Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira nº 16 - Maio 2023
Índice
- Novo Arcabouço Fiscal e Financiamento Federal do SUS - por Francisco R. Funcia (1), Elida Graziane Pinto (2), Lenir Santos (3) e Isabela Soares Santos (4)
Novo Arcabouço Fiscal e Financiamento Federal do SUS
Por Francisco R. Funcia (1), Elida Graziane Pinto (2), Lenir Santos (3) e Isabela Soares Santos (4)
A nova proposta de regime fiscal aprovada pela Câmara dos Deputados transformou em teto o que deveria ser o patamar mínimo de financiamento da saúde, que já não estava suficiente para o SUS atender às necessidades da população com a devida qualidade, em cumprimento ao preceito constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”.
A Câmara dos Deputados, em 24 de maio de 2023, aprovou o texto substitutivo do Relator do Projeto de Lei Complementar 93/2023 (PLP 93) sobre o Regime Fiscal Sustentável (RFS), (anteriormente denominado Novo Arcabouço Fiscal). O texto segue para análise e votação do Senado Federal, que poderá mantê-lo ou alterá-lo e caso seja alterado, deverá retornar à Câmara dos Deputados para nova apreciação.
Neste artigo, avaliamos e refletimos sobre o texto substitutivo e seus possíveis impactos para o financiamento federal do SUS para esclarecer a sociedade sobre a necessidade de sua mobilização em defesa da saúde, educação e demais direitos sociais.
Importante, como abordagem preliminar, destacar o contexto político da tramitação do PLP 93, que substituirá a regra anterior da Emenda Constitucional (EC) 95, de 2016, conhecida como ‘teto de gasto federal’, que asfixiou e gerou perdas bilionárias para o orçamento federal da saúde. Vejamos:
a) governo tomou posse há menos de 6 meses, após a vitória eleitoral em uma sociedade dividida politicamente, enfrentando, logo nos primeiros dias, uma tentativa de golpe de Estado, influenciado por forças políticas derrotadas nas eleições presidenciais de 2023;
b) a maioria dos deputados e senadores, eleita para a legislatura de 2023-2026, tem perfil conservador; e
c) a direção do Banco Central (instituição que goza de autonomia, resiste imotivadamente a reduzir a taxa de juros, de modo incompatível com o cenário favorável da estabilidade monetária e as ações concretas de compromissos do governo federal com a responsabilidade fiscal, o que tem levado a um desentendimento público entre responsabilidades políticas sociais e econômicas, voltadas para desenvolvimento inclusivo e sustentável. Sem se esquecer so risco de conflito de interesses na captação de expectativas inflacionárias apenas junto a cerca de 140 instituições financeiras,
Esse contexto dificultou as primeiras tentativas governamentais de promover reformas emergenciais para enfrentar o cenário estrutural e financeiro de crise herdado do governo anterior, sendo essa uma referência inicial importante para entender a desconfiguração promovida pelo relator do projeto de lei complementar do regime fiscal sustentável, que desconsiderou a responsabilidade social dos Poderes Executivo e Legislativo no enfrentamento das desigualdades que sangram a população brasileira.
O texto substitutivo sob análise, desconfigurou a redação original encaminhada pelo governo federal: no caso do financiamento do SUS e da educação, as despesas com o piso da enfermagem e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) deixaram de ser consideradas como exceção à regra dos limites de crescimento das despesas (70% das receitas primárias condicionadas à banda de crescimento entre 0,6% e 2,5% ao ano).
No caso do financiamento federal do SUS, isto significa dizer que o piso da saúde de 15% da Receita Corrente da EC 86/2015, se transformará em teto, pois parte da margem da expansão das despesas será tomada pelos pisos da saúde e da educação o que inviabilizará qualquer possibilidade de ampliação efetiva do financiamento do SUS.
Ampliação essa absolutamente necessária para a garantia do direito constitucional da saúde, subfinanciado há 34 anos e gravemente desfinanciado nos últimos anos, até mesmo porque deve-se compreender que investimento em saúde é despesa que contribui para a melhoria das condições de vidas das pessoas, ou seja, evita risco de doença, elevando o nível de desenvolvimento do país. Além do mais, a saúde das pessoas sofreu forte abalo em razão da Covid-19 que se abateu sobre o mundo nesses últimos anos.
É oportuno alertar que a regra dos 15% da Receita Corrente Líquida já havia sido avaliada como insuficiente para o financiamento do SUS desde a aprovação da EC 86, e com a vigência da EC 95/2016, quando a regra da EC 86/2015 foi suspensa, houve uma retirada de mais de R$ 70 bilhões do financiamento federal do SUS no período de 2018-2022. Se eram insuficientes os 15%, com o teto de gasto da EC 95 essa insuficiência se agravou a ponto de haver perdas concretas de recursos na saúde.
Essa situação inviabiliza qualquer expectativa positiva da população brasileira para com a saúde dado que o texto substitutivo, aprovado pela Câmara dos Deputados, a ser apreciado pelo Senado Federal, não permite ampliar o financiamento do SUS além do valor de seu piso (recursos mínimos), nem repor as perdas dos últimos anos, o que implica na manutenção do status de subfinanciamento, afetando ainda mais a saúde do povo brasileiro que sofre as consequências da pandemia da Covid 19, que reprimiu a demanda e deixou sequelas na saúde de muitos, ainda não totalmente conhecidas, diagnosticadas e dimensionadas.
Sempre é bom alertar: o SUS custa em torno de R$ 4,00 per capita por dia (somando-se os recursos da União, Estados e Municípios) e cerca de 4,0% do PIB (muito abaixo da cifra em torno de 7,0% e 8,0% como ocorre na maioria dos países desenvolvidos), sendo que o gasto público em saúde representa menos da metade do gasto total em saúde (público e privado), situação inversa ao cenário internacional, cuja aplicação governamental em saúde representa gira em torno de 70% do total do gasto-saúde.
Nessa perspectiva e no curto prazo, o Senado Federal poderia promover algumas alterações no PLP 93/2023 aprovado pela Câmara dos Deputados:
a) que as emendas parlamentares individuais impositivas computadas no piso federal em ações e serviços públicos de saúde, calculadas com base na regra da EC 86/2015 (1% da Receita Corrente Líquida, conforme art. 166, §9º da CF/1988), sejam consideradas como exceção ao limite da despesa do regime fiscal sustentável (RFS), (observando-se, obrigatoriamente, o plano de saúde do ente federativo recebedor), para fins de medida compensatória dos impactos da inibição da arrecadação de ICMS e IPI ocorrida no ano passado e em consonância à Emenda 128/2022 e ao art. 14 da Lei Complementar 194/2022;
b) que as despesas com o piso da enfermagem e com o Fundeb, que estavam excepcionalizadas no limite da despesa, conforme redação original do governo, voltem a ser excetuadas. Isso significa a leitura teleológica dos incisos I e VI do §6º do art. 107 do ADCT, (exceções ao teto que ainda vigoram) que integre às Emendas 108 e 127. A revogação do teto não pode ignorar o ordenamento constitucional vigente, seja em relação ao alcance do piso da enfermagem (Emenda 127/2022), seja em relação à complementação federal ao Fundeb (Emenda 108/2020). Não é dado à lei complementar mitigar o alcance de dispositivos constitucionais que determinam a responsabilidade solidária pelo custeio dos principais direitos sociais, porque tal opção infraconstitucional comprometeria sua garantia de financiamento intertemporal, ainda que de forma implícita.
Para que isso ocorra, é fundamental que as instituições, entidades da sociedade civil e movimentos sociais em defesa do SUS, da educação e das demais áreas sociais, em defesa da vida do povo brasileiro, estejam mobilizadas para sensibilizar os Senadores para essas mudanças.
É preciso que o Senado Federal atente para as graves consequências de se transformar piso em teto, impedindo o crescimento do orçamento federal para corrigir as graves iniquidades sanitárias, impostas pelo teto de gasto da EC 95, e o subfinanciamento da saúde, aumentando as iniquidades sociais.
Somos todos responsáveis pelos destinos da comunidade e, para que isso seja posto em prática, a Casa Legislativa, Casa do Povo, precisa se comprometer com o adequado financiamento da saúde como elemento relevante para a garantia do direito da saúde. Proclamar direitos sociais descolados da responsabilidade para com o seu financiamento, é promessa inconsequente.
(1) Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS), Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e Consultor Técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde.
(2) Elida Graziane Pinto é Livre-docente em Direito Financeiro na USP, Doutora em Direito Administrativo pela UFMG, com estudos pós-doutorais em Administração pela FGV-RJ, Professora da FGV-SP e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
(3) Lenir Santos é advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento de Saúde Pública da Unicamp, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, Idisa.
(4) Isabela Soares Santos é socióloga, doutora em saude publica (FIOCRUZ), pesquisadora na Ensp/FIOCRUZ, Vice-presidenta da ABrES e coordena a Comissão de Políticas Públicas e Gestão de Saúde da ABRASCO.