Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 17 - Abril 2020

Índice

  1. Boletim Cofin 2020/04/30/1e2A-B - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
  2. COVID-19 E PLANEJAMENTO MUNICIPAL: referências preliminares para 2021 - por Melissa Spröesser Alonso e Francisco R. Funcia
  3. SUS, o patinho feio do estado mínimo - por Lenir Santos

Boletim Cofin 2020/04/30/1e2A-B

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke







COVID-19 E PLANEJAMENTO MUNICIPAL: referências preliminares para 2021

Por Melissa Spröesser Alonso e Francisco R. Funcia


Introdução
O Brasil e o mundo estão enfrentando a pandemia do novo coronavirus neste ano de 2020. Apesar dos esforços concentrados que são necessários e imprescindíveis para combater esse inimigo invisível, o planejamento integrado tanto em cada esfera de governo, como entre essas três esferas, é fundamental para a definição das ações e da consequente alocação de recursos orçamentários e financeiros durante e após a crise do Covid-19.

Os municípios tem representado o elo mais frágil do pacto federativo firmado no Brasil após a Constituição Federal de 1988: tornou-se protagonista de várias políticas públicas descentralizadas, mas sem os recursos próprios correspondentes para esse fim – em média, os tributos municipais representaram 6,26% e 6,57% em 2017 e 2018, respectivamente, da arrecadação tributária total, enquanto que a participação dos tributos federais foi de 68,04% e 67,53%, conforme consta em recente estudo da Receita Federal do Brasil (2020). Nesse contexto, o financiamento das políticas públicas municipais guarda relação de dependência com as transferências intergovernamentais, quer as referentes às repartições tributárias constitucionalmente definidas, quer as conveniais ou não conveniais decorrentes das políticas setoriais, como são as transferências fundo a fundo no âmbito do Sistema Único de Saúde.

Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é estabelecer a vinculação da crise do Covid-19 para o planejamento municipal não somente em 2020, mas também a partir de 2021. O pressuposto aqui adotado é que os efeitos dessa pandemia condicionarão as ações governamentais nas três esferas de governo nos próximos anos.

Planejamento Municipal
O planejamento de uma cidade é realizado por meio da elaboração de diversos instrumentos, sendo o Plano Plurianual (PPA), a Lei Orçamentária Anual (LOA) e Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) os instrumentos do planejamento orçamentário e financeiro do setor público brasileiro. Entretanto, o Plano Diretor é o instrumento referente ao planejamento urbano de maior importância, sendo o norteador da política urbana.
Está previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), principais marcos legais para o desenvolvimento das cidades, estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Nos termos do artigo 41 da legislação citada, o Plano Diretor é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, quase ⅓ dos municípios brasileiros, e integrantes: de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; de áreas de especial interesse turístico ou inseridas em área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional; e do cadastro nacional de municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.

É resultado de um planejamento integrado, democrático, construído com transparência e participação social, com a finalidade de mitigar riscos e distribuir benefícios da urbanização, promovendo a indução de um desenvolvimento mais inclusivo e sustentável, conectando aspectos territoriais com objetivos sociais, econômicos e ambientais para a cidade.

É premissa da política urbana induzir o desenvolvimento inclusivo, sustentável e equilibrado, de modo a corrigir distorções históricas de ocorrência em regiões subdesenvolvidas, caso do Brasil onde cidades cresceram de modo desordenado, criando problemas como a degradação do meio ambiente, a falta de saneamento básico, entre outros.

A cidade cumpre a sua função social quando garante a acessibilidade e a qualidade dos serviços, equipamentos urbanos e a participação coletiva a todos os cidadãos, independente da sua faixa de renda, gênero, raça e condição social. A função social da cidade também se articula à melhor oferta e distribuição dos serviços e equipamentos públicos, tais como habitação, saneamento, transporte, assistência social, saúde, educação, entre outros.

Para a garantia da função social, é preciso compreender que a propriedade urbana não é um bem privado e individual, ao contrário, a propriedade urbana deve ser compreendida como um bem coletivo. A implantação de equipamentos públicos e de empreendimentos econômicos precisa estar sinalizada nas áreas destinadas para essas finalidades, além de estar articulada à dinâmica urbana e trazer benefício à maioria da população.

O Plano Diretor Municipal deve ser revisado a cada 10 anos, evitando causar um descompasso prejudicial entre a realidade urbana e as políticas de desenvolvimento, acompanhando as alterações sociais, econômicas e tecnológicas, o crescimento da cidade e suas novas necessidades decorrentes de alterações do perfil de cada município. O não cumprimento pode incidir em ações judiciais e improbidade administrativa aos gestores, bem como limitação de crédito e de repasse de recursos públicos aos municípios para investimentos em ações de desenvolvimento urbano, como obras de pavimentação e aquisição de equipamentos.

Muitos municípios iniciaram as revisões de seus planos, composto por procedimentos morosos envolvendo diversos atores: governo, legislativo, setor privado, segmentos, instituições. O processo de revisão do Plano Diretor deve ser incluído nas leis orçamentárias do município, enviado do executivo ao legislativo um projeto de lei com a proposta de revisão, aprovação do projeto de lei para iniciar o processo de revisão do Plano Diretor.
Os municípios se deparam agora com um ajuste necessário no rumo do desafio de planejar as cidades pelos próximos 10 anos, uma vez que surge no horizonte os efeitos da pandemia do novo coronavirus – que não se restringem ao exercício de 2020.

Referências para revisão do Planejamento Municipal
A queda da atividade econômica impacta a receita própria dos municípios, especialmente relacionadas aos tributos que incidem sobre a produção e o consumo (como o ISS – Imposto sobre Serviços), bem como a receita das transferências oriundas dos tributos estaduais (como o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços e IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) e federais (IPI – Impostos sobre os Produtos Industrializados e IR – Imposto sobre a Renda da Pessoa Física e Jurídica, que o Fundo de Participação dos Municípios).

É oportuno destacar que:
a) no caso do ICMS, essa queda da atividade econômica reduz o valor adicionado, que é o principal indicador para definir o índice de participação dos municípios nas receitas estaduais do ICMS: como essa queda não está sendo linear, haverá uma mudança na posição relativa dos municípios nesse índice;
b) no caso do IPVA, a queda da venda de carros impacta negativamente na arrecadação desse tributos, o que reduzirá também a parcela transferida aos municípios.
c) No caso do FPM, a queda da atividade econômica reduz não somente a produção industrial, mas a de todos os setores econômicos, com impactos negativos para o lucro das empresas e para o emprego e a renda dos trabalhadores, portanto, reduz a arrecadação dos tributos que formam o FPM.

Outro aspecto condicionante do planejamento municipal está relacionado aos recursos oriundos das transferências do Fundo Nacional de Saúde, pois a queda e/ou atraso do registro da produção dos procedimentos realizados pode comprometer o financiamento do SUS no município. A gravidade dessa situação é que muitas demandas de saúde ficarão postergadas de 2020 para 2021 (como cirurgias eletivas e consultas e exames de rotina), bem como as despesas de enfrentamento do Covid 19 continuarão a partir de 2021, quer em termos de ações de saúde para atendimento da população, quer em termos de pesquisas para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos, quer para a manutenção e substituição de instalações e equipamentos que estão sofrendo intenso desgaste e depreciação decorrente do uso intensivo neste ano de 2020. As despesas sociais em geral também estão crescendo e crescerão por causa da recessão e da lenta recuperação que ocorrerá a partir de 2021, cujos efeitos negativos sobre o emprego e a renda pressionarão os gastos não somente da saúde, mas da educação, assistência social, dentre outros.

Os déficits municipais poderão repercutir no aumento dos preços das compras públicas à luz do atraso dos pagamentos aos fornecedores, se não houver uma assistência financeira da União aos municípios. A dívida pública municipal deverá crescer como relação da Receita Corrente Líquida, quer pelo efeito estatístico (queda da Receita devido à queda da atividade econômica), quer pela interrupção do pagamento das prestações da dívida contratada e/ou pelo incremento da negociação para parcelamento das dívidas municipais de curto prazo junto aos fornecedores. O crescimento da dívida pública poderá fazer com que o município se aproxime ou ultrapasse o limite de endividamento de 120% da receita corrente liquida, o que inviabilizará a contratação de financiamentos para obras e outros investimentos nos próximos anos, caso esse limite não seja flexibilizado pelo Congresso Nacional a partir de 2021.

Considerações Finais
A revisão do planejamento municipal é uma tarefa indispensável em decorrência da crise do Covid-19. Planos Diretores e Planos Plurianuais dos municípios precisam ser revistos para a redefinição de ações a serem adotadas a partir de 2021 – no caso do PPA municipal 2018-2021 e do Plano Municipal de Saúde (PMS) 2018-2021, faz-se necessária essa revisão urgente para adequar os objetivos, prioridades e metas para 2021 (pois as mudanças para 2020 estão amparadas no decreto de calamidade pública), o que condiciona também a revisão do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021 (que os municípios estão encaminhando para as Câmaras Municipais), da Programação Anual de Saúde (PAS) de 2021 e do Projeto de Lei Orçamentária de 2021 (a ser encaminhado em agosto deste ano para as Câmaras Municipais).

No que diz respeito ao PMS, à PAS e às diretrizes da saúde estabelecidas para as prioridades que devem constar no PLDO 2021 e na PAS 2021, é fundamental que os Conselhos Municipais de Saúde avaliem e deliberem as revisões que forem propostas pelos gestores, uma vez que as resoluções e as recomendações referentes a esses instrumentos devem ter sido avaliadas e deliberadas, na maioria dos casos, antes da decretação do estado de calamidade pública, sendo que os efeitos da pandemia estão sendo conhecidos com mais precisão nos últimos 45 dias.

Essa revisão do planejamento municipal é urgente, inclusive para pressionar o governo federal a assumir o compromisso de atender às necessidades de financiamento das políticas públicas municipais, especialmente na área da saúde – não é concebível a volta da política de austeridade fiscal baseada no teto de despesas primárias federais (estabelecido pela Emenda Constitucional – EC - 95/2016) a partir de 2021, como está proposto no PLDO 2021 da União. É preciso que os prefeitos e os governadores do Brasil pressionem agora o governo federal para a revogação da EC 95/2016 e para a adoção de uma política econômica voltada ao crescimento, emprego e renda. Não se pode admitir que a visão federal seja “2020, o ano que não existiu”, porque não somente existiu, como está gerando efeitos para os próximos anos.


Referências
RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Estudos Tributários - Carga Tributária no Brasil – 2018 (Análise por Tributo e Bases de Incidência). Brasília, 2020. Disponível em http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf Acesso em 18/04/2020.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001: Regulamenta os Arts. 182 e 183 da Constituição estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm Acesso em 28 de abril 2020.

BRASIL. Ministério das Cidades. Plano Diretor Participativo: guia para elaboração pelos municípios e cidadãos. Brasília, 2005. 160 p.

BRAGA, Roberto. Plano Diretor Municipal: três questões para discussão. Caderno do Departamento de Planejamento, Faculdade de Ciências e Tecnologia-Unesp, Presidente Prudente, v.1, n.1, p.15-20, ago. 1995. BRASIL. Ministério das Cidades. Lei no 10.257/2001: Estatuto da Cidade. 2001.

CARVALHO, S. H. Estatuto da Cidade: aspectos políticos e técnicos do plano diretor. São Paulo em Perspectiva, v.15, n.4, p.130-135, 2001.

Confederação Nacional de Municípios – CNM, O Plano Diretor como instrumento de Desenvolvimento Urbano Municipal: orientações para o processo de elaboração e revisão do Plano Diretor. – Brasília: CNM, 2013,https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/O%20Plano%20Diretor%20como%20instrumento%20de%20Desenvolvimento%20Urbano%20Municipal%20(2013).pdf Acesso em 28 de abril de 2020.

LEI No 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001., Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm Acesso em 28 de abril 2020.

VILLAÇA, Flávio. Dilemas do plano diretor. 1997. Disponível em: http://www.flaviovillaca.arq.br/pdf/cepam2.pdf Acesso em 28 de abril 2020.


Melissa Spröesser Alonso, Gestora e Pesquisadora de Políticas de Saúde; Doutoranda em Saúde Coletiva - Faculdade de Medicina UNESP/Botucatu; Mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas - FLACSO

Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP; Professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS; e Consultor Técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS).



SUS, o patinho feio do estado mínimo

Por Lenir Santos


Há 32 anos o Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído na Constituição da República (CR) para garantir ações e serviços de saúde para a população e assim cumprir o direito à saúde previsto em seu artigo 196.

A reforma sanitária que se fazia presente no país desde os anos 70 e que propugnava por um novo modelo de assistência à saúde pelo esgotamento do Sistema Nacional de Saúde, Lei n. 6.229, de 1975, e do Sistema Nacional de Previdência Social, Lei n. 6.439, de 1977, por não atenderem as necessidades coletivas de saúde.

Do Piass à AIS e da AIS ao SUDS[1], chegou-se ao SUS, um sistema que resulta da integração das ações e serviços de saúde de todos os entes federativos, organizados em rede regionalizada (região de saúde) e hierarquizada (nível de complexidade de serviços). Sua organização e seu funcionamento são descentralizados, com direção única em cada esfera de governo, num federalismo cooperativo.

Em 1990, com a edição da Lei n. 8.080, iniciou-se na prática a organização do SUS, com a transferência do Instituto Nacional Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) para o Ministério da Saúde. Em 1993, com a sua extinção, iniciava-se, de fato, a instituição do SUS.

Foram anos de efervescência no Ministério da Saúde e nos municípios, com a vigorosa participação do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde (Conass) para promover a descentralização das ações e serviços de saúde do Inamps para os entes federativos subnacionais, iniciada pelo SUDS em 1987.

O Estado de São Paulo foi um exemplo na participação do que se denominava municipalização da saúde, com a sua Secretaria de Estado da Saúde em franca ebulição. Época de fortalecer a atenção primária em saúde, com o programa Saúde da Família; de criar o programa dos agentes comunitários de saúde; criar as comissões intergestores de saúde; possibilitar juridicamente as transferências federais fundo a fundo; e muitos outros novos institutos administrativos, ainda que falar em Direito Sanitário soava como algo a não ser levado a sério.

Quem não compartilhava desse mesmo entusiasmo era a área econômica do Governo Federal. Essa negação deu inicio a uma saga em busca do financiamento adequado do SUS, hoje um dos principais objetos de estudo da economia da saúde, que muito se deve a Gilson Carvalho e Elias Jorge, dois, entre muitos outros, que se destacaram na articulação e nos estudos para embasar a luta da sociedade para a garantia de recursos suficientes, e, por atuarem nos anos 90 no Ministério da Saúde, enfrentaram luta cotidiana pela garantia de recursos suficientes para o SUS.

Do descumprimento do disposto no artigo 55 do ADCT à DRU (Desvinculação de Receitas da União), da segregação de fontes da seguridade social exclusivamente para a previdência (EC 20, de 1998), da revogação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que retirou da saúde R$ 40 bilhões em 2007[2], do não repasse pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) ao Ministério da Saúde (MS) dos recursos das contribuições sociais da seguridade por cem dias; da conversão da URV para o real, com grande perda para a saúde, e da EC 95, de 2016, o último prego na cruz.

Um SUS nunca mostrado em suas fortalezas nas mídias sociais: serviços de saúde em 5.570 municípios e 27 estados; serviços de vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental; saúde indígena; conselhos de saúde em todos os entes federativos; comissões intergestores; bilhões de procedimentos anuais; sistema de transplante; medicamento para doenças raras; serviços odontológicos; medicamentos para hemofílicos e portadores de HIV; imunização coletiva. Tudo isso com a regressiva participação da União no orçamento global da saúde (dos três entes federativos), que em 2000 era de 59,8% e em 2018, 44,7%[3], com um gasto per capita-ano de R$ 630; com asfixia do orçamento municipal, que passou a ter que arcar com responsabilidades pelas políticas de saúde sem os recursos correspondentes, tendo que aplicar anualmente 26% de suas receitas quando a lei determina 15%; tendo aplicado o valor de R$ 31 bilhões em 2019 para além dos valores mínimos obrigatórios.

A EC 95, de 2016, retirou em dois anos (2018 e 2019) R$ 17,6 bilhões, que, somados à estimativa da perda de 2020, totaliza R$ 22,5 bilhões; fez elevar o valor dos restos a pagar em mais de R$ 20 bilhões. Só nessa conta são R$ 42,5 bilhões retirados da assistência à população desde 2008[4].

O complexo industrial da saúde não tem recebido investimentos necessários ao seu desenvolvimento, escancarada com a pandemia da Covid-19 a dependência do SUS de inúmeros insumos, produtos e medicamentos adquiridos no mercado externo, com risco até para a proteção de profissionais de saúde. Nunca foram priorizados investimentos em ciência e tecnologia, conforme se vê na entrevista de Carlos Gadelha[5]; os laboratórios públicos foram enfraquecidos; a produção própria de medicamentos foi penalizada com o fechamento de fábricas públicas; o não alcance tecnológico da interoperabilidade dos registros eletrônicos em saúde, prometido e não cumprido há mais de 20 anos. Com profissionais mal remunerados e sujeitos a todo tipo de vínculo de trabalho e o endeusamento da pejotização; profissionais de saúde não valorizados e sem planos de carreira.

Vender, privatizar, transformar o SUS num sistema focalizado para atendimento das pessoas pobres; diminuir os serviços públicos em prol da rede complementar privada tem sido política defendida por muitos e também por alguns organismos internacionais.

Até que, em 2019, nessa sociedade do espetáculo e do mercado como deus, um vírus invisível a olho nu deita por terra muitas crenças econômicas; a tecnologia como substituta do ser humano e passa a dar visibilidade ao invisível, entre eles, ao SUS brasileiro, o patinho feio, o sofrido sistema de saúde, um sistema universal que valoriza a vida, tão mal falado na mídia, negado pelos economistas que rezam a cartilha da austeridade fiscal e da privatização do Estado.

Agora as mídias começam a elevar o SUS à sua verdadeira categoria: a que salva vidas; que atende 210 milhões de pessoas; que realizou 3,2 bilhões de procedimentos ambulatoriais em 2018; que está presente com todas as suas dificuldades no atendimento da doença do novo coronavírus, orientando e passando segurança sanitária; assim, de repente, o patinho feio passou a ser visto com outros olhos porque a sociedade está a dele depender.

Mas não basta olhar o SUS nesse momento de pandemia. É preciso olhar o seu futuro e para isso deve-se retroceder 32 anos de suas lutas, de suas agruras; o sofrimento dos gestores públicos que até os dias de hoje passam o ano a enfrentar a falta de leitos hospitalares ante a sua diminuição em mais de 30% entre 2009 a 2018; as cirurgias não realizadas em tempo oportuno; a dengue, epidêmica e endêmica; pessoas com câncer aguardando exames e quimioterapia. Isso faz com que os municípios elevem cada vez mais a sua participação no financiamento. Mesmo assim, diante de tantos reveses, o SUS, heroicamente, fez e faz milagres com seus parcos recursos.

Chegou o momento de o SUS deixar de ser o patinho feio para de fato e de direito ser valorizado pelo bem que protege, a vida humana, e de enfrentar um estado de coisas inconstitucionais que há na saúde desde o seu nascimento, que aumenta na mesma proporção que aumentam as necessidades de saúde das pessoas, como se pode ver pela sua intensa judicialização, sem que suas causas sejam enfrentadas.

Se o artigo 55 do ADCT tivesse sido cumprido, o valor dos recursos da União aplicados em saúde seriam R$ 275,5 bilhões, e não R$ 122,3 bilhões. Se não houvesse a DRU; as perdas de 1990 e as de 1993; as da URV quando se converteu o orçamento federal da saúde em real; as da CPMF; e, agora mais do que nunca, as da EC 95. Na pós-pandemia, como diz Tatiana dos Prazeres[6], o maior ativo do Estado será a sua capacidade de ação e ela deve se voltar para o SUS, definitivamente, além de para outros setores que escancaram a sua indecência, como a falta de saneamento, a informalidade das relações de trabalho, a pobreza, o subemprego. É preciso pensar e fazer diferente. Não há mais espaço para o desdém com o SUS e demais politicas públicas sociais.

É preciso despertar para a natureza de cisne do SUS e para o sentimento de pertencimento da população, necessário para o exercício de sua preciosa vigilância social. Sem o SUS, a pandemia da Covid-19 seria um genocídio sanitário.


[1] PIASS: Programa de Interiorização das Ações e Serviços de Saúde; AIS: Ações Integradas de Saúde; SUDIS: Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde.
[2] Isso para não se falar no seu redirecionamento para áreas que não as da saúde, logo após a sua aprovação, o que levou Adib Jatene a deixar o Ministério da Saúde.
[3] Estimativas de Sergio Piola et al. Financiamento Público da Saúde: uma história a procura de rumo. IPEA, 2013. Dados atualizados para 2018 por Francisco Funcia.
[4] Sem falar dos recursos do présal incluídos no piso da saúde pela EC 86, de 2015, quando originalmente era um valor adicional. Vide ADI 5595, de 2016.
[5] Gadelha, C. Opção pelo atraso. Carta Capita, de 15.4.2020.
[6] Prazeres, T. EU adoece com a pandemia. Folha de S. Paulo. Mundo, 10.4.2020.


Lenir Santos, advogada, professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).


Artigo publicado dia 23.04.2020 em www.conjur.com.br




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