Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
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Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 17 - Junho 2023

SUS: transferência interfederativa de recursos e a Cartilha do Fundo Nacional de Saúde para apresentação de propostas ao Ministério da Saúde

Por Lenir Santos e Francisco Funcia


Desde a origem do SUS, criado em 1988, (art. 198, CF) para dar concretude ao direito à saúde, tem sido complexa a compreensão técnico-jurídica desse sistema interfederativo que integra ações e serviços públicos de saúde.

O artigo 198, ao dispor que o SUS consiste na integração das ações e serviços de saúde dos entes federativos em rede regionalizada e hierarquizada, impôs um regime federativo de cooperação obrigatória para garantir a unicidade conceitual do sistema e a sua descentralização político-administrativa.

Essa necessidade de garantir unidade de conceitos, princípios e diretrizes e ainda de políticas prioritárias de saúde em âmbito nacional, que deve conviver em harmonia político-administrativa com a autonomia dos entes federativos na organização de seus serviços (sempre em acordo às suas competências), é o aspecto mais dificultoso da governança e gestão do SUS. Até mesmo porque a competência para cuidar da saúde, conferida pela Constituição a todos os seus entes de modo comum, requer cooperação federativa financeira, conforme claramente expresso nos artigos 195, § 10 e 198, § 3°, II, da CF.

Para maior clareza, reza o § 10 do artigo 195, que lei definirá os critérios de transferência de recursos para o sistema único de saúde e o de assistência social da União para Estados e Municípios e dos Estados para os respectivos Municípios, com o § 3° do artigo 198, especificando para a saúde que lei complementar, a ser revista a cada cinco anos, deve dispor sobre os critérios de rateio desses recursos.

A obrigação da União e dos Estados na transferência de recursos para a saúde é disposição constitucional, tratando-se, pois, de transferência obrigatória, regulada pela Lei Complementar n° 141, de 2012, de que trata a norma mencionada acima.

Ainda que seja um determinação constitucional, não foi entendido assim desde 1991, quando o Inamps editou a Resolução n° 258, de 1991 (NOB 1/91), dispondo sobre o financiamento tripartite, ou seja, a obrigatoriedade de a União transferir recursos para o SUS estadual e municipal. E exatamente por não ter a correta compreensão do art. 198 da Constituição, ousou dispor em seus considerados essa “pérola”: ‘Pretende-se que através do conhecimento e domínio total das instruções aqui contidas e da subsequente familiarização com o sistema de financiamento implantado possa ser adotada a política proposta, baseada na concessão de um crédito de confiança aos Estados e Municípios (1), sem prejuízo do acompanhamento a ser exercido pelos mecanismos de controle e avaliação que. estão sendo desenvolvidos. Mesmo que tal Resolução tenha sido suplantada pela edição da NOB 1, de 1993, com outros critérios para o rateio federativo sanitário que esse da Resolução, essa incompreensão ainda existe.

A própria Lei n° 8.080, de 1990, dispôs em seu artigo 35 sobre os critérios de rateio (jamais cumpridos), que hoje vigora no disposto na Lei Complementar n° 141, de 2012, que incorporou os critérios do artigo 35. Mas ainda, 10 anos depois, não houve a pactuação do detalhamento desses critérios na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) para encaminhamento para aprovação do Conselho Nacional de Saúde como determina o artigo 17 da referida Lei Complementar.

Assim, até os dias de hoje, 2023, tem sido ignorado pela União, tanto quanto pelos Estados, os critérios da lei para a partilha federativa dos recursos da saúde, que são obrigatórios. Esses critérios, quando combinados entre si, com integração daqueles que são semelhantes, apontam para três eixos, que são: (i) correção das desigualdades regionais para alcance de equidade federativa; (ii) organização dos serviços; (iii) desempenho do ano anterior. Podemos chamar também de níveis de transferências: 1° nível, o per capita de equidade; 2° nível, sustentabilidade da rede de serviços; 3° nível, desempenho.

Para atender o disposto na lei, há de se definir as modalidades das transferências que devem apontar para essas três formas: (i) per capita para a correção de iniquidades (per capita de equidade); (ii) valores para garantir o funcionamento dos serviços (rede assistencial) para atendimento das necessidades locais, regionais em acordo às políticas nacionais de pactuação interfederativa consideradas prioritárias; (iii) valores destinados ao desempenho do ente federativo do ano anterior.

Por mais incrível que possa parecer, ainda hoje vigora, nas transferências obrigatórias interfederativas da saúde, o viés do centralismo federal e isso fica evidenciado ao se verificar o conteúdo da Cartilha editada pelo Fundo Nacional de Saúde (MS) (2) que confere, no campo das transferências de recursos, o mesmo tratamento ao ente federativo e à entidade sem fins lucrativos, quando ambos são totalmente diferentes em sua essência. Trata-se da adoção da visão de “prestador de serviços” aos entes estaduais e municipais, visão que não faz parte do marco normativo do SUS.

O ente federativo é um dos integrantes do SUS. É SUS. A entidade privada sem fins lucrativos é participante (ou não) do SUS. Não é integrante, é participante, em acordo à conveniência e oportunidade aferida pelo Poder Público quando verifica se seus serviços são insuficientes para o atendimento da população e assim, nos termos do art. 26 da Lei n° 8.080, de 1990, decide ou não recorrer ao setor privado para complementá-los.

Como poderia o Ministério da Saúde, uma das partes tripartite do SUS, afirmar que as transferências de recursos da União são instrumentos (3), ou seja, ignorando que são despesas orçamentárias que tanto podem ser repassadas obrigatoriamente em acordo aos critérios de rateio da Lei Complementar n° 141, de 2012, artigo 17, aos estados e municípios, como podem ainda ser objeto de contrato ou convênio na participação complementar do setor privado no SUS. O fato dessas despesas com transferências fundo-a-fundo para Estados e Municípios integrarem o orçamento do Ministério da Saúde não quer dizer que esses entes da Federação assumiram o papel de prestadores de serviços, tal qual ocorre com a participação complementar do setor privado no SUS. Prestadores de serviços recebem pagamento pelos serviços prestados e entes federativos, transferências orçamentárias, cujas fontes são inclusive diferentes.

Estados e Municípios – que compõem o SUS junto com o Ministério da Saúde (MS) – jamais poderiam figurar num documento que trata dos programas prioritários do SUS (em âmbito nacional) ao lado do setor privado sem fins lucrativos, no sentido de que qualquer um deles poder apresentar proposta para participar dos programas prioritários do SUS (MS é SUS, assim como os demais entes federativos.). O setor privado não é SUS, ele pode participar complementarmente do SUS, mas não compõe o SUS institucional. A programação orçamentária do Ministério da Saúde deve obedecer tanto o ciclo orçamentário do setor público brasileiro, como a Lei n° 8.080/90, a Lei n° 8.142/90 e a Lei Complementar 141, esta última inclusive reafirma o planejamento ascendente do SUS - expressão de seu caráter tripartite do SUS.

O SUS tem financiamento tripartite sob a forma de alocação de recursos mínimos de cada ente federativo e de transferências federativas obrigatórias, as quais devem observar os critérios da lei, não podendo, em hipótese alguma, figurarem em qualquer documento de propostas para financiamento do SUS, em pé de igualdade com o privado.

Os programas prioritários são do SUS, em acordo a pactuação tripartite, e os recursos para financiá-los devem ser os próprios e os das transferências obrigatórias interfederativas, observado os critérios de rateio da lei complementar referida, jamais podendo objeto de propostas desses entes ao MS, por se tratar de rateio federativo, uma espécie de partilha de recursos da saúde federal para o financiamento do SUS em âmbito nacional.

Deve ainda observar nessas transferências, dentre outros critérios, aqueles voltados para diminuir disparidades regionais, desigualdades sanitárias, iniquidades federativas, e jamais considerar ente federativo como apresentador de propostas ao MS ao lado das entidades privadas, submetidas à avaliação do gestor federal. Os entes estaduais e municipais não estão submetidos ao gestor federal do SUS, pelo contrário, os três entes da Federação integram a gestão tripartite do SUS, com espaço legal de pactuação na CIT, todos no mesmo pé de igualdade constitucional (art. 18).

É fundamental que essa cartilha, que tem sido reeditada anualmente, seja revisada completamente para, de um lado, retirar os Estados e Municípios da disputa de recursos por meio de propostas em conjunto com o setor privado, e de outro lado, respeitar o caráter tripartite do SUS e os critérios constitucional e legalmente estabelecidos para as transferências fundo-a-fundo.

Urge que passados 35 anos de SUS seus conceitos constitucionais sejam compreendidos e respeitados por seus gestores.


1 - Tratar as transferências obrigatórias da União para Estados e Municípios como um “crédito de confiança”, além do viés centralista, demonstra que não havia compreensão do que de fato era o SUS.

2 - Cartilha para Apresentação de Propostas ao Ministério da Saúde – 2023 (anualmente tem sido editada uma cartilha semelhante).

3 - A começar que transferências não são instrumentos. São dotações orçamentárias para despesas de capital ou custeio. Pode uma determinada transferência exigir seja firmado entre os interessados esse ou aquele documento para a sua concretização. Por outro lado, não se pode confundir transferências obrigatórias de recursos federativos para o financiamento público do SUS, com participação complementar o setor privado, o qual deve se vincular ao interesse público em acordo as necessidades previamente planejadas.


Lenir Santos é advogada, doutora em saúde pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento de Saúde Pública da Unicamp, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, Idisa.

Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP) e Doutor em Administração (USCS), Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e Consultor Técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde.




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