Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 15 - Maio 2018

O SUS, AS ELEIÇÕES DE 2018 E A DEMOCRATIZAÇÃO DO ESTADO: ALGUNS PINGOS NOS ÍS

Por Nelson Rodrigues dos Santos


Lembremos nós, militantes do SUS, algumas realidades óbvias e outras nem tanto, todas discutíveis, mas que, nestes 30 anos do SUS, nos remetem para um grande desafio que permanece: - o direito das maiorias da população apropriar conhecimento, consciência dessas realidades e retomar o amplo debate e mobilização, já neste ano eleitoral. Arriscamos a síntese dessas realidades:

1 -- Concordância universal com o modelo de atenção á saúde de qualidade, provedor de condições de vida saudável, proteção contra riscos de doenças crônicas, transmissíveis e traumas, e diagnóstico e tratamento precoces, que resolve 80 a 90% das necessidades e direitos da população (Atenção Primária ou Básica á Saúde). Esse modelo não comporta o desumano volume de sofrimento e recursos financeiros evitáveis, e atende oportunamente com procedimentos especializados de maior custo assistencial, os 10 a 20% que inevitavelmente necessitam.

2 -- Somente os sistemas públicos de saúde universalistas e equitativos de atenção integral á saúde, assumidos por Estados mais democratizados, conseguem efetivar o modelo de atenção apontado no item anterior. Esta é uma realidade explicitamente comprovada por mais de um século, por evidências científicas, indicadores de eficácia social, de eficiência em economia de escala, de precedência da realização da Equidade sobre a economia de escala em situações bem identificáveis, de redução da desigualdade social e do alto significado econômico dos multiplicadores fiscais que comprovam o crescimento do PIB consequente ao investimento no sistema público de saúde, em valor bem acima do valor desse investimento.

3 -- Nos sistemas públicos de saúde universalistas a menor “célula” territorial e populacional do sistema é a Região de Saúde com seus municípios articulados de tal forma que a população regional disponha de fácil acesso aos serviços de Atenção Básica resolutiva e referência para redes microrregionais e regionais de assistência especializada.

4 -- Os sistemas públicos universalistas de saúde foram surgindo no século passado nos países europeus, abalados com a desenfreada acumulação e concentração da riqueza e do capital, graves crises econômico-sociais e com duas grandes guerras mundiais, que levaram as sociedades a pactos sociais mais civilizados, que geraram os Estados de Bem-estar Social – EBES, estendidos após ao Canadá, Japão e outros.

5 -- Constatações empíricas nas sociedades com EBES: - a) as empresas de seguro privado de saúde, vem se mantendo com seus consumidores representando por volta de 10% da população, pelo fato de que por volta de 90% optam pelo sistema público universalista de qualidade, b) nesses países o desempenho do sistema público universalista constitui-se no grande marco regulatório do mercado dos seguros privados de saúde, e c) esses sistemas públicos são financiados por 75 a 80% dos gastos totais com saúde, que correspondem de 7 a 8% do PIB.

6 -- Constatações empíricas nas sociedades com o mercado na saúde pouco ou nada regulado pelo interesse público: a) o mercado de planos e seguros privados de saúde concentra-se na assistência especializada e/ou tecnificada de médio e alto custo, integrando um tripé inter-dependente com o mercado da indústria de medicamentos e equipamentos de saúde e com as agências financeiras desse tripé, b) os interesses desse mercado tencionam permanentemente as condutas profissionais de saúde sob os ângulos técnico-científico e bioético, e c) esse mercado na saúde não se realiza sob os princípios da universalidade, equidade e atenção integral para os direitos humanos á saúde.

7 -- Nos “arranjos ou mix” público-privados que vem sendo propostos ou implementados em vários países, inclusive o nosso, consta uma Atenção Básica de baixo custo, focal e compensatória (“cesta básica”), e assistência especializada realizada majoritariamente sob gestão de entes privados contratados/conveniados, sob padrão de eficiência de economia de escala com baixo custo unitário. Ao contrário do que propagam, tornam o sistema menos eficaz em relação aos gastos públicos com a saúde dos cidadãos: - a ausência da atenção integral á saúde, da equidade e consequente alta produção assistencial, geram incalculável massa de procedimentos diagnósticos e terapêuticos tardios e evitáveis, consequente sofrimento humano e por isso, ineficácia do sistema com desperdício de recursos públicos. O paradigma subliminar que nos é inculcado é o dos EEUU, cuja % do PIB para a saúde é quase o dobro da média europeia (devido aos elevados gastos privados) e seus indicadores de saúde permanecem abaixo da media europeia.

8 – Quanto a essas comprovadas realidades apontadas nos itens anteriores, vale indagar: - como as militâncias “SUS” e do MRSB(Movimento da Reforma Sanitária Brasileira) vem tomando conhecimento e reagindo perante estas e outras realidades e desafios? Em minitexto anterior interpretamos que a maior parte dos profissionais e demais trabalhadores do SUS e gestores descentralizados no seu trabalho diário, não só resgatam na prática os valores do direito e solidariedade, como também acumulam nos seus corações e mentes o testemunho e sentimento de que estão fazendo de bem aos direitos da população, daí a expressão “militância SUS”, e a eles somam os conselhos de saúde. Realizam a cada ano mais de 3 bilhões de atendimentos ambulatoriais, mais de 11 milhões de internações, mais de 500 milhões de exames laboratoriais e radiológicos, os maiores programas de imunização e de transplantes de órgãos e tecidos do mundo, etc. Nos congressos do CONASEMS e dos COSEMS são expostos painéis e stands com centenas e dezenas de ilustrações de experiências bem sucedidas no SUS em todo o território nacional, fruto da tocante e obstinada persistência, criatividade e solidariedade de trabalhadores de saúde, gestores descentralizados e usuários do SUS. A militância do MRSB são os dirigentes eleitos e afiliados das entidades CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, RedeUnida, APSP, SBB, IDISA e outras, assim como importantes setores acadêmicos nas áreas da saúde, sociologia, política, história e outras. Diante de tantos obstáculos e distorções impostos ao SUS, que impedem a implementação geral do modelo descrito nos dois primeiros itens deste minitexto, algum arrefecimento ou desgaste já pode estar ocorrendo na militância “SUS”. Também nos corações e mentes dessa militância deve ressoar o desgaste de conviver, impotentes nestes 30 anos, com a quantidade diária de procedimentos diagnósticos e terapêuticos tardios, com sofrimentos humanos e até óbitos evitáveis, convivendo com a reconhecida alta produtividade e eficiência com baixos recursos, e por outro lado, com muito baixa eficácia social, muito aquém do pactuado no debate constitucional para a atenção integral à saúde e a equidade.

9 – Como nos anos 70 e 80 surgiram essas militâncias e como elas atuaram perante os movimentos sociais e estrutura sindical de então, perante a academia e os poderes Legislativo e Executivo? – Quais etapas e resultados que desaguaram na CF/1988? – Nos últimos 30 anos, quais alterações acumularam-se: na composição e estratégias das forças hegemônicas, nos profundos impactos da comunicação virtual, informática e automação na estrutura dos processos de trabalho e das relações de trabalho? -- A concepção e estrutura dos EBES encontram-se em reconstrução? -- E as cooptações de quadros dessas militâncias? -- E seus desafios nos limites da contra-hegemonia? – Qual o sentido nesses 30 anos, da fragmentação nas representações sociais, nas estratégias das centrais sindicais e da crise de representatividade na sociedade, no Legislativo e no Executivo? -- Na dobrada da década dos anos 80 para a dos anos 90 houve inflexão nas origens e forças, impensáveis até então, contra a pactuação social em construção e aprovação da Constituição Cidadã? -- Nestes 30 anos as militâncias “MRSB” e “SUS” muito cresceram, mas suas formulações, construção de bandeiras unitárias e mobilizações diretamente com a sociedade e suas entidades, assim como com os poderes Legislativo e Executivo, adequaram-se e cresceram em amplitude e vitórias democráticas? Fechamos este item recomendando enfaticamente as apresentações e reflexões no recente evento CONASS Debate (24-25/Abril) ”Futuro dos Sistemas Universais de Saúde”: Portugal, Costa Rica, Inglaterra e Canadá, e no Brasil, as imperdíveis contribuições, informações e propostas de Jairnilson Paim, Gastão Wagner, Eugenio Vilaça, Fernando Cupertino e outros (http://www.conass.org.br e ascom@conass.org.br). Na mesma linha a Revista Ciência & Saúde Coletiva lançará em Junho, número especial dos 30 anos do SUS, também imperdível.

10 -- Vivemos hoje o intricado desafio dos debates, pesquisas e reflexões na busca de respostas a essas e outras questões, que foram vitais para o pacto social e constitucional dos anos 80. Quais mudanças, reformulações e reconstruções passaram a ser requeridas no decorrer desses 30 anos, para a sociedade e Estado, com vistas á construção do SUS? - Para tanto não vemos como não considerar o ângulo mais abrangente e histórico da Economia Política. Deparamos com a retomada da acumulação e concentração exponencial do capital, agora globalizada, com estratégia definida e explicitada nos anos 80: uma pactuação alicerçada por uma “nata” internacional de intelectuais orgânicos e estrategistas financeiros especialmente convidados. Foi o “Consenso de Washington”, que após as experiências de Thatchter e Reagan, definiram entre várias estratégias, a de não mais financiar os EBES com recursos públicos, impondo a Financeirização dos Orçamentos Públicos - FOP, o comando hegemônico do capital financeiro-especulativo sobre o capital produtivo e graus diferenciados de autonomia dos Bancos Centrais perante os governos nacionais. Na FOP destaca-se a estratégia da austeridade nos gastos públicos com a infraestrutura do desenvolvimento nacional e com as políticas públicas universalistas para os direitos sociais, gastos esses classificados como perdulários nas instituições públicas mas não na iniciativa privada (subsidiada ou livre mercado). A FOP vem avançando globalmente nestes 30 anos, com intensidade variável segundo o grau de desenvolvimento e democratização do Estado e a reação da sociedade em cada país; no Brasil os juros e demais serviços da dívida pública há vários anos vem consumindo acima de 50% do Orçamento Geral da União, este gasto, jamais assumido como perdulário pela ortodoxia econômica neoliberal, menos ainda, qualquer possibilidade de ser submetido a auditoria internacional independente. Restam: 22,1%-previdência social, 3,9%- saúde, 2,8% -educação, 0,5%-segurança pública, 0,04%-energia, 0,04%-saneamento, etc. Os 30 anos de pregação dessa ortodoxia econômica criou tais expectativas, que Pérsio Arida, coordenador da proposta econômica da campanha do ex-governador do Est. de S.Paulo, declarou em entrevista pública: “a obrigação de destinar parte das receitas públicas para Saúde e Educação deve passar da Constituição para Lei Ordinária, porque cai de 308 para 257 o número de deputados a serem contornados”. A Emenda Constitucional- 95/2016 foi mais um passo na FOP, constitucionalizando-a. Fechamos este item também com enfática recomendação do imperdível texto “Políticas Sociais e Austeridade Fiscal: Como as Políticas Sociais são Afetadas pelo Austericídio da Agenda Neoliberal no Brasil e no Mundo”, de Fabíola S. Vieira, Isabela S. Santos, Carlos O. Reis, Paulo H. Rodrigues e outros, Janeiro/2018.(Os núcleos do CEBES de Brasília, Goiás e Salvador elaboraram o criativo resumo “Que História é essa de Austeridade?”). Muito recomendamos também a excelente análise de Pedro P. Bastos e Luis G. Belluzzo “Uma Crítica aos Pressupostos do Ajuste Econômico” publicado em 09/10/2016 no caderno “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo.

11 – Compondo com a implementação da FOP em nosso país, permanece intocável nosso sistema tributário entre os mais regressivos e espoliadores do mundo: penaliza tanto mais quanto menor é a renda pessoal e familiar e bem mais os agentes da produção e consumo, do que os agentes da acumulação da renda de aplicações financeiras especulativas, dividendos, patrimônio e riqueza. Nosso sistema tributário permanece como verdadeiro motor da engrenagem concentradora de renda e desigualdade social. A proposta de iniciar efetivamente a reversão da regressividade, mais consequente e viável até o momento, é o projeto apresentado pela Federação Nacional do Fisco-FENAFISCO (Estados e Distritos) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Nacional-ANFIP.

PS – Os minitextos “A Globalização Perversa e Desumana da Ditadura Financeira Especulativa” (11/11/2015) e “A Conjuntura de 30 Anos do Domínio Financeiro Especulativo: Desafios para 2018”(02/01/2018) estão a disposição por trazerem dados e informações ligados a este minitexto.

Nelson Rodrigues dos Santos, atual presidente do Idisa, médico pela USP e Professor colaborador da Unicamp





OUTRAS DOMINGUEIRAS