Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 14 - Maio 2023
Índice
- Carta ao calouro - por Kurt Kloetzel
Carta ao calouro
Por Kurt Kloetzel
Daqui a 6 anos tudo correndo bem, vocês estarão de saída por esta portas que acabaram de penetrar. Será motivo de júbilo para toda a família: terminou a tirania dos bancos escolares, eis-nos em face a mais um profissional acabado.
Mas estarão equivocados. A cerimônia de formatura apenas assinala o início de uma nova fase de aprendizado, a igualmente penosa adaptação à realidade. Nela terão que aprender uma porção de coisas novas, abandonar como bagagem inteiramente inútil boa parte das informações que a Escola Médica vos transmitiu.
Se isto for interpretado como crítica às Escolas Médicas, é exatamente isto que pretendo dizer: o ensino tradicional não mais cumpre o seu papel. Não nos cabe acusar esta ou aquela Escola em particular, pois trata-se de um fenômeno quase que universal, que dá mais valor à informação que à formação, que rouba à Medicina todo o seu conteúdo humano, justamente aquela característica que a torna uma profissão tão satisfatória, que conspira a felicidade do futuro médico.
A seguinte frase não é de minha autoria, mas posso endossá-la plenamente: “É mais fácil transferir um cemitério para novo local do que reformular um currículo médico”. Muitos de vossos mestres já o compreenderam, lamentam o que está acontecendo, mas conformam-se com a inércia de um sistema arcaico. Serão os próprios acadêmicos que terão que lutar pela reforma do ensino, pois ninguém o fará por vocês.
É possível fabricar excelentes médicos em menos de 6 anos, mesmo sem apelar para os anos de residências que, a esta altura, também já se tornaram tradicionais. Trata-se, infelizmente, de um mal necessário, pelo menos nas condições atuais. Mas, se a perda de tempo ainda pode ser olhada com fatalismo, de forma alguma podemos aceitar um sistema de ensino que apenas revela pequena parcela da realidade prática, e que mostra-se profundamente desgastante para a personalidade do aluno.
Daqui a 6 anos, senti-vos-ão chocados pelos contrastes entre o mundo lá fora e as limpas enfermarias do Hospital de Ensino, aos quais vos acostumaram. Apenas 1 em cada 1.000 pacientes consegue ingressar num desses estabelecimentos, o que já mostra tratar-se de uma população altamente selecionada, que não reflete a realidade médica do meio em que terão de clinicar. O grosso da população vos revelará necessidades inteiramente diversas, e os recursos à vossa disposição serão infinitamente menores.
Imaginem um artista de academia ao qual encomendaram pintar uma parede: sentir-se-á feliz na profissão, fará um serviço que preste? Ou melhor, tomem o exemplo daquelas escolas de culinária, frequentadas pelas mocinhas casadoiras, como lembram as Faculdades de Medicina!
Para tais academias de boa cozinha é questão de prestígio omitir-se ao corriqueiro da canja com galinha ou do tutu à mineira, ao invés disto, esmeram-se no preparo do pato à Califórnia ou da Lagosta ao Thermidor.
Mas eis o novo casal de regresso da lua-de-mel, e a ex-aluna em face a suas reluzentes panelas. Em poucos dias perceberá que foi ludibriada pelos mestres: não só a feitura de pratos exóticos não é permitida pelo orçamento familiar, mas o próprio esposo tem preferências menos sofisticadas, e insiste para que lhe sirvam o feijão, com arroz e bife de todos os dias.
Se a justeza desta comparação só mais tarde será notada por vocês, daqui a bem poucos meses perceberão, sem que alguém tenha que aponta-lo, uma outra faceta da triste realidade. Vocês, que conseguiram sobreviver ao bitolamento de tantos anos de Escola e de “Cursinho Pré-vestibular”, irão perceber que a fase da obediente memorização de números e nomes, dos testes e das perguntinhas tolas, ainda não ficou para trás, que persiste a ditadura do exame final, que o mestre ainda exige o devido respeito à hierarquia.
Muito mais grave ainda, é o risco de vossa castração emocional. Não obstante se diga aí fora que o estudante de Medicina nada mais procura que um futuro de prestígio social e lucros rápidos, conheço-os suficientemente bem para saber que grande parte de sua motivação vem do romantismo. Se vocês perguntarem, confessarão um tanto timidamente, que ingressarão na Faculdade de Medicina para servir ao próximo. E tais palavras são sinceras.
No presente momento mal adivinham que este tipo de linguagem provoca o sorriso dos colegas mais adiantados do curso. E também os mestres não perderão tempo em demonstrar, por palavras e por exemplos, como vos consideram ingênuos. Cada vez que vocês desviarem os olhos do livro de texto, procurando enxergar o homem que se esconde atrás de uma doença, o sofrimento traduzido por um rótulo diagnóstico, a cada tímido gesto de vossa parte em prol da dignidade humana, serão advertidos de que, para tornar-se um bom profissional, necessário se faz a frieza e a impassividade, a todo custo evitando envolver-se emocionalmente com os pacientes e seus problemas íntimos.
Daqui 2 ou 3 anos o massacre terá sido consumado. Também vocês estará em vias de se transformarem em bons técnicos, que reprimirão severamente qualquer centelha de compaixão ou de solidariedade humana, com medo de serem julgados românticos, não objetivos, emotivos, sentimentais. Tenho presenciado o fenômeno durante anos: entraram na Escola os jovens, puros e com expectativas mil; egressam dela os velhos desgastados, desencantados, bitolados. Roubaram-lhes algo muito precioso dentro destas paredes.
Se perguntarmos aos vossos mestres quais os seus objetivos, infalivelmente responderão: “Esta Escola existe para formar bons médicos”. E vossos pais aplaudirão, seguros de que o futuro do filho está em boas mãos.
Mas afinal, o que vem a ser um bom médico?
Bastarão conhecimentos científicos, aliados a uma pequena dose de habilidades manuais? Se assim for, as Faculdades não passarão de Escolas Técnicas. Pensem bem, e logo notarão a diferença fundamental entre o médico e o técnico. Ao técnico se ordena consertar uma fechadura, substituir uma peça da TV, trocar o platinado do carro, apertar um parafuso. As suas obrigações estão precisamente delimitadas, o freguês sabe exatamente o que deve ser feito, e logo identificará o mau técnico.
Ao médico, por outro lado, não entregam uma tarefa, mas um problema, definido apenas vagamente: “Quero voltar a sentir-me como antes, doutor”. O problema tem raízes orgânicas, psíquicas e sociais, em conjunto ou isoladamente. Resolvê-lo com imediatismo (tomar uma Aspirina na dor de cabeça) ou em profundidade (descobrir o medo, a inadaptação, a fadiga ou a desnutrição de que esta dor de cabeça é apenas a expressão somática) é decisão que cabe ao próprio médico.
O paciente subordina-se inteiramente, raramente sabe julgar entre o bom e o mau profissional. Em suma, é o próprio médico que delimita o seu campo de atuação, é ele o único árbitro da qualidade de sua assistência.
Isto é verdade especialmente, quando se trata de tomar medidas profiláticas, capazes de prevenir complicações futuras. Estas não correspondem à uma necessidade do paciente, que desconhece mesmo, que tais cuidados possam existir.
O bom médico tem vontade de resolver um problema e notem como é difícil definir tal impulso. Poderá ser aprendido na Escola Médica?
Recentemente, um amigo forneceu-me uma definição muito preciosa: “O bom médico é como aquela marca de gasolina – tem algo mais”.
Este algo mais, podemos dar-lhe diversos nomes, mas consciência é um TERMO que serve perfeitamente bem. A maioria de vocês já a traz de casa; não permitam que ela vos seja roubada nos anos de Escola Médica!
A esta altura, já devem ter percebido que não desprezo o romantismo dos jovens; ao contrário, acredito ser este um excelente instrumento de trabalho. Mas não posso deixar de alertar contra alguns excessos frutos de longas horas passadas em frente das telas de cinema e televisão, na companhia dos Doutores Kildare e Welby.
Quero mencionar, em primeiro lugar, a supervalorização da pesquisa médica, característica não apenas dos acadêmicos, mas também, de todo jovem médico. Mesmo que todas as horas estejam ocupadas, mesmo que o nosso dia a dia seja pleno de satisfações profissionais, no fundo sentimo-nos todos um tanto incompletos se, além de médicos, não nos possamos considerar, igualmente pesquisadores.
Embora tenha sido este o assunto específico sobre o qual me pediram para discorrer, acho-o tão desinteressante que me limitarei a breves considerações:
1a - Para que o médico possa ser considerado um profissional de altas qualificações, não é preciso que seja, simultaneamente, um bom pesquisador. Alguns dos maiores clínicos de todos os tempos, jamais fizeram qualquer investigação que prestasse.
2a - Assim como o amor, também uma ideia surge espontaneamente, no momento certo. Declarar que: “no mês que vem terei duas horas livres por dia, e aí começarei alguma pesquisa”, só levará a resultados medíocres. Não se pode planejar a inspiração do momento.
3a - Se alguém me perguntar: “Como é que se aprende a ser pesquisador?”. Responderei: “Aprenda primeiro a perguntar jovem”. A verdadeira pesquisa nasce de uma pergunta feita à natureza. E não será nada fácil formular perguntas originais, jamais feitas por alguém anteriormente.
4a - Há pesquisas e pesquisas, menos de 1% dos trabalhos científicos nas Revistas de Medicina trazem contribuições mais duradouras. Um norte americano calculou certa vez, que a vida média dos trabalhos publicados não passava de 3 anos e meio!
5a - Não é a falta de conhecimentos, mas a falta de utilização de normas já tradicionais que constituem o ponto fraco no panorama da Saúde Humana. Calculou-se que os conhecimentos de que já dispomos permitiriam eliminar imediatamente, sem que novos conhecimentos adicionais fossem necessários, cerca de 2/3 do obituário da América Latina.
Quero mostrar-vos também, que o dia a dia da Medicina é menos dramático do ue o visualizam no presente momento. Sei que corro o risco de ser considerado desmancha prazeres, mas prefiro que aprendam a verdade já no início do curso médico. Assim como todo leigo, também vocês reverenciam a figura mítica do médico, de avental branco, máscara e bisturi na não. Desconhecem inteiramente que outros campos de atividade podem oferecer a mesma satisfação, a mesma dignidade.
Sem dúvida o exercício da cirurgia pode ser útil e até interessante. Mas o mundo da Medicina comporta apenas um número reduzido de cirurgiões. Número que se reduzirá mais ainda, à medida que formos evoluindo. Com efeito, a qualidade de um sistema assistencial está em razão inversa do número de intervenções realizadas. Não veem vocês que um transplante de coração só se torna necessário, porque não soubemos tomar em tempo hábil, as medidas preventivas indicadas, não soubemos ou não quisemos impedir a progressão da doença até seus estágios mais avançados?
Desmistificar a dramaticidade da Medicina não deve roubar-vos a alegria de viver. O dia a dia do médico é bastante rico em imprevistos, em desafios, em satisfações íntimas, a vida profissional sendo monótona apenas para aqueles que facilmente aceitam uma rotina.
Há mil obstáculos à vossa frente, e um dos mais perigosos é “o mais velho”, “_o homem experient_e”, que zomba do vosso despreparo e procura arvorar-se em conselheiro. Quando ele se acerca, mudem de assunto e falem de futebol; trata-se de um personagem cujo pessimismo apenas traduz o seu total desrespeito pelo diploma que lhe concederam na Universidade. No seu entender, o paciente é um ingrato, a Medicina desinteressante, e a vida do médico uma constante luta contra a indigência econômica.
Tais indivíduos sentir-se-iam mais felizes no ramo imobiliário, e o mesmo conselho poderia dar aqueles raros dentre vocês, que ainda acreditam que a Medicina é um passaporte para o conforto material. “Vocês têm duas opções”, sempre digo aos meus alunos: “ainda é tempo de escolher entre as noivas”. A primeira é atraente, física e espiritualmente, mas o pai é rico comerciante e pode assegurar ao genro um auspicioso início de carreira; a segunda noiva, por outro lado, é linda em todos os seus aspectos, mas órfã de pai e mãe. Tomei a segunda opção – a Medicina, e jamais me arrependi.
Haverá momentos de angústia existencial à vossa frente, quando estarão convictos de nada terem aprendido, de ainda estarem a engatinhar no conhecimento do homem e de seus problemas. Tranquilizem-se pois também eu, vinte anos depois de me terem entregue o diploma, em certos dias experimento esta mesma sensação.
Não se preocupem com a informação; esta jamais é completa e constantemente muda. Estudamos a vida toda, aprendemos nos momentos mais inesperados, sozinhos, sem mestre escola pela frente. Mas reclamem da Escola se esta vos deixar faltar a necessária formação. E se isto lhes for difícil, que pelo menos não destrua as qualidades que vocês trazem dentro de si.
Vossa personalidade deve ser preservada. Vossa iniciativa merece estímulo. Um autodidatismo por vezes mais vale do que a subordinação passiva aos preceitos transmitidos de segunda ou terceira mão. Insistam para que a Escola reserve pelo menos ¼ da carga horária para que possam ter a liberdade de estudar aquilo que mais vos fascina no momento, de ler, ouvir e observar por conta própria, assim como formando a vossa concepção pessoal do mundo que nos rodeia.
Reclamem, muito em particular, daqueles que cada vez que vocês ousarem uma atitude de contestação, nessa sociedade que em toda parte esta longe da perfeição, procurem assegurar o vosso conformismo com a advertência de que o universo do estudante deve limitar-se aos bancos de Escola e aos livros didáticos. É possível que tal conselho seja útil ao técnico, mas jamais contribuirá para a formação de bons médicos. A Medicina esta na confluência das Ciências Sociais.
DECLARAÇÃO DE MEUS DIREITOS
1o - A partir de hoje preparo-me para bem servir a meus pacientes, e através deles ao meu país. Tenho pois, o direito de exigir um ensino baseado na realidade nacional mais ampla do que aquela oferecida pelo consultório particular de meus mestres ou descrita pelos livros de texto, a maioria dos quais redigidos por estrangeiros.
2o - Sou um apaixonado pela profissão, embora não a tenha vivido. Este entusiasmo é pré-requisito pelo menos tão importante como conhecimentos teóricos ou a habilidade no manuseio de um instrumental, portanto deve ser respeitado e fortalecido durante os anos de Escola Médica.
3o - Minha meta é trabalhar com doentes, não apenas com doenças, e terei o direito de protestar toda vez que me confrontarem com uma Medicina despersonalizada, pretensamente científica, despojada do conteúdo humano.
4o - Tenho o direito de exigir que, após longos anos de ensino arcaico e altamente nivelador, finalmente me deixem desenvolver a própria identidade e a própria criatividade. Repudio um ensino baseado na memorização de fatos estéreis, uma avaliação de meu aproveitamento estribada no regime de terror dos exames e provinhas.
5o - A formação do “médico que o Brasil precisa” não dever restringir-se ao currículo médico tradicional, mas visar uma cultura muito mais ampla. Tenho o direito de perseguir tais objetivos sem que alguém me reprove por ser “dispersivo”, sem que me acusem de tentar esquivar-me à minhas “legítimas obrigações”.
6o - E se estes direitos não me forem reconhecidos, tenho o direito de lutar por sua conquista. Tenho uma missão a cumprir.
Kurt Kloetzel
(Nasceu em 1923 e faleceu em 5 de agosto de 2007) foi um médico e professor brasileiro. Formado em Engenharia, Kurt cursou Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), graduando-se em 1955. Dedicando-se ao estudo das doenças infecciosas e parasitárias, viveu um tempo em Pernambuco, e permaneceu na USP até o Golpe Militar de 1964, quando houve a cassação de diversos professores do Departamento de Parasitologia da USP. Mudou-se, então, para a Nigéria, onde exerceu a função de consultor da Organização Mundial da Saúde na década de 1960. Retornou ao Brasil em 1967, passando por diversas universidades, mas jamais sendo aceito novamente na USP. Fixou-se na Universidade Federal de Pelotas, onde fundou, em 1978, o Departamento de Medicina Social e Comunitária. Publicou diversos livros, como "As Bases da Medicina Preventiva" (1973), "Higiene Física e Ambiente" (1975), "Raciocínio Clínico" (1977) e a série "Primeiros Passos", da Editora Brasiliense. Kurt explora, em "Raciocínio Clínico", aspectos importantes para a formação do médico generalista e fundamentais ao raciocínio diagnóstico e terapêutico, como a existência do "achado casual", de fenômenos como a "remissão espontânea" e cunha o termo "demora permitida". Foi um defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) e entusiasta da Estratégia de Saúde da Família.