Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 16 - Abril 2020

Boletim CNS/Cofin 2020/04/22/1e2A-B

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke




Diretrizes Orçamentárias da União para 2021: Combinação de Austeridade Fiscal com Desrespeito à Legislação do SUS

Por Francisco R. Funcia


INTRODUÇÃO
A pandemia do novo coronavirus (ou Covid-19) está afetando a vida da população brasileira (e mundial) neste ano de 2020, cujas consequências impactarão a vida da sociedade e a economia nos próximos anos.
O objetivo deste artigo é avaliar a aderência do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) da União para 2021 às necessidades de saúde da população, sociais e econômicas do país para o período imediatamente após a pandemia do coronavirus (ou crise do Covid-19).

Para tanto, o texto está subdividido em duas seções, além desta introdução e das considerações finais: a primeira trata do marco normativo do PLDO 2021 da União e a segunda avalia o PLDO 2021 da União à luz das necessidades do pós-crise do Covid-19 e do descumprimento da Lei Complementar 141/2012.

I – O MARCO NORMATIVO DA PLDO 2021
O PLDO 2021 da União foi encaminhado ao Congresso Nacional em meados de abril sob o cenário da pandemia do novo coronavirus. Os atributos e o conteúdo do PLDO estão definidos na Constituição Federal de 1988 e na Lei Complementar nº 101/2000 (conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal), portanto, muito antes das consequências negativas dessa pandemia para a saúde da população e para as condições de vida da sociedade.

Inicialmente, conforme Vignoli e Funcia (1), trata-se de um importante instrumento do setor público brasileiro, de iniciativa do Poder Executivo, que define resumidamente para o governo federal:
1. As metas e prioridades para 2021, inclusive das despesas de capital e das decorrentes despesas de custeio em conformidade com a programação apresentada no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023.
2. As alterações a serem estabelecidas na legislação tributária com impactos sobre a receita da União e as diretrizes para a aplicação de recursos pelas agências governamentais de fomento.
3. As diretrizes para a elaboração do Orçamento Geral da União, abrangendo os critérios para a programação da execução orçamentária e a limitação de empenhos e pagamentos, bem como:
3.1. As despesas com novos projetos e/ou obras somente se estiver comprovada a garantia de recursos para as obras em andamento;
3.2. A receita da venda de bens e direitos que integram o patrimônio púbico somente para financiar despesas de capital (com um demonstrativo de fontes e usos desses recursos);
3.3. Os índices de reajuste de pessoal e as despesas decorrentes de plano de cargo, carreiras e vencimentos em obediência aos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal;
3.4. Os critérios para apresentação de emendas parlamentares;
3.5. Os critérios para a celebração de convênios e outros ajustes, inclusive com outros entes da Federação;
3.6. A margem para o aumento de despesa decorrente da expansão ou aperfeiçoamento de ações governamentais, especialmente das despesas obrigatórias de caráter continuado; e
3.7. A elaboração do anexo de metas fiscais e do anexo de riscos fiscais que possam comprometer o cumprimento dessas metas, incluindo a parcela de recursos que ficará sob a forma de reserva de contingência, que servirão de referências para a fiscalização dos órgãos de controle externo e interno e para a apresentação nas audiências públicas de prestação de contas.

Esses atributos e conceitos foram complementados pela Lei Complementar 141/2012, no que se refere ao Orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS): estabelece tanto para o governo federal (na elaboração do PLDO), como para o Congresso Nacional (na análise do PLDO para aprovação), a necessidade de observar a competência legal do Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação SUS junto à esfera federal de governo, para aprovar o capítulo saúde do PLDO 2021, considerando os seguintes aspectos:
a) em obediência à Lei 8080/90 e à Lei 8142/90, deve estar em consonância com as diretrizes aprovadas pela 16ª (8ª+8) Conferência Nacional de Saúde realizada em agosto de 2019, que deveriam estar contempladas no Plano Nacional de Saúde 2020-2023; e
b) em obediência à Lei Complementar 141/2012, deve respeitar as diretrizes para o estabelecimento de prioridades para 2021 aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde por meio da Resolução nº 640, de 14 de fevereiro de 2020.

É oportuno destacar que tanto a Conferência Nacional de Saúde, como a citada Resolução do CNS foram eventos cronologicamente anteriores ao conhecimento da pandemia no Brasil.

II – PLDO 2021 DA UNIÃO: INCOMPATIBILIDADE COM AS NECESSIDADES PÓS-CRISE DO COVID-19 E DESCUMPRIMENTO DA LEI COMPLEMENTAR 141/2012
O PLDO 2021 contempla as regras do regime fiscal estabelecido pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 (que estabeleceu tanto o congelamento do piso federal da saúde e da educação nos níveis do valor dos respectivos pisos em 2017 atualizados anualmente apenas pela variação do IPCA/IBGE, como o teto de despesas primárias da União no valor dos pagamento de 2016 atualizados tão somente pela variação anual do IPCA/IBGE).

Mas, o PLDO 2021 também aponta várias vezes para as incertezas decorrentes do Covid-19, inclusive para a construção dos cenários fiscais para 2021, 2022 e 2023, assumindo que a regra do teto de despesas primárias da EC 95/2016 será retomada em 2021. Considera como “risco fiscal” o aumento do “nível de endividamento brasileiro de maneira significativa além do que se previa no início do ano corrente”, por causa da pandemia do coronavirus: “tendo em vista a disciplina fiscal assentada pelo Teto de Gastos, instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, estruturalmente, as despesas primárias do Governo Central estão com crescimento limitado à inflação.
Desta forma, para as despesas sujeitas ao Teto de Gasto, aumentos reais em despesas específicas são compensados por reduções equivalentes em outros gastos, sem alteração da Despesa Total. Entretanto, deve-se ressaltar que as despesas primárias podem ser afetadas caso a crise se estenda até 2021 e novos gastos autorizados por créditos extraordinários se façam necessários”.

Trata-se de postura incompatível com as necessidades de saúde da população e da situação social e econômica do país após o término da crise da pandemia do novo coronavirus: gastos governamentais para estimular os investimentos privados, para garantia de renda à população, para realização de consultas de rotinas, cirurgias eletivas e exames laboratoriais e de imagens que ficaram represadas e foram postergadas em 2020, para manutenção, substituição e ampliação das instalações e equipamentos de saúde, para investimentos em pesquisa, desenvolvimento e produção de insumos, vacinas, medicamentos e equipamentos de proteção individual para os trabalhadores de saúde, inclusive para atender a oferta de máscaras para uso de toda a população, entre outros.

O que fazer, então, diante dessa incompatibilidade?
a)Cumprir os artigos 196 e 197 da Constituição Federal: a saúde é direito de todos e dever do Estado e as ações e serviços de saúde são considerados de relevância pública. Como fazer? A regra do piso estabelece o valor mínimo das despesas com ações e serviços públicos de saúde, e não o valor máximo; e o teto de despesas primárias da União, apesar de não estabelecer valores para cada Ministério, é um fator limitador para o conjunto das despesas da União; uma possibilidade de solução está apresentada a seguir;
b)Avaliar a proposta de Graziane (2): alterar “o prazo de vigência da calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, para superar o limitado lapso de 31/12/2020 e para que tenhamos um marco finalisticamente adstrito ao tempo necessário ao enfrentamento da imensa crise sanitária, social e econômica em que vivemos”. Nessa perspectiva, a prorrogação até o final de 2021 da vigência do Decreto Legislativo de calamidade pública seria fundamentada no argumento de que há um conjunto de despesas extraordinárias a serem realizadas para o enfrentamento do período pós-pandemia, o que corresponde à realidade.

Por fim, especificamente para atender as necessidades de saúde da população, é preciso cumprir a Lei Complementar nº 141/2012, que fixou competência para o Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do SUS, aprovar as diretrizes para o estabelecimento de prioridades para a elaboração do capítulo saúde do PLDO 2021 da União e da Programação Anual de Saúde (PAS) 2021 pelo Ministério da Saúde. Apesar de terem sido aprovadas pela Resolução nº 640, de 14 de fevereiro de 2020 (3), portanto, antes da crise do Covid-19, essas diretrizes atendem perfeitamente às necessidades de saúde da população para o período após à pandemia; porém, em grande maioria, não estão contempladas no PLDO 2021 da União.

Para os objetivos deste artigo e dada a limitação de espaço, foram consideradas somente as diretrizes referentes ao art. 1º dessa Resolução (em negrito), seguidas dos respectivos comentários sobre a aderência entre essas diretrizes e o PLDO 2021 da União:
"I – A programação orçamentária e financeira do Ministério da Saúde deve alocar recursos compatíveis com a mudança do modelo de atenção à saúde para organizar uma rede de cuidados de saúde da população ancorada numa atenção primária forte e resolutiva, de modo a cumprir os princípios e diretrizes constitucionais da universalidade, gratuidade, integralidade, equidade, descentralização e participação da comunidade no Sistema Único de Saúde”.

Comentário I: considerando que a Portaria 2979/2019 não foi revogada, nem suspensa, o novo modelo de financiamento da atenção básica em saúde desrespeita esse dispositivo. Mas, há uma curiosidade: apesar de um dispositivo dessa Portaria extinguir o Piso de Atenção Básica em Saúde (PAB) em 2020, um dos dispositivos do Anexo III do PLDO, que trata das “despesas que não serão objeto de limitação de empenho”, inclui o PAB no rol das “despesas primárias que constituem obrigações constitucionais ou legais da União”; outra despesa relacionada à atenção básica que faz parte desse rol é a “Assistência Financeira Complementar e Incentivo Financeiro aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios - Agentes Comunitários de Saúde/ACS”. Disso resulta que esse Inciso I do art. 1º da Resolução 640 do CNS não foi contemplado no PLDO 2021 da União.

“II - Investimento de todo o orçamento da saúde em prol da consolidação do SUS universal e de qualidade mediante o financiamento suficiente para esse fim, incluindo os valores das transferências fundo a fundo da União para os Estados, Distrito Federal e Municípios conforme critérios, modalidades e categorias pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e deliberadas pelo Conselho Nacional de Saúde nos termos do artigo 17 da Lei Complementar nº 141/2012, para promover a:”.

Comentário II: não há nenhuma prioridade referente ao financiamento suficiente para a consolidação do SUS universal e de qualidade no PLDO 2021 da União, nem em relação aos recursos a serem transferidos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde pactuados na CIT (instância legal que congrega os gestores das três esferas de governo).

“a) otimização da aplicação dos recursos públicos já destinados, especialmente, pela disponibilização integral e tempestiva de recursos e a ausência de contingenciamento orçamentário e financeiro de dotações do Ministério da Saúde na Lei Orçamentária de 2021, bem como da ausência de limite de pagamento para os restos a pagar inscritos e reinscritos para execução financeira em 2021”.

Comentário II.a: no PLDO 2021 da União, o cumprimento do teto de despesas primárias estabelecido pela EC 95/2016 engloba também os restos a pagar, sem excluir as despesas referentes às ações e serviços de saúde; somente algumas despesas do Ministério da Saúde foram excluídas para fins de limitação de empenhos em 2021, a saber: “Atenção à Saúde da População para Procedimentos em Média e Alta Complexidade; (...) Piso de Atenção Básica em Saúde; (...) Atendimento à População com Medicamentos para Tratamento dos Portadores de HIV/AIDS e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis; (...) Promoção da Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos na Atenção Básica em Saúde; (...) Incentivo Financeiro aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para Execução de Ações de Vigilância Sanitária; (...) Incentivo Financeiro aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios Certificados para a Vigilância em Saúde; (...) Incentivo Financeiro a Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para Ações de Prevenção e Qualificação da Atenção em HIV/AIDS e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais; (...) Auxílio-Reabilitação Psicossocial aos Egressos de Longas Internações Psiquiátricas no Sistema Único de Saúde - Programa ‘De Volta Para Casa’; (...) Apoio para Aquisição e Distribuição de Medicamentos (Componentes Estratégico e Especializado, inclusive hemoderivados) da Assistência Farmacêutica; (...) Imunobiológicos para Prevenção e Controle de Doenças; (...) Assistência Financeira Complementar e Incentivo Financeiro aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios - Agentes Comunitários de Saúde/ACS; (...) Assistência Financeira Complementar e Incentivo Financeiro aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios - Agentes de Combate a Endemias/ACE”.

“b) alocação de recursos suficientes para uma mudança de modelo de atenção à saúde, que fortaleça a atenção básica como responsável sanitária para uma população territorialmente referenciada, fazendo com que seja a principal porta de entrada ao SUS e a ordenadora dos cuidados de saúde nas redes de atenção sob gestão pública federal, estadual e municipal”.

Comentário II.b: ver Comentário I.

“c) priorização da alocação de recursos orçamentários e financeiros públicos de saúde para o fortalecimento e ampliação das unidades próprias de prestação de serviço no âmbito do SUS e para a ampliação das equipes de saúde da família, de modo a valorizar as trabalhadoras e os trabalhadores do SUS”.

Comentário II.c: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União.

“d) criação de dotação orçamentária específica para a aplicação, adicional ao mínimo exigido para ações e serviços públicos de saúde em 2021, tanto dos valores totais de Restos a Pagar cancelados em 2020 e dos ainda pendentes de compensação cancelados desde 2012, como das despesas financiadas com recursos do pré-sal”.

Comentário II.d: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União.

“e) garantia da fixação dos profissionais de saúde, principalmente na Região Norte do Brasil, nas áreas periféricas das regiões metropolitanas, nas áreas rurais e de difícil acesso do território nacional, mediante alocação suficiente de recursos orçamentários e financeiros em processo continuado de melhoria de qualidade, com estímulo e valorização da força de trabalho do SUS e formulação e implantação do Plano Nacional de Cargos, Carreiras e Salários do SUS”.

Comentário II.e: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União.

“f) aprimoramento dos critérios de rateio de recursos para transferência do Fundo Nacional de Saúde para Estados, Distrito Federal e Municípios, com destaque para evitar a regressão de recursos decorrente da adoção de critérios que privilegiam o financiamento da atenção à saúde pelo número de usuários cadastrados nos municípios, de modo a cumprir o caput do artigo 17 da Lei Complementar nº 141/2012, que estabelece a competência do Conselho Nacional de Saúde para analisar e deliberar sobre os critérios de rateio pactuados na CIT, bem como a alocação de recursos adicionais ao piso federal da saúde para a implementação das transferências fundo a fundo segundo novos critérios deliberados pelo CNS, para evitar que essa mudança implique em redução de valores transferidos para alguns Entes como forma de compensação do aumento que outros venham a ter”.

Comentário II.f: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União. Ver Comentário I.

“III - ampliação da pactuação do saneamento básico e saúde ambiental, incluindo tratamento adequado dos resíduos sólidos, dando a devida prioridade político-orçamentária, para a promoção da saúde e redução dos agravos e das desigualdades sociais”.

Comentário III: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União.

“IV - contribuição para erradicar a extrema pobreza e a fome no País”.

Comentário IV: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União.

“V – garantia de recursos orçamentários e financeiros para além do piso fixado pela Emenda Constitucional 95/2016 de modo a impedir que em 2021, em termos de valores reais (atualizados pelo IPCA/IBGE) total ou per capita ou como proporção da receita corrente líquida da União, a aplicação em ações e serviços públicos de saúde seja menor que as aplicações verificadas desde 2014, adotando a que for maior, bem como para o cumprimento de outras diretrizes estabelecidas nesta Resolução”.

Comentário V: não está mencionada como prioridade no PLDO 2021 da União. Essa diretriz evidencia o compromisso do CNS com o financiamento adequado e suficiente do SUS, de modo a combater o subfinanciamento e, principalmente, o desfinanciamento recente gerado pelas regras da EC 95/2016. Seguem as referências para apurar o cumprimento dessa diretriz do CNS:
a) R$ 124,879 bilhões: Valor do piso federal ASPS estimado para 2021 – foi projetada pelo autor a variação de 3,0% do IPCA de julho/2019 a junho/2020 para calcular esse piso segundo a regra da EC 95);
b) R$ 138,411 bilhões: Valor total da dotação autorizada para as despesas ASPS em 22 de abril de 2020 (disponível em Senado Federal/Siga Brasil);
c) Se as despesas ASPS empenhadas forem de R$ 138,411 bilhões em 2020, a atualização desse valor pela variação anual do IPCA/IBGE resultaria no valor da aplicação ASPS em 2021 para atender tanto essa diretriz estabelecida pelo CNS tanto na Resolução 640, de 14 de fevereiro de 2020, como também na Recomendação 028, de 22 de abril de 2020.
d) Isso porque esse valor representaria o maior valor de aplicação ASPS em termos reais a partir de 2014, inclusive em termos per capita (R$ 653,64) e como proporção da Receita Corrente Líquida (15,93%), como estabelece a Resolução 640/2020 do CNS.
e) Observação: essa é uma hipótese de cálculo que adota os créditos extraordinários abertos até 22 de abril de 2020 que aumentaram o valor do orçamento do Ministério da Saúde – se novos créditos forem abertos durante 2020, o valor para aplicação ASPS em 2021 será maior que esse calculado anteriormente.

Se não houver a garantia desse valor para aplicação ASPS em 2021 e considerando a diretriz proposta pela área econômica no PLDO 2021 de retomar o teto das despesas primárias estabelecido pela EC 95 como “âncora fiscal” em 2021, o SUS perderá cerca de R$ 14,0 bilhões em comparação a 2020 (4).

Essa perda seria muito grave para o atendimento das necessidades de saúde da população em 2021 decorrentes das consequências geradas pelo estado de calamidade pública causado pelo Covid-19 em 2020; seria grave também para o financiamento da reposição de estoques de materiais e medicamentos, das reformas e substituição das instalações e equipamentos das unidades do SUS em todos os municípios brasileiros e das pesquisas para a produção de vacinas e medicamentos para o combate dessa pandemia.

Retomar em 2021 a situação vigente em 2019, como quer o governo federal, significa retomar e aprofundar o processo de desfinanciamento do SUS causado pelas regras da EC 95: “desde 2018, as perdas estimadas do SUS são de R$ 22,5 bilhões e os restos a pagar (despesas empenhadas, mas não pagas) cresceram 51% em 2017, mantendo-se desde então em patamar em torno de R$ 20 bilhões” (5).

Essa retomada significa também a volta da política de austeridade fiscal em curso no Brasil desde 2015 e aprofundada depois, principalmente, pela iniciativa e vigência da EC 95/2016, nos governos Temer (com Henrique Meirelles) e Bolsonaro (com Paulo Guedes), responsáveis pela recessão e/ou baixo nível de crescimento econômico, que têm impactado negativamente a receita pública e, consequentemente, mantido o déficit público que prometeram eliminar com essa política econômica – na verdade, o modelo econômico brasileiro tem eliminado empregos e vidas. Conforme Mendes e Carnut (6), o atual quadro de crise sanitária deve ser compreendido no contexto da crise do capitalismo contemporâneo e, no caso brasileiro, “(...) fica evidente a preocupação do governo Bolsonaro diante da crise da pandemia: priorizar o lucro e não vidas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto tratou da aderência do PLDO 2021 da União às necessidades de saúde da população, sociais e econômicas do país para o período imediatamente após a pandemia do coronavirus.

Está evidente no PLDO 2021 que a política econômica centrada na austeridade fiscal será retomada no próximo ano pelo governo federal, num contexto totalmente adverso decorrente das necessidades da realização de gastos públicos para a retomada do processo de geração de emprego e renda, bem como para dar conta da demanda represada e postergada de ações e serviços públicos de saúde em 2020.

Se a EC 95/2016 não for revogada antes de 2021, uma das possibilidades para equacionar essa incompatibilidade pode ser a prorrogação do Decreto Legislativo da calamidade pública, que se encerra em 31 de dezembro de 2020, diante das evidências de que os motivos que fundamentaram esse decreto estarão presentes em 2021, ainda que sob novo contexto.

Além disso, é fundamental que o PLDO 2021 não seja aprovado pelo Congresso Nacional tal qual foi apresentado pelo Poder Executivo, pois tanto o capítulo saúde desrespeita quase que integralmente as diretrizes para o estabelecimento de prioridades aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei Complementar nº 141/2012, como as diretrizes da política fiscal que condicionam as prioridades para 2021 estão baseadas na austeridade fiscal e no teto das despesas primárias disciplinado pela EC 95/2016.

Portanto, está nas mãos do Congresso Nacional a possibilidade concreta de garantir em 2021 a retomada do processo de geração de emprego e renda e de ampliação das condições de saúde da população, no contexto do esforço de reconstrução nacional decorrente da pandemia do coronavirus vivenciada em 2020.


REFERÊNCIAS
(1) VIGNOLI, Francisco; FUNCIA, Francisco R. Planejamento e Orçamento Público. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
(2) GRAZIANE, Élida. Algumas agendas necessárias ao enfrentamento da calamidade nacional. Contas à vista, Consultor Jurídico (Conjur), 21 de abril de 2020, 10h12. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/contas-vista-algumas-agendas-necessarias-enfrentamento-calamidade-nacional (Acesso em 21/04/2020).
(3) Disponível em http://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/1031-resolucao-n-640-de-14-de-fevereiro-de-2020 (Acesso em 21/04/2020).
(4) Essa cifra também foi apurada por: SOTTER, Ana P.; MORETTI, Bruno; VENTURA, Otávio. Em plena pandemia, proposta de orçamento do governo para 2021 pode tirar R$14 bi de um SUS já espremido. Viomundo, 15/04/2020. Disponível em https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/soter-moretti-e-ventura-em-plena-pandemia-governo-bolsonaro-quer-tirar-r-14-bi-do-orcamento-do-sus-para-2021.html (Acesso em 23/04/2020).
(5) Essas cifras foram apuradas por: FUNCIA, Francisco; BENEVIDES, Rodrigo; MORETTI, Bruno; ARAGÃO, Erika; OCKÉ, Carlos. Por que o Congresso Nacional não pode permitir a redução dos recursos do SUS para 2021. Jornal GGN, 17/04/2020. Disponível em https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/por-que-o-congresso-nacional-nao-pode-permitir-a-reducao-dos-recursos-do-sus-para-2021/ (Acesso em 23/04/2020)
(6) MENDES, Aquilas; CARNUT, Leonardo. Lucro ou vidas? Coronavírus e o voto de Minerva. Revista Fórum, 09/04/2020. Disponível em https://revistaforum.com.br/debates/lucro-ou-vidas-coronavirus-e-o-voto-de-minerva-por-aquila-mendes-e-leonardo-carnut/ (Acesso em 23/04/2020)


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.



SUS: Coordenação colegiada dos leitos privados durante a pandemia COVID-19

Por Lenir Santos


Muito se tem falado sobre a requisição de bens e serviços privados para atendimento de necessidades urgentes e coletivas em saúde pública em razão da pandemia do Covid-19. A ADI 6.362, ainda não julgada, visa levar para a coordenação do Ministério da Saúde as requisições que venham a ser feitas pelos entes federativos, que significa inibir ou anular a ação dos demais entes federativos por impossibilidade operativa do MS.

Há previsão constitucional e legal para que as requisições ocorram (art. 5º, XXV, da Constituição e art. 15, XIII, da Lei n. 8.080, de 1990) e muitas já aconteceram em situações excepcionais, desde antes de 1990, no estado de São Paulo[1], com fundamento em legislação própria e depois pela vigente legislação sanitária.

Não percamos de vista que o próprio art. 197 da Constituição permite ampla ação sanitária que poderia abarcar até mesmo requisições pelo fato de as ações e serviços de saúde, públicos ou privados, estarem inteiramente sob sujeição do Poder Público dada a sua natureza pública que decorre do significado intrínseco da norma constitucional ao reconhece serem as ações e serviços de saúde de relevância pública, o que garante amplo poder de intervenção estatal e reivindicação social quando motivos justificarem. A redação é clara ao dizer que todas as ações e serviços de saúde, portanto os públicos e os privados, estão sujeitos à regulação, fiscalização e controle público.

Da combinação desses dispositivos, o poder de intervenção estatal na propriedade privada para requisitar bens e serviços de pessoas físicas e jurídicas, mediante justa indenização, sempre que houver perigo sanitário iminente por calamidades, epidemias, pandemias é cristalina. Não são regras em confronto com a propriedade privada, a liberdade da iniciativa privada, mas sim de valoração do direito à vida e sua inviolabilidade.

A competência para legislar sobre saúde é concorrente, conforme reconheceu o STF na ADI 6.341, com fundamento no art. 24, II, da Constituição, com a União definindo normas gerais e o estado, normas complementares. Ao lado disso, coexiste a competência própria do município para legislar sobre assuntos de interesse local nas áreas de sua atuação, como é o caso da saúde pública (art. 30, I, II e VII). Na medida em que a legislação federal e estadual não for capaz de atender ao interesse local municipal, compete ao ente municipal editar normas a respeito. Importante ressaltar que o SUS ainda que seja um sistema público de saúde, basta a leitura atenta do art. 197 para certificar seus poderes para regular, fiscalizar e controlar o público e o privado.

O art.198, ao definir o SUS, determina aos entes federativos a integração de seus serviços em rede regionalizada e hierarquizada tecnicamente. Seria uma mitigação da autonomia federativa expressa no art. 18 da Constituição? Não, porque não há mitigação quanto à autonomia dos entes federativos na organização de seus serviços de saúde e na sua execução; há sim a imposição constitucional de integração das ações e serviços de saúde, o que resulta num sistema de compartilhamento federativo com fundamento sanitário da impossibilidade de todos os entes per si realizarem todas as ações e serviços de saúde que a população necessita, até por faltar escala e por outros elementos necessários. A concepção do SUS é de compartilhamento federativo; de criação de rede interfederativa de serviços; de cooperação federativa obrigatória e não sugestiva.

Para atender na vida real esse comando constitucional de integrar serviços de saúde descentralizados, com direção única em cada esfera de governo, os dirigentes do SUS, no inicio dos anos 90, criaram as comissões intergestores tripartite e bipartite, ou seja, comissão de âmbito nacional de gestores de saúde e comissão de âmbito estadual, para, de modo conjunto, os entes federativos pactuarem a operacionalidade das políticas de saúde em todas as suas nuances, da financeira às referências sanitárias de munícipes no âmbito da rede interfederativa de saúde, regionalizada.

Somente em 2011, a Lei n. 12.466[2], alterou a Lei 8.080, de 1990, para reconhecer as comissões intergestores tripartite (CIT), bipartite (CIB) e regional (CIR) e o papel de representação institucional do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass)[3] e do Conselho Nacional de Secretário Municipais de Saúde (Conasems) como legítimos representantes de seus pares nessas comissões, ao lado do Ministério da Saúde, definindo ainda suas competências, um avanço impar na consolidação da gestão compartilhada do SUS. Temas com implicações interfederativas devem ser debatidos na CIT, na CIB ou na CIR, dependendo de sua abrangência.

Assim, as requisições de bens e serviços que possam ter implicação estadual ou nacional devem ser submetidas à CIT para a sua coordenação, fixação de diretrizes ou qualquer outra ação decorrente do regime condominial do SUS. Seria oportuno o diálogo entre a CIT e as operadoras de planos privados de saúde para ações coordenadas. Portanto nessa pandemia algumas requisições deveriam estar sob coordenação da CIT, como a gestão de leitos privados, que devem ter diretrizes nacionais pactuadas para que os estados possam, em conjunto com seus municípios, coordenar a regulação desses leitos para que a população não fique desassistida por ser usuária do SUS ou de planos de saúde. Na emergência sanitária não pode haver diferenciação entre serviços públicos e privados. Todos devem estar à disposição da sociedade, sob a condução do SUS.

Sendo a saúde um bem fundamental positivado na Constituição, artigos 6º e 196 como direito e dever estatal, não seria crível que tal direito somente diga respeito aos serviços públicos. Ora a natureza jurídica pública do direito à saúde não permite essa dicotomia por se tratar da proteção da vida, pela saúde; assim não importa o seu regime prestacional, público ou privado, para estar sob a égide pública da regulação, fiscalização e controle. Não fosse essa a interpretação consentânea com o espírito do legislador constituinte, não haveria necessidade de a Constituição declarar a liberdade da iniciativa privada para atuar nesse campo. É a natureza pública do direito à saúde irradiando suas consequências no público e no privado.

Por isso a gestão pública de todos dos leitos existentes no país numa pandemia faz sentido e é imperativa, em especial os de UTI onde a escassez é maior; não se trata de fila única para abarcar toda a população, independentemente de ter ou não plano de saúde pelo fato de se estar em sede de urgência e emergência, incompatível com fila. Emergência requer pronto atendimento de todos e se escolhas trágicas tiverem de ser feitas é porque o sistema de saúde falhou.

O correto é tratar o tema à luz da ação coordenada, de forma tripartite ou bipartite, dos leitos privados, em diálogo com o setor, todos sujeitos à central de regulação pública, com poderes para encaminhamento dos pacientes com risco de vida, que não podem ser nominados como público ou privado, pelo período em que durar a situação de emergência sanitária.


[1] Requisição do Hospital Santa Cruz por desativação de leitos e serviços; de um hospital recém-construído que iria se transformar em um shopping, dentre outros.
[2] Tive participação no referido projeto de lei, ao propô-lo ao Conasems em 2009 e deve-se muito ao trabalho do Dr. Ênio Servilha, então Secretário Executivo do Conasems.
[3] O Conass foi criado em 1982, com o Dr. Adib Jatene como um de seus idealizadores. O Conasems foi criado em 1986.


Lenir Santos, atual presidente do Idisa, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp e professora colaboradora da Unicamp.




OUTRAS DOMINGUEIRAS