Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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Conselho Editorial
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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 16 - Abril 2019

Índice

  1. A REFORMA DA PREVIDÊNCIA (PEC Nº 6/2019) E OS GRAVES PREJUÍZOS IMPOSTOS ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - por Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA (PEC Nº 6/2019) E OS GRAVES PREJUÍZOS IMPOSTOS ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Por Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência


A Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, formada por entidades associativas, ao final nominadas, que se incumbem da promoção dos direitos das pessoas com deficiência[1], manifesta sua preocupação e discordância acerca da proposta da Reforma da Previdência Social, objeto da PEC n° 6/2019, quanto às modificações relacionadas ao BPC, aposentadoria e pensão da pessoa com deficiência.

I - BASE CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS OBJETOS DE REFORMA
1. O ordenamento jurídico brasileiro, desde a Constituição Federal de 1988 e normas esparsas, tem sido orientado pelos objetivos fundamentais – e princípios – previstos na Lei Maior, entre os quais a construção de uma sociedade justa e solidária. Também estão postas na Constituição da República normas que comprometem o Brasil com a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, bem como com a sobrevalorização dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, evidenciada pela atribuição de equivalência desses documentos às emendas constitucionais quando observadas as exigências do art. 5º, § 3º, da CF. Esse comprometimento pode ser depreendido também do reconhecimento de que os direitos e garantias expressos na Constituição (...) não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, § 2º).

  1. Na linha dessa tradição pautada nos direitos humanos, o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e o seu Protocolo Facultativo nos moldes do referido art. 5º, § 3º, da Constituição Federal[2], o que lhes assegurou valor de norma constitucional.

  2. A Convenção afirma, em seu Artigo 28, que os Estados Partes, além de reconhecerem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, à proteção social e à melhoria contínua de suas condições de vida, tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover, sem discriminação, a realização desses direitos, assegurando “(...) b) o acesso de pessoas com deficiência, particularmente mulheres, crianças e idosos com deficiência, a programas de proteção social e de redução da pobreza; c) o acesso de pessoas com deficiência e suas famílias em situação de pobreza à assistência do Estado em relação aos gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado, aconselhamento, ajuda financeira e cuidados de repouso e “ (...) e) igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria“ (Artigo 28, § 2º).

  3. A Convenção, na mesma linha do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Pacto de San Salvador, obriga o Estado brasileiro a tomar medidas que assegurem PROGRESSIVAMENTE o pleno exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais (Artigo 4. 2).

  4. Com a ratificação da mencionada Convenção[3], o Brasil assumiu a obrigação, perante as comunidades nacional e internacional, de dar efetividade às normas nela consignadas, entre as quais a que obriga o Estado brasileiro a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos destinatários desse documento internacional, bem como realizar “consultas estreitas” e envolver ativamente pessoas com deficiência, por meio de suas organizações representativas, em processos de tomada de decisão que afetem essa população (CDPD, Artigo 4.3). Reivindicamos, então, ser ouvidos neste momento de definição de novas regras previdenciárias que impactarão negativamente a vida das pessoas com deficiência, especialmente no que tange à aposentadoria, na esfera pública e privada, à pensão por morte e ao benefício de prestação continuada.

  5. Em sendo assim, cumpre sistematizar as nossas principais e mais graves preocupações quanto às mudanças legislativas propostas em relação a esses benefícios previdenciários e assistencial, as quais agridem frontalmente princípios e normas constitucionais, especialmente aquelas incorporadas por meio da aprovação da CDPD.

II - CONSIDERAÇÕES GERAIS
Antes de tratarmos especificamente dos prejuízos detectados no projeto de Reforma, em relação às pessoas com deficiência, importa assentar as razões que justificam a defesa de um tratamento diferenciado para esse público:

a) Expectativa de vida diferenciada
A expectativa de vida da população, adotada como um dos principais indicadores para se determinar o tempo de contribuição previdenciária para a aposentadoria, é diferenciada em se tratando de pessoas com deficiência.
Relativamente às pessoas com deficiência a expectativa de vida é menor se comparada à população sem impedimentos corporais, em decorrência dos desafios da própria deficiência e das sobrecargas para a realização das atividades diárias.

Dados internacionais mais otimistas indicam que pessoas com síndrome de Down, por exemplo, têm expectativa de vida de 65 anos, o que muito se aproxima da idade exigida na PEC 6/2019 para aposentadoria, até que seja aprovada lei complementar sobre a matéria.

Esse fator, portanto, necessita ser levado em consideração pelo legislador ao tratar de normas previdenciárias, a fim de que seja assegurado às pessoas com deficiência um tratamento isonômico no regramento para a concessão de benefícios assistenciais e previdenciários, sem ônus desproporcional e injustificado.

b) Menor ciclo de vida laboral
Pessoas com deficiência, em muitos casos, acumulam maior desgaste funcional pela realização de atividades diárias de trabalho, que se somam ao agravamento das limitações e das sequelas que advêm com o avanço da idade. Tal situação, que resulta em perda de mobilidade e funcionalidade em idade mais precoce, comparada àquela das pessoas sem deficiência, determina menor ciclo laboral.

O tempo de vida laboral reduzido também é desencadeado pela entrada tardia na escola e pelo alto índice de inadequação idade-série se comparado àquela dos alunos sem deficiência, o que tem efeito direto no ingresso em idade mais avançada no mundo do trabalho, em comparação com a média da população.

Também devem ser consideradas nessa questão as diferentes áreas em que trabalham as pessoas com deficiência, se relacionadas a atividades urbanas ou rurais e em ambientes insalubres e perigosos. Por óbvio que o trabalhador com deficiência na zona rural sofre mais agravos, assim como aqueles que exercem suas atividades em ambientes insalubres.

Ademais, pessoas com deficiência convivem e são afetadas diária e cronicamente pela falta de acessibilidade nos ambientes de trabalho, nos espaços e serviços públicos e privados, nas vias públicas, nas edificações prestadoras de serviços, nos transportes, na moradia, na escola, na saúde, na comunicação e também no lazer, esporte e cultura.

Entre as várias barreiras com que deparam, as pessoas com deficiência ainda enfrentam frequentemente, apesar de ampla e forte legislação protetiva, atitudes discriminatórias e preconceituosas, nos âmbitos da educação, da saúde, do trabalho, dos transportes, no âmbito da comunidade e da própria família.

c) O Custo Adicional da Deficiência
Pessoas com deficiência durante toda a sua vida têm gastos extras com acompanhante ou cuidador, terapias e medicações pelos agravos de saúde, adaptações para acessibilidade e outros bens e serviços necessários, o que é incrementado com o avanço da idade. Assim, a questão do custo adicional da deficiência, seja no curso da vida profissional, seja no momento da aposentadoria ou ainda nos casos em que a pessoa não consegue exercer uma atividade laboral, deve ser considerada na elaboração das regras concernentes aos benefícios assistenciais e previdenciários. Com isso poderia ser minimamente propiciada a cobertura dos gastos inerentes à condição de deficiência e garantido, em alguma medida, patamar econômico digno, mais suscetível de ser alcançado quando o citado custo não é subtraído dos recursos destinados à moradia, alimentação, transporte, vestuário e outros.

Com o objetivo, a propósito, de minimizar esses custos adicionais e viabilizar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, o desenvolvimento das atividades laborais, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência criou o auxílio-inclusão, que a PEC nº 6/2019 fixou em valor equivalente a 10% (dez por cento) do benefício assistencial suspenso, o que esvazia completamente o objetivo desse auxílio, que é o de minimizar tais despesas e propiciar às pessoas com deficiência acesso e permanência no mercado de trabalho.

Se as novas condições propostas são danosas para a população em geral, são inequivocamente ainda mais perversas para as pessoas com deficiência, que se inserem em situação de vulnerabilidade e enfrentam reconhecidas dificuldades para inserção e manutenção no mundo do trabalho e na vida social como um todo.

III – RETROCESSOS IMPOSTOS PELA REFORMA A DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
a) Desconstitucionalização da matéria previdenciária
Hoje a previdência social reveste-se de caráter contributivo e de filiação obrigatória, encontra-se apoiada em um dos fundamentos da República, o da dignidade da pessoa humana, e norteada por um dos seus objetivos fundamentais, o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.

O estabelecimento de normas previdenciárias relativamente aos regimes básicos de previdência, o regime próprio e o regime geral, no texto atual da Constituição, visa a assegurar uma vida digna aos aposentados.

De outro lado, a determinação constante na PEC nº 6/2019, de que lei complementar disporá sobre tais normas, fere comando fundamental previsto no artigo 6º da Constituição da República, consistente no direito social à previdência social, desencadeia insegurança jurídica e desamparo de grupos mais vulneráveis da sociedade, como é caso das pessoas com deficiência.

b) Retrocessos em matéria de direitos humanos
O direito à previdência social tem amparo, como dito, no art. 6o da Constituição Federal e o direito à aposentadoria consta do seu art. 7o, que traz também um rol de outros direitos voltados à melhoria da condição social de trabalhadores urbanos e rurais, inclusive com deficiência, os quais se agregam aos direitos previstos no já mencionado Artigo 28 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

A reforma previdenciária pretende, como é notório, modificar normas que tratam de direitos humanos fundamentais e, mais especificamente, de direitos sociais das pessoas com deficiência.

Quando mudanças legislativas podem ferir direitos fundamentais dessa população – duplamente assegurados em âmbito constitucional, seja por força da própria Constituição da República ou da CDPD –, imperativo considerar o princípio da proibição de retrocesso, o qual veda “(...) aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção conferida aos direitos humanos.” [4]

Nesse sentido, não há que se falar em mudanças legislativas que possam prejudicar ou minimizar a esfera de proteção jurídica já assegurada às pessoas com deficiência.

Conforme se verá, as alterações pretendidas pela PEC nº 06/2019 configuram verdadeiro retrocesso, haja vista o conjunto de direitos já assegurados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e pela Constituição Federal de 1988.

c) Óbice ao acesso a direitos pelas vias administrativas e judiciais
A redação que se pretende dar ao art. 195, § 5º, da Constituição Federal deturpa o conteúdo dessa regra de estruturação do sistema de Seguridade Social, destinada ao legislador, transformando-a, em última análise, em óbice ao acesso, pela via administrativa ou judicial, a direitos reconhecidos no ordenamento, uma vez que condiciona a concessão de benefícios e serviços da Seguridade Social à indicação, pelo administrador ou magistrado, de fonte de custeio. Nesse viés, não se poderá, por exemplo, discutir a flexibilização do critério de renda para obtenção do benefício de prestação continuada (1/4 do salário mínimo) ou o fornecimento de tratamentos médicos ou medicamentos para doenças raras que não constem da lista do SUS, bem como de tecnologias assistivas para pessoas com deficiência.

IV - PREJUÍZOS IMPOSTOS AO BPC, APOSENTADORIA, E PENSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

A) BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA
O benefício de prestação continuada (BPC) não poderia ter sido incluído na proposta da Reforma em tela – que objetiva, em síntese, modificar o sistema de previdência social –, por ser um benefício assistencial, e não previdenciário, o qual se encontra abrangido no âmbito da Assistência Social, que deve ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social (art. 203, CF).

O aludido benefício, incluído no texto constitucional originário a partir de emenda popular, é devido atualmente aos idosos e às pessoas com deficiência que demonstrem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, objetivando, pois, propiciar a essas pessoas carentes recursos mínimos existenciais imprescindíveis à sobrevivência com dignidade.

Embora a PEC nº 6/2019 afirme como público alvo do BPC pessoas com deficiência – e idosas – que demonstrem “condição de miserabilidade”, restringe mais ainda o acesso ao benefício, ao i) impor novo requisito para sua obtenção, o de que o patrimônio familiar (moradia) seja inferior hoje a R$ 98.000,00 (noventa e oito mil reais) e ii) vedar a acumulação com outros benefícios assistenciais e previdenciários, sem ressalvas (hoje é autorizada a acumulação do BPC com benefícios da assistência médica, pensões especiais de natureza indenizatória e, por 2 (dois) anos, com a remuneração advinda de contrato de aprendizagem), bem como ao iii) dispor que “o valor da renda mensal recebida a qualquer título por membro da família do requerente integrará a renda mensal integral per capita familiar” (o que hoje é permitido nas hipóteses previstas no artigo 34 do Estatuto do Idoso e, por extensão, nas hipóteses referidas no RE 580.963-PR).

Considerando que a maioria das pessoas com deficiência vive em condições de extrema pobreza e enfrenta inúmeras barreiras para o exercício de direitos fundamentais e que o Brasil é signatário de diversos pactos internacionais que protegem essa população - e os idosos - e determinam que deve ser assegurado, por todos os meios e de modo progressivo, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no ordenamento, o maior rigor imposto para a percepção do BPC fere o artigo 28 da Convenção e o artigo 3º da CF, que estabelece os objetivos da República, entre os quais, a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades e a promoção do bem de todos.

Por essas razões, devem ser retiradas da PEC as modificações propostas ao artigo 203 da CF.

B) APOSENTADORIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
O tratamento desigual, estabelecido pelo constituinte para promover a isonomia, relativamente à aposentadoria das pessoas com deficiência, encontra-se previsto nos artigos 40, § 4º, e 201, § 1º, que autorizam a adoção de critérios diferenciados em se tratando dessas pessoas.

Na PEC 6/2019 adota-se como proposta de redação ao art. 201, § 7º, da Constituição Federal a expressão "poderá", a qual passa a impressão de que a futura Lei Complementar estará autorizada, mas não compelida a estabelecer critérios diferenciados de idade mínima e tempo de contribuição para a aposentadoria das pessoas com deficiência.

Aposentadoria por idade
A Lei Complementar nº 142/2013, ao dispor sobre a aposentadoria das pessoas com deficiência, estabelece a idade mínima de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, com tempo mínimo de contribuição de 15 anos.

O texto da PEC nº 6/2019, que prevalecerá até que seja editada lei complementar, deixa de prever essa possibilidade, estabelecida na Lei Complementar nº 142/2013, que hoje representa o único caminho viável para a aposentadoria de muitas pessoas com deficiência, pelas já mencionadas dificuldades de acesso ao mundo do trabalho e manutenção do vínculo laboral.

Aposentadoria por tempo de contribuição
A Lei Complementar nº 142/2013, que se aplica a trabalhadores e servidores com deficiência, exige, nessa modalidade de aposentadoria, o tempo de contribuição de 33/28 anos, 29/24 anos e 25/20 anos para a deficiência leve, moderada e grave de homens e mulheres, respectivamente.

A PEC nº 6/2019 propõe alteração desses tempos para 35, 25 e 20 anos para ambos, o que implica para mulheres e homens com deficiência leve um acréscimo de 7 anos e 2 anos, respectivamente, e para mulheres com deficiência moderada aumento de 1 ano no tempo de contribuição. O tempo mínimo de 35 anos de contribuição, exigido para a aposentadoria de mulheres com deficiência leve, chega a carecer de razoabilidade, porque superior ao tempo exigido para trabalhadoras urbanas e servidoras sem deficiência, que podem se aposentar com 30 anos de tempo de contribuição. Dos homens com deficiência leve, por sua vez, são demandados os mesmos 35 anos de contribuição exigidos, na regra de transição, dos trabalhadores urbanos e servidores públicos sem deficiência.

Além disso, homens e mulheres com deficiência serão submetidos ao mesmo tempo de contribuição, deixando de existir a atual distinção de gênero. A igualação nesse ponto é flagrantemente injusta em se tratando de mulheres com diversidade funcional, porque essas, além de estarem sujeitas a todos os fatores que determinam um menor tempo laboral para as pessoas com deficiência em geral, submetem-se a mais um fator de redução: a necessidade de interrupção das suas atividades profissionais em razão da maternidade e dos cuidados com seus filhos na primeira infância, além dos cuidados com a própria saúde, estendendo-se essa interrupção não raras vezes por bastante tempo, quando inconciliável a maternidade com o acompanhamento do desenvolvimento da criança/adolescente. Tal situação justifica a adoção de previsão legal diferenciada de aposentadoria para mulheres e homens.

Aposentadoria por invalidez/incapacidade permanente
Nessa modalidade de aposentadoria, a renda mensal, que correspondia a 100% do salário de benefício, respeitado o teto, passará a ser de 60% da média aritmética simples dos salários de contribuição e das remunerações, com acréscimo de 2% para o que exceder a 20 anos de contribuição. Em caso de acidente de trabalho, de doenças profissionais e de doenças do trabalho, os proventos corresponderão a cem por cento da média.

Mudança na forma de cálculo
A aposentadoria terá seu valor reduzido, visto que passará a ter como base de cálculo, até a edição de lei complementar, a média aritmética simples de todos os salários de contribuição e das remunerações, “correspondentes a cem por cento de todo o período contributivo (...)” .

Mais um óbice ao cumprimento do tempo de contribuição
A proposta de inclusão dos §§ 14 e 15 no artigo 195 da CR – de consideração de tempo para fins de aposentadoria, no RGPS, apenas para os segurados “cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria” – agregará mais um óbice ao cumprimento do tempo de contribuição para a aposentadoria das pessoas com deficiência e impactará negativamente sobre mais da metade dos empregados/as com deficiência, que recebem salários inferiores ao mínimo. Várias pessoas com deficiência, entre as quais aquelas com deficiência intelectual e mental, têm dificuldades para desenvolver uma jornada superior a 4 ou 6 horas, sendo comum o recebimento de salário inferior ao mínimo. Tal cenário inviabilizará a aquisição do direito por parte dessas pessoas.

Tratamento desigual para garantia de isonomia
Para pessoas com deficiência, a fixação de um tempo menor de contribuição e a concessão de proventos não inferiores aos recebidos na ativa são imprescindíveis à garantia de um padrão de vida suficiente a suportar o processo de envelhecimento, mais dispendioso, e os agravos próprios dessa fase da vida e necessários, em última análise, à garantia de dignidade.

Considerando, assim, as especificidades das pessoas com deficiência – como sua maior vulnerabilidade/fragilidade, menor expectativa de vida, maior desgaste funcional e menor tempo de vida laboral –, bem como a proteção conferida pela CDPD e Constituição Federal e o dever do Estado de assegurar a tais pessoas igualdade de oportunidades, impõe-se afastar o retrocesso em relação aos direitos fundamentais dessa população no tocante a esse benefício.

C) PENSÃO POR MORTE
A PEC n º 06/2019 incorre em grave injustiça ao estabelecer regras gerais – em ambos os regimes básicos de previdência (RPPS e RGPS) – , sem ressalvas em relação às pessoas com deficiência, que necessitam, quanto a esse benefício, de disciplina específica para o atendimento de suas necessidades, entre as quais, gastos com acompanhante ou cuidador, terapias e medicações pelos agravos de saúde, adaptações para acessibilidade e outros bens e serviços necessários.

Redução do valor da pensão por morte
Atualmente, o beneficiário recebe a título de pensão 100% do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou dos proventos a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez/incapacidade na data do óbito (no RGPS) – ou do valor da totalidade dos proventos ou remuneração do servidor falecido[5] (no RPPS).

Com a PEC nº 06/2019, a pensão será reduzida a uma cota familiar de 50% dos citados valores, acrescidos de 10% por dependente[6] até o máximo de 100%. A pensão, então, de um único dependente com deficiência será, conforme as novas regras, de apenas 60% da aposentadoria ou da remuneração, o que inviabilizará sonhos e obstará projetos de vida.

Além do prejuízo desencadeado pela redução do percentual da pensão em si, o texto da reforma acarretará outro prejuízo às pensões decorrentes de aposentadoria. Isso porque esse benefício, que dará origem no futuro à pensão, será calculado com base em novo e mais prejudicial critério.

Irreversibilidade das cotas de outros dependentes
Relativamente à vedação de reversão das cotas dos dependentes que perderam essa condição, o prejuízo é facilmente verificável, porque a soma da cota familiar com a dos dependentes seguirá, com o falecimento consecutivo dos outros membros da família, curso de declínio inversamente proporcional à elevação dos agravos próprios da deficiência.

Retirada do salário mínimo como parâmetro para a concessão de pensão
Outra modificação igualmente prejudicial consiste na retirada, do artigo 201, V, da CF, da imposição de que a pensão, no RGPS, observe o disposto no § 2º, que determina que nenhum benefício previdenciário “terá valor mensal inferior ao salário mínimo”.

Enquadramento como dependente
Também é perversa a previsão do artigo 28, § 3º, no sentido de que “As condições necessárias para enquadramento dos dependentes serão determinadas na data do óbito do segurado, inclusive em relação ao filho inválido ou com deficiência considerada grave”, pelo sofrimento emocional que o receio do desamparo impõe à família.

O inconformismo em relação a esse artigo, conquanto consagre jurisprudência do STF sobre o tema, gera, nas famílias das pessoas com deficiência intelectual, mental ou grave, profundo sentimento de insegurança em relação ao amanhã, porque transfere para o futuro a certeza de que seus filhos/irmãos, após o óbito, obterão o reconhecimento da dependência e, consequentemente, de dignidade e qualidade de vida.

A dependência desvinculada do critério etário para as pessoas com deficiência intelectual, mental ou grave
No que tange às pessoas com deficiência intelectual, mental ou grave, tais regras precisam ser revistas com maior razão, porque, na maioria dos casos, a dependência não constitui uma condição superável pela idade, tal como ocorre com a criança/adolescente que alcança a maior idade para fins previdenciários, estendendo-se, muitas vezes, para a vida.

A persistência da dependência em vários desses casos decorre da vulnerabilidade que lhes é imposta, em termos de saúde, e ao fato de que, em face dos óbices quanto ao ingresso e permanência no mercado de trabalho e da precariedade das relações de trabalho que conseguem estabelecer, muito dificilmente auferirão remuneração que lhes garanta autossustento e mais dificilmente ainda preencherão os requisitos para o recebimento de aposentadoria.

O óbito da pessoa que cuida dos /apoia os mencionados dependentes afeta frequentemente não apenas a vida psicológica e afetiva desses, mas também sua vida financeira, levando-os, não raras vezes, a ter gastos com acompanhante ou cuidador que supra a ausência do familiar que desempenhava esse papel sem contrapartida financeira. Tais gastos, além daqueles decorrentes de outros apoios, terapias, adaptações para acessibilidade e outros bens e serviços necessários à sua sobrevivência e dignidade, são agravados com o avanço da idade.

Nesse cenário, assumem um caráter significativamente pernicioso as alterações propostas também quanto a esse benefício.

A desconsideração dos aspectos mencionados determinará o abandono de tais dependentes à própria sorte, que poderá ser traduzido pela ausência de condição de contratação de um cuidador, pela imposição de um ônus excessivo à família acolhedora ou, ainda, pelo ingresso em instituições incapazes de responder às necessidades das pessoas com deficiência.

Em face do custo adicional da deficiência e da necessidade de manutenção de um padrão de vida minimamente digno, bem como de todas as razões explicitadas, é imprescindível:
1) retirar da Reforma a proposta de alteração do artigo 195, § 5º, da CR;
2) suprimir os §§ 14 e 15 do artigo 195 da CR, incluídos pela PEC;
3) excluir da PEC todas as modificações propostas em relação ao benefício de prestação continuada, ante sua natureza de benefício assistencial;
4) substituir o termo “poderá”, constante do artigo 201, § 7º, da CF, por “estabelecerá”.
5) excluir da proposta de redação para o artigo 203, § 2º, da CR a parte final, para que desse conste: “O pagamento do benefício de prestação continuada à pessoa com deficiência previsto no inciso V do caput ficará suspenso quando sobrevier o exercício de atividade remunerada, hipótese em que será admitido o pagamento de auxílio-inclusão”.
6) incluir na PEC a possibilidade prevista atualmente na Lei Complementar nº 142/2013, de aposentadoria das pessoas com deficiência com idade mínima de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, com tempo mínimo de contribuição de 15 anos;
7) estabelecer, na aposentadoria para pessoas com deficiência leve, moderada e grave, tempo de contribuição distinto para homens e mulheres – considerados os múltiplos desafios enfrentados por essas –, sem prejudicar o que foi proposto para os homens com deficiência;
8) afastar a distinção do valor dos proventos estabelecida na aposentadoria por incapacidade permanente, assegurando às pessoas que se aposentarem nessa modalidade o recebimento de renda mensal no importe de 100% do salário de benefício, respeitado o teto, independentemente de ter sido a incapacidade desencadeada por acidente de trabalho, de doenças profissionais e de doenças do trabalho;
9) assegurar, em ambos os regimes básicos, a correspondência entre os valores dos proventos – ou da potencial aposentadoria – e da pensão;
10) ressalvar da regra de irreversibilidade das cotas as situações em que um dos dependentes for pessoa com deficiência, garantindo o direito à reversibilidade em prol dessa pessoa;
11) retirar da PEC a alteração do artigo 201, V, da CF, a fim de manter a imprescindibilidade de observância do salário mínimo na concessão da pensão e
12) autorizar o reconhecimento, ainda em vida, da condição de beneficiários da pensão por morte, relativamente aos filhos “inválidos”, com deficiência mental, intelectual ou deficiência considerada grave.

A Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência espera que as suas preocupações e discordâncias relativamente à PEC nº 06/2019, apontadas neste documento, sejam levadas em consideração pelos/as Senhores/as Parlamentares por ocasião da edificação de justas e isonômicas normas previdenciárias.

• Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD
• APAE de São Paulo
• Associação Nacional de Membros do Ministério Público em Defesa da Pessoa com Deficiência e Idosa – AMPID
• Escola de Gente - Comunicação em Inclusão
• Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente – Rede MVI
• Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade – APABB
• Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas
• Amigos Múltiplos pela Esclerose Múltipla
• Coletivo Feminista Helen Keller

APOIO:
• Coletiva de Mulheres com Deficiência do DF
• Fórum de Inclusão das Pessoas com Deficiência no Distrito Federal


[1] Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
[2] A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo foram aprovados por meio do Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, e promulgados pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. De forma unânime, ativistas dos direitos das pessoas com deficiência de todo o mundo e defensores de Direitos Humanos acreditam que a aprovação, em 2006, deste tratado internacional, significa,em pleno Século XXI, o maior passo histórico, em escala mundial, das nações que integram a ONU para reconhecer e afirmar os direitos das pessoas com deficiência, assumindo compromissos para proteger e promover os direitos sociais, civis, políticos, econômicos, culturais e coibir práticas ou medidas discriminatórias de qualquer natureza que afetam as mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência de todo o planeta.
[3] Vale lembrar, por oportuno, que os tratados internacionais não se sujeitam à reforma com base apenas na disposição do país signatário e que a dita Convenção constitui a gênese da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, a qual contou, na sua elaboração, de ampla participação social, o que demonstra a vontade da população no tocante aos direitos previstos na CDPD, repetidos e detalhados na LBI.
[4] RAMOS, André Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89.
[5] Até o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, acrescido de setenta por cento da parcela excedente a esse limite.
[6] Exceto em caso de morte decorrente de acidente do trabalho, doença profissional ou do trabalho, em que o valor da pensão será de 100% .





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