Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
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Conselho Editorial
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Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 15 - Maio 2021

Índice

  1. Responsabilidade sanitária na pandemia - por Reynaldo Mapelli Júnior

Responsabilidade sanitária na pandemia

Por Reynaldo Mapelli Júnior


Por imposição constitucional, o SUS não é política de um governo específico e não se submete à uma discricionariedade administrativa desenfreada que permita não planejar e não reservar recursos orçamentários suficientes para as políticas de enfrentamento da COVID-19, inclusive atrasando propositalmente os procedimentos de aquisição de itens essenciais como testes, vacinas e kits de intubação para UTI. Muito menos pode ele se sujeitar, por isso mesmo, ao negacionismo compulsivo tão em moda na sociedade atual, para a defesa de terapias sem evidência científica, como o uso de cloroquina, ou para o estímulo de ações de risco que ofendem a saúde da população, como aglomerações e a recusa em usar máscaras de proteção em plena pandemia.

No Brasil, muito pelo contrário, o regime jurídico constitucional do SUS não deixa escolha aos agentes políticos que exercem autoridade sobre as políticas sanitárias: é sua obrigação, sob pena de responsabilização segundo o ordenamento jurídico vigente, o desenvolvimento de ações governamentais articuladas, organizadas, para promover a saúde de todos aqueles que vivem no território brasileiro, sempre mediante a redução de risco de doença e outros agravos e a oferta de assistência para atendimento integral, em atividades preventivas (educação em saúde; medidas protetivas como o isolamento, a quarenta, o uso de máscaras e álcool em gel; vacinação; políticas condicionantes do direito à saúde como as de renda) e serviços assistenciais (atendimento em hospital por equipes de saúde suficientes e qualificadas; disponibilização de medicamentos segundo as evidências científicas; leitos em UTI equipados com kit intubação e oxigênio) (artigos 196 e 198, II, CF). Isso nunca ficou tão realçado como agora, em tempos de pandemia e irresponsabilidade escancarada de alguns agentes políticos.

Por outro lado, as ações de controle e fiscalização de procedimentos terapêuticos, substâncias farmacêuticas e produtos de interesse da saúde, incluindo o uso baseado nas melhores práticas de alguns coquetéis de medicamentos para pacientes infectados com COVID-19 e neuromusculares para a intubação em UTI, ao invés da indicação criminosa de remédios como se fez com a cloroquina em “Notas Técnicas” do Ministério da Saúde, e as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, como as fiscalizações para cumprir medidas de enfrentamento da pandemia e a vacinação de todos, que não permitem o desestimulo às vacinas e às máscaras e a promoção de aglomerações pelo país com ampla divulgação nas redes sociais, são atividades típicas do SUS (artigo 200, I e II, CF), razão pela qual constituem também um dever legal das autoridades públicas.

Além disso, para cumprir seu objetivo o SUS deve ser construído mediante a pactuação dos gestores de nível federal, estadual e municipal, que significa conversa, articulação e montagem consensual das políticas públicas, já que as ações e serviços públicos de saúde, complementados pela iniciativa privada quando contratada ou conveniada, constituem ou devem constituir um sistema único em rede organizada regional e hierarquicamente, que atenda os três níveis de complexidade de assistência e respeite a autonomia de cada esfera de governo, que tem direção única em razão da descentralização dos serviços (artigo 198, caput, I, CF). A preponderância aqui, até mesmo porque geralmente os Estados e os Municípios têm dificuldades econômicas e políticas que não conseguem enfrentar sozinhos, é o papel de articulação do Ministério da Saúde, que deve ser o responsável por formatar as políticas nacionais mediante negociação com os demais gestores, inclusive em comissões intersetoriais de âmbito nacional e nas Comissões Intergestores Tripartite – CIT e Bipartite – BIT, ouvidos sempre o CONASS e o CONASEMS (artigos 12 a 14-B e 16 da Lei no 8.080/90, a Lei Orgânica da Saúde – LOS). O CONASS e o CONASEMS vêm reiteradamente pedindo para o Ministério da Saúde assumir o seu papel, solicitando dele planejamento, recursos e estrutura hospitalar, para isso não sobrar para os demais entes federados. Ao contrário do que alguns tentam propagar, o modelo legal, portanto, é o de competência concorrente da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde (art. 23, II, CF), mediante cooperação técnica e financeira (art. 30, VII, CF), ainda que a competência legislativa dos Municípios seja supletiva (artigos 24, XII, e 30, I, CF), como já decidiu mais de uma vez o Supremo Tribunal Federal (ADPF 672/DF, ADIN 6341/DF e RCL 40426). O Poder Executivo Federal não fica excluído, mas é ou deveria ser o autor principal na construção das políticas nacionais, como é bem exemplificado na Política Nacional de Imunização (artigo 3º, da Lei no 6.259/75).

A legislação específica da COVID-19 no Brasil reforçou a competência concorrente de todos os entes federados, obrigando-os a conjuntamente adorarem, de acordo com as especificidades locais, medidas de enfrentamento da pandemia, como isolamento, quarentena, realização compulsória de vacinação, exames e procedimentos, restrição de deslocamento espacial e requisição indenizável de leitos privados, com a possibilidade de autorização excepcional de importação de produtos sem registro na ANVISA, mas com registro sanitário em outros países, e dispensa de licitação (artigos 3º e 4º da Lei no 13.979/20 e Decreto Legislativo no 6/20). Existem regras específicas na restrição de direitos, como o tempo de duração das medidas e a determinação por prescrição médica ou recomendação de agente de vigilância epidemiológica (Portaria MS no 356/20), mas aqui não há qualquer espaço para discricionaridade de quem quer que seja, pois deve haver responsabilização de quem não cumpre as medidas, com comunicação imediata ao Ministério Público (artigo 5º da Portaria MS no 356/20), inclusive no âmbito penal, especialmente para apurar os crimes dos artigos 268 e 330 do Código Penal (artigo 4º da Portaria Interministerial no 5/20). O servidor público que concorre para o descumprimento das medidas, inclusive as autoridades públicas, fica sujeito à responsabilidade administrativa disciplinar (artigo 3º, §1º, da Portaria Interministerial no 5/20).

Como não se faz saúde pública sem adequado financiamento, que deve obrigatoriamente ser suportado por todos os entes da federação (artigos 198, §§1º e 3º, CF, e Emendas Constitucionais nº 29/00, 86/15 e 96/16), não se pode aceitar, por outro lado, a falta de previsão de recursos no Projeto de Lei Orçamentária anual de 2021 para o enfrentamento da COVID-19, a insuficiente e tardia alocação orçamentária para a aquisição de vacina no ano de 2020 , a recusa em comprar vacinas ofertadas e o ritmo lento e insuficiente de execução orçamentária no Fundo Nacional de Saúde ao longo do exercício financeiro de 2020, por parte Governo Federal, como denunciou o IDISA e a Associação Brasileira de Economia da Saúde em representação recentemente encaminhada ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Púbico Federal. A responsabilidade sanitária pela não previsão de recursos no orçamento, pela insuficiência de seus valores e pelo rateio inadequado do dinheiro entre os entes federados, que deve seguir específicos critérios técnicos, decorre expressamente da legislação brasileira (Lei Complementar no 141/12).

Todas estas ilegalidades, praticadas por descumprimento da legislação sanitária, foram promovidas pelo Governo Federal desde o início da pandemia, com ampla divulgação na mídia e nas redes sociais, e na Domingueira do IDISA de 15.5.2021 o Prof. Nelson Rodrigues dos Santos, um dos sanitaristas mais respeitados do país, chegou a arrolar 20 posicionamentos criminosos desse tipo.

Assim, embora os projetos de lei sobre responsabilidade sanitária ainda dependam de aprovação do Congresso Nacional (Projetos de Lei nº 174/11, nº 1.746/19 e nº 353/21), que fique claro desde já que os agentes políticos devem ser responsabilizados pela falta de articulação nacional das políticas públicas, pela insensibilidade em atender os pedidos dos órgãos técnicos para a distribuição de recursos e a oferta de medicamentos e estrutura, pela ausência de imposição de medidas adequadas de enfrentamento da pandemia e/ou incentivo ao seu descumprimento, por condutas de risco, pelas dificuldades propositalmente criadas para retardar a compra de vacinas e pela ausência de previsão orçamentária adequada, condutas estas que no caso do Presidente da República constituem crimes de responsabilidade (Lei no 10.079/50) que o sujeitam ao processo de impeachment. É aqui que se revela estrategicamente importante o trabalho atual da Comissão Parlamentar de Inquérito da COVID-19, bem como, a atuação firme dos órgãos de controle sanitário, especialmente o Ministério Público, instituição que deve ser independente e não pode se submeter à pressão política que costumeiramente lhe é endereçada. Resultados concretos são esperados e a sociedade civil vai cobrar.


Reynaldo Mapelli Júnior: Promotor de Justiça do MPSP, Doutor pela Faculdade de Medicina da USP, Vice-Presidente do IDISA




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