Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 14 - Abril 2020

Índice

  1. ADI 6362: Direção única em cada esfera de governo do SUS e suas instâncias de deliberação interfederativa - por Lenir Santos
  2. Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos - por Bruno Moretti, Carlos Ocké, Érika Aragão, Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides

ADI 6362: Direção única em cada esfera de governo do SUS e suas instâncias de deliberação interfederativa

Por Lenir Santos


A recente ADI 6.362, de autoria da Confederação Nacional de Saúde – Hospitais, Estabelecimentos e Serviços - propõe mitigar a competência dos estados e municípios no manejo do instituto da requisição de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas, nos termos do art. 15, XIII, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080, de 1990), que encontra fundamento no art. 5º, XXV, da Constituição da República (CR).

A requisição de bens e serviços está vinculada ao perigo iminente na saúde em decorrência de calamidade pública ou irrupções de epidemias e tem sido utilizada pelos entes federativos no seu dever constitucional, art. 23, II, da CR, de cuidar da saúde, competência comum que fundamenta a tese do STF da responsabilidade solidária entre os entes federativos no dever de garantir serviços de saúde à população.

“Há responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde. (Decisão na STA n. 175, de 2009, reiterada no julgamento do RE 855178).”

O que se pretende com a ADI nos leva a dizer que não seria crível que exatamente quando o perigo sanitário, que pode gerar falência do sistema de saúde e risco de vida coletivo, o instituto da requisição não possa ser utilizado por quem têm o dever constitucional de cuidar da saúde, lembrando que o SUS tem organização constitucional fundada na diretriz da descentralização com direção única em cada esfera de governo, o que significa ser ele o resultado da integração das ações e serviços de saúde em rede regionalizada e hierarquizada quanto a complexidade de seus serviços (art. 198, I, da CR).

Essa integração administrativo-sanitária se faz necessária em razão da competência comum dos entes federativos para cuidar da saúde e da diretriz da descentralização e direção única em cada esfera de governo, sendo o fundamento sanitário desse compartilhamento, a impossibilidade de cada ente per si realizar da vacina ao transplante.

Nesse sentido, o SUS por ser uma rede interfederativa de ações e serviços de saúde, cuja direção compete a cada ente federativo, e em acordo a autonomia conferida pelo art. 18 da CR, requer um espaço de pactuação sobre a gestão compartilhada, o que foi objeto da Norma Operacional Básica (NOB) do SUS, de 1993, a famosa NOB-MS 01/93, ao instituir as comissões intergestores da saúde, em âmbito nacional, estadual, que foram posteriormente reconhecidas pela Lei n. 12.466, de 2011 (que alterou a Lei n. 8.080, de 1990), as quais têm competência para atuar na definição de aspectos operacionais do SUS, no que tange à sua organização e funcionamento.

Qualquer decisão que envolva os três entes federativos no tocante ao SUS deve ser resolvido na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), a qual tem competência para pactuar aspectos que envolvam todos os entes federativos, de modo consensual.

Conferir ao Ministério da Saúde a decisão final, a coordenação ou qualquer outra forma de centralização de decisão própria de cada ente federativo, como a requisição de bens e serviços por força do disposto no art. 15, XIII, da Lei 8.080, de 1990, e agora nas circunstâncias da pandemia do Covid-19, a Lei n. 13.979, de 2020, seria privar o dirigente da saúde de meios para cumprir os fins que a Constituição lhe conferiu como obrigação.

Ora, o instituto da requisição somente pode ser acionado pelos dirigentes sanitários quando há calamidade sanitária, risco à saúde e à vida das pessoas. Quando no âmbito fático esses elementos estão presentes, a supressão de sua atuação, que passaria ao Ministério da Saúde, ainda que sob o pálio de apenas coordenar a ação, confrontaria os poderes conferidos pelo legislador aos entes federativos responsáveis pelo cuidado direito da saúde da população. Lembramos que quase 100% dos serviços de assistência à saúde são prestados pelos Estados e Municípios e não pela União que somente tem sob a sua direção, poucos hospitais, como o Instituto Nacional do Câncer, o Grupo Hospitalar Conceição, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Caso seja necessário dispor sobre a requisição administrativa, caberá à CIT tal papel; qualquer decisão sobre compartilhamento de ação e serviço de saúde compete à CIT, a qual teria, no caso, competência para fixar diretrizes gerais no sentido de organizar as requisições no território nacional, caso seja necessário. Na CIT estão presentes os três entes federativos, sendo os estados representados pelo Conselho de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e os municípios pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), os quais decidem em comum acordo.

Desse modo a ADI 6362 não pode lograr efeito por ferir a autonomia federativa; cercear os poderes constitucionais e legais dos entes federativos no cuidado com a saúde, considerados como de responsabilidade solidária pelo STF; desrespeitar a diretriz da descentralização com direção única em cada esfera de governo (art. 198, I da CR) e os mecanismos reconhecidos por lei da gestão compartilhada do SUS (Lei n. 12.466, de 2011).

A requisição administrativa de bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas é uma salvaguarda do direito à saúde como instrumental de manejo de cada ente federativo em relação às necessidades de saúde decorrentes de perigo iminente deflagrado por epidemias, calamidades públicas e outros eventos sanitários que coloquem a vida e a saúde coletiva em risco.

Importante, pois, que o STF reconheça que o SUS é um sistema de compartilhamento das ações e serviços de saúde entre os entes federativos, os quais são autônomos na direção de seus serviços e que contam com instâncias legais para discutir a sua operacionalidade, quando compartilhadas, sem ferir as suas autonomias.


Lenir Santos, advogada, especialista em direito sanitário pela USP, doutora em saúde pública pela Unicamp e professora colaboradora do Departamento de saúde coletiva; presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e conselheira do Conselho Nacional de Saúde (CNS).



Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos

Por Bruno Moretti, Carlos Ocké, Érika Aragão, Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides


“Governos devem gastar de modo massivo com maior endividamento do governo por meio de títulos e alguma impressão de dinheiro, se necessário devem converter instalações quaisquer em hospitais e fazer fábricas produzirem material hospitalar e médico” Kenneth Rogoff, Professor de Havard e ex-economista chefe do FMI, 24/03/2020

Além da adoção das medidas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, mudar a política econômica e fortalecer o SUS são as alternativas mais seguras para proteger a população brasileira contra o coranavírus.

Essa crise será certamente maior do que o crash de 1929. A exemplo de outros países, o governo precisa sustentar a demanda e garantir a renda do conjunto da população, bem como o abastecimento de alimentos, remédios e produtos de primeira necessidade, mantendo as cadeias de produção e distribuição em funcionamento e coordenando o sistema financeiro, a partir do planejamento entre Estado e sociedade.
No contexto do aumento da pobreza e da desigualdade na sociedade brasileira, o governo federal precisa revogar imediatamente o teto de gastos e a regra estabelecida para o piso federal da saúde (Emenda Constitucional 95/2016) para enfrentar a recessão e o coronavírus.

Neste momento histórico, os investimentos públicos e os gastos sociais devem ser avaliados pela sua efetividade, ou seja, pelo seu efeito multiplicador na cadeia produtiva e seu impacto no bem-estar social da população e não apenas nos efeitos fiscais produzidos sobre as contas públicas: o custo de uma recessão em termos fiscais no médio e longo prazo será muito maior, se as metas fiscais de curto prazo forem priorizadas.

Deste modo, tendo em mente os espaços abertos com o Decreto de Calamidade Pública, para refrear a fase exponencial e diminuir a taxa de letalidade da doença, apoiamos as seguintes medidas em caráter emergencial:
(i) aplicação imediata de recursos adicionais no SUS, que poderiam ser financiados com a venda de títulos públicos, emissão de moeda e/ou utilização de parte do superávit financeiro da Conta Única do Tesouro Nacional, criando um fundo público no valor mínimo de R$ 22,5 bilhões (perda apurada nos exercícios de 2018, 2019 e 2020 em decorrência da mudança da regra do piso do SUS federal pela Emenda Constitucional 95/2016). É fundamental também suspender a regra de ouro, permitindo emissão de dívida para financiar os gastos do SUS e demais políticas públicas para enfrentar a pandemia;

Tabela 1 - Perdas do Financiamento Federal do SUS a partir da EC 95

(ii) alocação de tais recursos para (a) retomar o Programa Mais Médicos; (b) melhorar as ações de vigilância em saúde; (c) buscar ativamente possíveis infectados entre os grupos de risco por meio dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias; (d) ampliar os testes rápidos (50 milhões) e PCRs (20 milhões) para mitigar as subnotificações e conter o contágio; (e) garantir insumos, equipamentos de proteção individual e respiradores nas unidades de saúde; (f) aumentar oferta de leitos hospitalares e de unidades de terapia intensiva; (g) implantar central nacional de regulação de leitos públicos e privados para organizar o fluxo de atendimento dos casos mais graves;

(iii) suspensão de todos os atos (decretos, portarias e resoluções), que mudaram o financiamento da política de saúde, especialmente aqueles relacionados à portaria 2.979/2019 do Ministério da Saúde – que instituiu o novo modelo de financiamento da atenção primária à saúde. Além de extinguir o Piso de Atenção Básica – PAB fixo, que garantia aos municípios o acesso a recursos regulares e automáticos segundo o critério populacional, a partir do mês de maio, os municípios deixarão de receber o montante correspondente ao cadastro potencial. Isso provocará uma corrida pelo cadastramento de usuários, deslocando os profissionais de saúde para funções administrativas, visando a manutenção do recebimento de recursos federais, ao invés de garantir sua presença na rede de atenção à saúde;

(iv) aprovação da Contribuição sobre Grandes Fortunas no parlamento, substituindo o dispositivo constitucional que criou o Imposto sobre Grandes Fortunas. Os recursos seriam repartidos entre união, estados e municípios e vinculados às áreas da saúde, ciência e tecnologia, saneamento básico, segurança alimentar e assistência social. Além do mais, conforme o artigo 150 da Constituição Federal, poderá ser cobrada no próprio ano da aprovação. Ela será calculada a partir de uma alíquota percentual progressiva sobre valores acima de R$ 10 milhões registrados na declaração de bens e patrimônios do imposto de renda sobre pessoa física e jurídica;

(v) tramitação da PEC 01-D/2016 para aprovação em segundo turno na Câmara dos Deputados e em dois turnos no Senado Federal, ampliando o piso federal da saúde para 19,4% da Receita Corrente Líquida, a ser atingido de forma escalonada em sete anos contados a partir do primeiro ano de vigência;

(vi) resposta com urgência das Ações Diretas de Inconstitucionalidade - ADIs, que tratam da redução dos pisos federais da saúde provocada pela Emenda Constitucional 86/2015 e 95/2016, em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Conforme oficialmente admitido até pelos técnicos do Tesouro Nacional, não há dúvida de que a Emenda Constitucional 95 desfinanciou o SUS;

(vii) utilização de 0,5% das reservas internacionais para a importação de equipamentos de proteção individual, insumos e kits para testagem, luvas, máscaras e respiradores, especialmente para aumentar a proteção dos trabalhadores nos serviços de saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia. É fundamental destinar recursos para a Fiocruz e para os laboratórios públicos para acelerar o desenvolvimento de kits diagnósticos, bem como participar dos esforços da comunidade científica internacional na busca da vacina e de medicamentos contra o coronavírus;

(viii) retomada dos investimentos da área de ciência, tecnologia e inovação, que ganhou força a partir dos anos 2000. Houve iniciativas importantes, visando reduzir a dependência externa na área da saúde, a partir de linhas de financiamento no BNDES, no Ministério da Saúde e no Ministério de Ciência e Tecnologia. Essa política de substituição de importação procurou desenvolver a produção de bens essenciais e estratégicos, o que poderia capacitar o país hoje a atuar com protagonismo no combate à pandemia.

Desde fins de janeiro, o governo tinha conhecimento de que o coronavírus chegaria no Brasil. Cerca de 60 dias depois, diante do aumento exponencial do número de casos e mortes, nenhum dinheiro novo foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde: as perdas com a Emenda Constitucional 95 giram em torno de R$ 22,5 bi, sem contar com eventuais gastos extras que serão necessários para conter a pandemia, exigindo o aumento de recursos (ainda não disponíveis até a publicação deste artigo).

Estamos, entretanto, diante de uma complexa crise político-institucional. Tudo leva a crer que, sob o governo Bolsonaro, não haverá saída democrática para superação das crises sanitária e econômica. A política de austeridade fiscal do governo dificulta a construção de um acordo nacional, que permita estados e municípios colaborarem no controle da doença. Pior: em boa parte precarizados, não estão garantidas condições salariais e de trabalho seguras para os profissionais de saúde, nem serão adotadas medidas rigorosas para proteger as classes populares e os grupos vulneráveis.

Na noite de 24 de março, o discurso irresponsável do Presidente da República contra o isolamento social e a quarentena nos colocou diante da possibilidade da anomia política, do abismo econômico e do caos social. O prefeito de Milão acabou de reconhecer seu equívoco com a campanha “Milão Não Para”, que provocou milhares de mortes evitáveis, e o editorial da Revista Lancet, uma das mais prestigiadas publicações internacionais da área de saúde, cita Bolsonaro como único governante ineficaz em relação às medidas de mitigação. Estamos na contramão do que orientam as autoridades governamentais em todo mundo, que buscam estabelecer políticas de fortalecimento dos sistemas de saúde, de um lado, e de suporte à economia, de outro, a exemplo da Inglaterra, Alemanha e EUA – que injetará dois trilhões de dólares para o enfrentamento da crise.

A hora da mudança é agora!


Bruno Moretti, economista e assessor técnico do Senado Federal
Carlos Ocké, pesquisador do Ipea
Érika Aragão, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABrES
Francisco R. Funcia, professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde – CNS)
Rodrigo Benevides, economista e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ.


Publicado dia 29.03.2020 em www.cartacapital.com.br
e dia 28.03.2020 em jornalggn.com.br




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