Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 14 - Maio 2018

Índice

  1. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: ATÉ QUANDO? - por Lenir Santos

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: ATÉ QUANDO?

Por Lenir Santos


O tema da judicialização da saúde não perde a vez, estando sempre nas pautas dos congressos, seminários, com gestores aflitos, operadores do direito perplexos e inúmeras medidas liminares a tirar o sono do secretário da saúde.

A Roda de Conversa, ocorrida no último dia 19 de abril, no Congresso do COSEMS-SP, na cidade de Rio Claro, foi um retrato desse fenômeno a afetar o sistema de saúde. Sala lotada e gestores ansiosos por uma solução, discorrendo sobre suas perplexidades no tocante as decisões mandatórias de terapias para usuários de planos de saúde, medicamentos sem registro, internações não prescritas por médicos do SUS e outras determinações, a ponto de haver imposição de internação de paciente com transtorno do espectro autista em desacordo à orientação médica e farta literatura a respeito.

Ao lado das dificuldades do SUS, haver ainda magistrados determinando o que é da competência própria do médico, chega às raias do desatino, ocasionando insegurança de toda ordem e levando o caos ao complexo sistema de saúde brasileiro.

Um fato que devemos também questionar é que grande parte da atuação pública em relação à judicialização, são medidas de aperfeiçoamento do próprio processo da judicialização, com o intuito de melhorá-lo, quando a meta deveria ser medidas de desjudicialiação, visando atacar suas causas. Atuar no processo da judicialização não é a melhor solução. É imperioso que o Poder Público atue nas causas que ensejam a judicialização para a sua superação.

Hoje não há uma causa única da Judicialização, que se antes era a inadequação dos serviços de saúde às necessidades das pessoas, tem sido um meio para o alcance de interesses individuais, empresariais, corporativos, financeiros, onde quase todos lucram, exceto o SUS, e por consequência, a população mais pobre que vê escoar recursos para o atendimento individual, na contracorrente de um sistema público de saúde de acesso universal.

A judicialização virou um negócio que confere lucro, poder, facilidades de acesso e outras vantagens que não têm a ver com a violação pura e simples do direito à saúde das pessoas no âmbito do SUS, seja pela escassez ou omissão pública. Não estamos com isso negando que eles existem, mas nem sempre é a causa.

Tanto isso é fato que no Estado de São Paulo, mais de 70% das demandas judiciais são interpostas por pessoas que têm planos de saúde, as quais não poderiam demandar serviços do SUS como complementares de seus planos de saúde. Não se pode fazer escolhas pessoais no SUS, mas sim nele se integrar mediante consulta, diagnóstico, prescrição terapêutica, procedimento hospitalar ou de apoio, realizado por profissional de saúde do SUS, no SUS, com prescrições em acordo à Relação Nacional de Medicamentos (RENAME) ou Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) (Decreto nº 7.508, de 2011).

No Estado Democrático de Direito o cidadão tem a garantia de acesso ao Judiciário quando há violação de seu direito, contudo, se isso foi a motivação inicial da judicialização da saúde, hoje as caronas e os abusos são maiores que as verdadeiras causas de lesão do direito. As teses de que o direito à saúde é ilimitado, não comporta fundamentação jurídico-sanitária e financeira porque nenhum direito é absoluto numa sociedade democrática que deve respeitar todos. Importa dizer que é preciso vencer as lacunas jurídicas que dão ensejo a essa tese insensata.

A definição legal do que seja a integralidade da assistência à saúde não é suficiente (art. 7º, II, da Lei nº 8.080, de 1990), tampouco a determinação constitucional inserta no art. 198, II. A integralidade constitucional é uma diretriz da organização do SUS, devendo ser dado preferência às ações e serviços de cunho preventivo em relação aos curativos.

Trata-se de um paradigma, premissa de organização do sistema para o alcance do direito à saúde (art. 196 da CF) que tem como princípio central a segurança sanitária, ou seja, evitar o risco de agravo à saúde; por isso as ações e os serviços de saúde preventivos devem prevalecer na organização do SUS. Diretriz que tem implicações na definição das políticas de saúde, na alocação orçamentária e na organização do sistema.

O SUS deve observar três diretrizes constitucionais no tocante à sua organização e funcionamento, que são: a) direção única em cada esfera de governo no sentido de que cada ente federativo deve agregar no setor saúde, na sua organização administrativa, tudo o que for saúde, não sendo viável a sua fragmentação por diversos ministérios ou secretárias estaduais e municipais; b) a segunda diretriz diz respeito a assistência integral, com prioridade para a prevenção; e c) a terceira, a participação da comunidade no SUS, objeto de disciplina na Lei nº 8.142, de 1990.

Ora a integralidade foi objeto de breve descrição no inciso II do art. 7º da Lei 8.080, de 1990, não suficiente para a sua compreensão, continuando em aberta, sem clareza, mesmo depois da edição da Lei nº 12.401, de 2011, que tinha por escopo definir a atenção terapêutica integral e que também não o fez a contento. Essa é uma lacuna imperdoável no SUS nesses 30 anos.

Um SUS de acesso igualitário e universal reclama definição da integralidade para não dar ensejo a interpretação que pretende que o direito à saúde seja um arsenal infindo de medicamentos, produtos e procedimentos.

Quem assim pensa não está a favor da construção e consolidação da saúde pública por não ser razoável, ante as constantes inovações tecnológicas. A grande maioria das inovações não pretendem curar, salvar, qualificar a saúde, mas sim introduzir o desnecessário, travestido de inovação, em nome do lucro. Ao se comparar a efetividade em relação ao custo-benefício, nem sempre há o que ser destacado, sendo grande ingenuidade pensar que a indústria executa pesquisas e lança medicamentos novos desinteressada de seus lucros, apenas por espirito humanitário.

Peter Gotzsche¹ afirma que “na atenção à saúde, a sociedade democrática aberta transformou-se em uma oligarquia de corporações cujos interesses servem à motivação de lucro da indústria e dão forma à política pública, inclusive às agências reguladoras enfraquecidas.” Escancarar a integralidade é motivo de profunda satisfação para a indústria farmacêutica e de produtos para a saúde, de elevados custos para o Governo e de ameaça à saúde universal.

No Brasil, ao se permitir tudo, inclusive produto e medicamento não registrados pela Anvisa, fazemos papel de bobos da corte em detrimento de melhor organizar o sistema para atender a todos de modo igualitário. Sistema maduro, é sistema que não admite tudo porque o cidadão não precisa de tudo o que existe na vitrine do mercado saúde; é sistema que regula com mão-de-ferro a incorporação de tecnologias, sem com isso descuidar do necessário, do relevante. A atenção básica de qualidade, acessível a todos, dá conta de solucionar 80% das necessidades de saúde das pessoas.

Por tudo isso tenho defendido a CONITEC – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde como a salvação do SUS no tocante à questão da integralidade versus incorporação tecnológica (inclusão, alteração e exclusão de tecnologias lato sensu). Os especialistas sanitários, com visão de destino comum da Nação, sabem que mais de 80% das inovações não são verdadeiras inovações; e que com média tecnologia se alcança bons níveis de saúde.

Aqueles que acreditam que garantir tudo o que o mundo capitalista produz para a saúde deve ser incorporado, ou ignora a sociedade em que vive neste século XXI, ou concorda que a meta são os altíssimos lucros e não a melhoria do bem-estar das pessoas. Basta de ingenuidade destrutiva do próprio sistema de saúde.

A frase comum de que não morre na minha mão sem maiores considerações técnico-sanitárias, é individualista e não salvacionista, por fazer prevalecer a iniquidade no sistema de saúde; essa conduta dá ensejo a criação de uma nova porta no SUS, enriquecedora das indústrias farmacêuticas, profissionais de saúde não comprometidos e inconsequentes e outras inúmeras caronas da judicialização para proveito próprio.

É preciso compromisso e sentido de destino comunitário de todos os envolvidos no processo de consolidação do SUS, e alguns fatos são bastante perniciosos, como as ações judiciais de por quem tem plano de saúde. Uma reflexão que se deve fazer é que quem legisla e julga tem plano de saúde privado, muitas vezes, pago pelos cofres públicos; sem se esquecer que muitas vezes também quem dirige o SUS tem plano de saúde.

A sustentabilidade do SUS primeiramente é política e uma questão de valores sociais. É preciso defender o SUS e ver despertado o sentimento de pertencimento de todos, lembrando que a população pobre que dele depende são 150 milhões de pessoas.

Lenir Santos, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp; e coordenadora do curso de especialização em direito sanitário do IDISA.

¹Gotzsche, Peter. Medicamento Mortais e Crime Organizado. São Paulo: Editora Bookman, 2017.





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