fundamental no controle da transmissão de diversos agentes patogênicos de veiculação hídrica, especialmente vírus que muitas vezes são responsáveis pela contaminação de diversos ecossistemas aquáticos brasileiros.

A alta circulação de vírus no ambiente pode ser relacionada com condições sanitárias que impossibilitam a redução da carga viral; impactando a saúde pública, dentro deste contexto a abordagem ambiental é útil em estudos epidemiológicos[10]. Cargas virais da ordem de 10 2-10 8 cópias de genoma por litro de esgoto tratado já foram observadas em diversas estações de tratamento de esgoto (ETE) no país[10].

Estudos demonstram que a promoção do saneamento e de boas condições de higiene são intervenções mais econômicas que doenças de alto ônus em países em desenvolvimento[11,12].

No Brasil é necessário maior investimento na área, melhores tratamentos em estações de água e esgoto a fim de melhorar a qualidade sanitária da água, da atmosfera e consequentemente da saúde pública.

Coronavírus versus Saneamento básico
A síndrome respiratória aguda (SARS) conhecida em 2003 (Hong Kong) trouxe um novo reconhecimento de que infecção por coronavírus pode levar lesões graves e até fatais. Na época do SARS-2003, as suspensões fecais, como uma via de transmissão foram responsáveis por um conjunto de doenças respiratórias. O surto se espalhou através de partículas fecais em aerossol nos dutos de ar do complexo de apartamentos[13].

Estudos realizados em 2009 por Casanova e colaboradores, sobre o SARS concluíram que o vírus pode sobreviver e permanecer infeccioso por longos dias em água e esgoto[14]. Os patógenos sobreviveram tanto em 40C como em 250C, mas há um declínio mais rápido a 250C, verificaram também que o vírus permaneceu infeccioso no esgoto e na água entre 7 e 28 dias dependendo da temperatura e se algum tratamento foi realizado[14]; demonstrando que água/água contaminada pode ser um potencial veículo para exposição humana, principalmente, se aerossóis forem gerados.

Na estação de tratamento de esgoto (ETE) e estação de tratamento de água (ETA) quando o esgoto ou água bruta chegam à captação aerossóis são gerados de imediato se esses aerossóis chegarem contaminado com vírus, o compartimento ambiental atmosfera poderá ser prejudicado consequentemente as circunvizinhanças, que atualmente se concentram também próximos de estações de tratamento de matrizes aquosas.

Existe também a possibilidade de pacientes infectados eliminarem as fezes/urina contaminadas com vírus que alcançam a tubulação de esgoto, muitas vezes sendo necessários processos de desinfecção já no lançamento antes de alcançar a rede de esgoto evitando assim a possível chegada de contaminantes a ETE ou até mesmo aos mananciais de água, tendo em vista que, quase a metade da população brasileira (48%) não tem coleta de esgoto[15].

A grande diversidade de vírus existentes na população é potencialmente excretada em sistemas de esgotos e concentradas no lodo de esgoto, trabalho realizado por pesquisadores nos EUA observaram diferentes tipos de vírus humano encontrado no lodo de esgoto e sugerem o aumento da concentração de vírus emergentes como, por exemplo, os representantes de doenças respiratórias[16, 17].

Estudos realizados por Wang e colaboradores[18] sugerem que o esgoto hospitalar proveniente de pacientes com SARS-CoV pode transmitir o vírus. Os pesquisadores observaram a presença do RNA do vírus no esgoto hospitalar antes da desinfecção e também pós desinfecção. Tornando assim o sistema de esgoto uma possível rota de transmissão[18].

Existe também a possibilidade de gotículas de aerossóis de fezes de pacientes contaminados pela SARS-CoV-2 serem um potencial veículo para propagação de vírus respiratório para sociedade e que podem alcançar tanto a fase aquosa como atmosférica, tais como: Rede de esgoto, ETE, mananciais de água e aerossóis atmosféricos, principalmente.

Outros estudos também foram realizados no que se refere à contaminação de vegetais para consumo humano, Mullis e colaboradores[13], estudaram a estabilidade do coronavírus em superfície de alface e sob condições de refrigeração doméstica o vírus manteve se infeccioso por pelo ao menos 14 dias.

Até o momento o que se sabe baseado em estudos realizados na época da pandemia do SARS-CoV em 2003 em Hong Kong é que o coronavírus pode sobreviver por tempo suficiente em água e esgoto sendo que esses veículos podem servir como fonte de exposição. O potencial de sobrevida a logo prazo juntamente com aerossóis contaminados sugerem que meios aquosos podem representar um risco à saúde em surtos futuros.

Extremamente importante também é que segundo Casanova e colaboradores[14] a persistência de coronavírus em água e esgoto sugere que medidas de quarentena que provaram ser eficazes no ultimo surto de SARS-CoV pode ser prejudicada a menos que seja dada atenção à segurança da construção de sistemas de tratamento de água/esgoto. Importante também estudar o tratamento para aerossóis contaminados, Walker e Ko[19] observaram que durante a desinfecção com radiação ultravioleta (UV) em 254 nm há uma susceptibilidade maior de desinfecção em aerossóis do que em meio líquido indiferente do tamanho do vírus, do tipo de ácido nucléico ou da estrutura viral. Embora diversas outras formas de desinfecção sejam eficazes[4].

Diante de toda problemática importante salientar, que o saneamento básico tem papel fundamental no controle da disseminação de vírus no ambiente, diminuindo os riscos de transmissão; diversos estudos têm demonstrado as correlações entre a falta de saneamento consequentemente de higiene adequada, incluindo acesso à água potável e esgotamento sanitário com aumento de doenças infecciosas[10,20].

Atualmente não se sabe como o SARS-CoV-2 (COVID 19) se comporta no meio ambiente, tendo em vista que existe a possibilidade de gotículas de aerossóis de fezes de pacientes contaminados pela COVID 19 serem um potencial veículo para propagação de vírus respiratório para sociedade e que podem alcançar tanto a fase aquosa como atmosférica. Dentro desse contexto em condições de pandemia os surtos epidemiológicos atingem principalmente as populações de baixa renda ou mais vulneráveis socialmente, tendo em vida as desigualdades sociais em nosso país, inclusive com relação aos serviços de saneamento básico.

Conclusão
Diante do cenário mundial investimento em saúde, em saneamento básico e medidas de higiene adequadas como ações preventivas contras agentes infecciosos são fundamentais, tendo em vista principalmente a falta, ainda, de um tratamento mais específico ou vacina disponível comercialmente.

Atenção deve ser dada a possibilidade, infelizmente, de que novos coronavírus venham surgir muitos mais agressivos no futuro o que pode representar desafios muito maiores do que os atuais ao tratamento de água e esgoto. Sendo assim o ciclo: eliminação de vírus em fezes, urina e vômitos liberados na rede de esgoto que não possuem um tratamento adequado ou vazam para águas subterrâneas e/ou superficiais podem potencialmente penetrar em tubos de distribuição de água e, portanto resultarem em exposição á água potável.

No entanto, ainda existem lacunas de conhecimento sobre o potencial do ciclo da água na disseminação de vírus envelopados. Estudos devem ser realizados também no que se refere à rota de transmissão versus destino ambiental de vírus altamente patogênicos, tendo em vista, a precariedade de saneamento básico e a prevenção para surtos epidemiológicos futuros.


Referências bibliográficas.
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Núbia Natália de Brito, Técnica em Saneamento, Química Agro-Industrial, Mestre e Doutora em Engenharia Agrícola na área de água e solo, Professora do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás. Email: nubiabrito@ufg.br




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