Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 17 - Maio 2019

Índice

  1. DESVINCULAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E O FINANCIAMENTO DA SAÚDE - por Blenda Leite & Daniel Faleiros

DESVINCULAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E O FINANCIAMENTO DA SAÚDE

Por Blenda Leite & Daniel Faleiros


Os orçamentos governamentais resultam de processos que consideram reivindicações por novos e crescentes recursos. A sociedade, por intermédio de seus grupos e representantes, assim com as unidades do governo, demandam decisões alocativas, distributivas e estabilizadoras. Frente aos pleitos e considerando prévios planejamentos, o complexo normativo jurídico, econômico e político, fica a cargo dos níveis superiores dos Poderes Executivo e Legislativo a tomada de decisão. Posto que os recursos são sempre escassos, diante do volume de reivindicações, deve-se considerar os méritos relativos das propostas e suas alternativas (Giocomoni 2011).

No atual cenário brasileiro, por onde tramitam propostas de reformas da previdência, política e tributária, objetivando possibilitar futuras execuções orçamentárias que registrem superávit primário, surge a ideia de “desvinculação dos orçamentos públicos” como um dos possíveis caminhos na busca da melhoria na eficiência e na qualidade do gasto do Estado brasileiro. Tal mecanismo visa a flexibilização na destinação e utilização dos recursos financeiros orçamentários colocando fim ao que os governos entendem como “enrijecimento orçamentário”, ou seja, regras que obrigam os gestores a utilização de parte dos recursos financeiros em funções orçamentárias específicas. Segundo estimativa do Ministério da Economia, divulgada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, no exercício de 2019, as despesas obrigatórias equivalem a 93% das despesas primárias, ou seja, têm destino predefinido por lei, o que representa estreita margem de discricionariedade para os gestores do orçamento (Câmara dos Deputados 2018). Tal percentual registra tendência de crescimento para os próximos exercícios. Atualmente, saúde e educação são orçamentos da União, dos Estados e Munícipios que contam com mecanismos de vinculação orçamentária, garantidos pela Constituição Federal.

A fim de melhor entender o tema, alguns pontos sobre o sistema fiscal e tributário brasileiro e o arranjo do orçamento público devem ser visitados, uma vez que influenciam diretamente na destinação dos recursos para financiamento das ações e serviços públicos em saúde (ASPS). Segundo Oliveira (2009), a política econômica que vem sendo praticada desde a década de 1990 no Brasil, tem expressado, com pequenas variações, as recomendações do pensamento ortodoxo: saneamento financeiro do Estado, junto ao deslocamento de suas prioridades para garantir o pagamento da dívida pública e de seus encargos financeiros. O objetivo é dar prioridade ao ajuste fiscal, à sustentabilidade da dívida e à manutenção de elevadas taxas de juros para manter sob o controle a demanda e garantir fontes de financiamento público. Entretanto, tal prática cerceia recursos destinados aos investimentos públicos e à execução das políticas sociais.

Em termos gerais, quando a receita arrecadada pelo governo é igual ou superior aos gastos, tem-se uma situação conhecida como equilíbrio orçamentário, que é um bom indicador de uma administração financeira sadia. Nesta situação de equilíbrio das contas não é necessário recorrer a financiamento e contrair dívidas. No entanto, nos últimos anos, tanto o Governo Federal quanto alguns governos estaduais e municipais têm apresentando sucessivos déficitsorçamentários anuais, possivelmente ocasionados pela queda da arrecadação e pelo aumento do gasto público.

Neste cenário, a dificuldade de honrar com as despesas previstas nos respectivos orçamentos passou a ser uma preocupação recorrente. Tais déficits podem ser minorados por meio de: a) aumento da tributação; b) emissão de moeda, expedindo a base monetária e legitimando-a com a colocação de dívida do Tesouro Nacional junto às autoridades monetárias; e, c) contratação de dívida junto ao público. Entretanto, deste novo folego orçamentário, infere-se que os déficits são responsáveis por gerar inflação e o endividamento público desviando a economia do seu leito natural de equilíbrio, provocando instabilidade financeira e política (Oliveira 2009).

No Brasil, atendendo às exigências de compromissos com uma maior responsabilidade fiscal e com a sustentabilidade da dívida pública foi adotado um padrão de ajuste das contas públicas, apoiado predominantemente no aumento da carga tributária, visando garantir receitas adicionais e o superávit primário. Todavia, uma vez que normas legais garantem parte da arrecadação para o financiamento de determinadas áreas sociais (educação, saúde e assistência social), ocorreu uma elevação dos gastos públicos, lastreados pelo aumento dos impostos e, principalmente, das contribuições sociais (no caso da união).

Ao aumentar o volume de receitas, visando à garantia dos ganhos adicionais necessários ao pagamento dos juros da dívida, o governo gerou mecanismos de ampliação de transferências intergovernamentais da União para Estados e Municípios, bem como de outros gastos próprios e nas áreas sociais. Todavia, se por um lado a ampliação da receita proporcionou o crescimento do Estado brasileiro, e fez aumentar a destinação de recursos para garantir a sustentabilidade da dívida pública, por outro comprometeu diretamente o aporte de recursos destinados às áreas sociais, contribuindo para o aumento de desigualdades, uma vez que a destinação às áreas sociais foram bem inferiores à sustentabilidade da dívida pública.

Nesse contexto, a desvinculação de receitas destinadas à execução das políticas essenciais para o desenvolvimento social, apresenta-se como um risco de fragilizar ainda mais o financiamento destes segmentos. Como consequência, o Estado, procurando garantir a sustentabilidade fiscal, pode se enfraquecer como agente promotor e garantidor do desenvolvimento nacional e redutor das desigualdades sociais e regionais.

Renúncias fiscais praticadas ao longo dos últimos anos, em todas as esferas de governo, são outros pontos que devem ser abordado. Segundo dados divulgados em 2018 pela Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loterias, o Governo Federal concedeu, entre os anos de 2003 e 2017, em subsídios – entre despesa (benefícios financeiros e creditícios) e receita (gastos tributários) – aproximadamente R$ 4 trilhões (Associação dos Servidores da Secretaria do Tesouro Nacional 2018). Significa dizer que a cada 13 anos um orçamento da União é oferecido em subsídios. Esta comparação se torna ainda mais surpreendente quando se toma como base o orçamento do Ministério da Saúde de aproximadamente R$130 bilhões, ou seja, anualmente, a União oferece em subsídios o montante equivalente a dois orçamentos do Ministério da Saúde. Tal valor equivalente à totalidade dos gastos públicos em saúde do Brasil que atingem 4% do PIB – Produto Interno Bruto. Constatação alarmante, que pode ser entendida como um dos grandes obstáculos à garantia do financiamento do direito à saúde.

Estudo do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada registra que, por meio de renúncias fiscais, cerca de R$ 25 bilhões deixaram de ser arrecadados do total de gastos federais em saúde em 2013 (Ocké-Reis e Gama 2016). A dedução dos gastos com planos de saúde, profissionais de saúde, clínicas e hospitais no Imposto de Renda de pessoa física, das

concessões fiscais às entidades privadas sem fins lucrativos, indústria químico-farmacêutico, diminui a capacidade de arrecadação da esfera pública. Apenas as deduções de Rendimentos Isentos e Não Tributáveis em 2017 superaram R$ 28 bilhões. Adicionalmente, observa-se uma recomposição dos custos da saúde suplementar sempre muito acima da inflação oficial. Segundo Cunha (2018), a Variação de Custo Médico-Hospitalar – base da recomposição dos valores pagos para a saúde suplementar – atingiu 20,4% no ano de 2016, contra 6,29% registrados no mesmo período pelo IPCA - Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo. Registra-se que o IPCA é o índice utilizado pela EC 95/2016, a qual estabeleceu o teto dos gastos federais.

A renúncia tributária promove um forte impacto nas finanças das demais esferas de governo, em especial na esfera estadual, onde há uma guerra fiscal entre os Estados objetivando apresentarem-se tributariamente mais atraentes às empresas. Todavia, como efeito colateral ocorre a redução da arrecadação, principalmente do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços, intitulado ICMS - Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação. Em 2014, estudo realizado pelo BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento (Afonso, et al. 2014) demonstra que em 17 estados brasileiros a renúncia de receita por conta dos benefícios tributários concedidos em 2012 foi, na média, quase o dobro dos investimentos destes Estados. Tais subsídios foram direcionados, quase em sua totalidade, à atração da indústria.

Figura 1 – Renúncia Tributária estimada para Estados, segundo a respectiva Lei de Diretrizes Orçamentárias – 2012 a 2014

Fonte : (Afonso, et al. 2014)

Entre os anos de 2012 a 2014 a valor anual das renúncias entre os Estados estudados ultrapassou R$ 52 bilhões. No ano de 2012, o total de R$ 41 bilhões foi equivalente a 15,6% do ICMS arrecadado ou a 1,2% do PIB (Afonso, et al. 2014). Outros autores (Coelho e Maia 2017) também demonstram que estes valores tendem a aumentar e registram que em 2015 a renúncia total dos Estados alcançou expressivos 60 bilhões de reais. Importante citar que parte do ICMS arrecadado é transferido para os municípios, sendo um dos impostos que compõem a base de aplicação obrigatória dos Estados e dos Municípios na aplicação no mínimo constitucional a ser destinado a ações e serviços públicos em saúde. Somadas, a renúncia tributária do governo federal e a renúncia dos tributos estaduais, produzem importantes impactos no financiamento da saúde.

Financiamento da saúde: destinação

No tocante à destinação de recursos para a saúde, uma provável desvinculação deve ser analisada com cuidado, afinal qualquer redução de recursos destinados à execução de ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como ao acesso universal e igualitário dos cidadãos à saúde, pode implicar em desassistência da população brasileira. Nos últimos 30 anos, o financiamento da saúde vem sendo debatido em várias instâncias e há um consenso quanto à insuficiência de recursos para viabilizar um sistema universal, garantido constitucionalmente, em um território continental e com mais de 200 milhões de habitantes. O desafio se torna ainda maior frente a uma distribuição dos recursos que não considera as desigualdades sociais existentes.

A vinculação orçamentária destinada à saúde se deu no SUS - Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal de 1988, a qual destinou 30% dos recursos do orçamento Federal da Seguridade Social para as ações e serviços públicos de saúde. A Emenda Constitucional n. 29/2000 inovou trazendo a obrigatoriedade de aplicação de valores mínimos dos orçamentos das três esferas de governo. Na esfera federal, ao longo dos últimos 19 anos, a metodologia de aplicação mínima foi alterada por duas vezes e atualmente, e para os próximos 18 anos, o valor mínimo a ser aplicado em saúde se dá pela correção anual pela inflação, calculado pelo IPCA, tendo como base 15% das RCL - Receitas Correntes Líquida do ano de 2017. Nos últimos dois anos, essa metodologia pouco ou nada alterou o volume histórico de destinação de recursos financeiros ao SUS pela União, apenas contribuiu para minimizar os efeitos negativos da Emenda Constitucional n. 86/2016 que teria início em 2016, destinado apenas 13,2% da RCL.

No tocante a Estados e Distrito Federal, a Emenda Constitucional n. 29/2000 estipulou que a partir de 2004, o mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde é de 12% dos seus recursos próprios, originário do produto de arrecadação dos impostos, bem como das transferências constitucionais e legais deduzidas as parcelas transferidas aos respectivos municípios. Do mesmo modo, para os Municípios, a partir de 2004, o mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde é de 15% do produto da arrecadação dos impostos e das transferências constitucionais legais.

Apesar da obrigatoriedade constitucional de aplicação de valores mínimos dos respectivos orçamentos na execução de ações e serviços públicos em saúde, a destinação destes recursos ocorreu de forma desigual. Nos níveis de gestão federal e estadual, independente da vinculação, com raras exceções, o financiamento federal sempre registrou a lógica chamada popularmente de piso = teto, qual seja, o total anual de recursos destinado à saúde sempre permaneceu muito próximo do limite do mínimo obrigatório. Entre os anos de 2003 e 2005 a União e o conjunto dos Estados sequer cumpriam o mínimo constitucional estabelecido. Por outro lado, desde 2000 os municípios vêm ampliando um volume de recursos que extrapola o

limite mínimo estabelecido. Para além dos 15% das receitas próprias, os municípios têm alocado suplementarmente 06 pontos percentuais, atingindo em 2017 a incrível média nacional de 24%. Em 2017, os municípios aplicaram, em valores atualizados pelo IPCA, para janeiro de 2019, mais de R$ 31 bilhões acima do mínimo constitucional. Vale registar que tal valor corresponde, no mesmo período, a quase todo o volume de recursos arrecado pelo IPTU
- Imposto Territorial Urbano no Brasil (Frente Nacional de Prefeitos 2019). No ano de 2017, enquanto a União aplicou R$ 6 bilhões acima do mínimo e os estados R$ 8,3 bilhões, os municípios aplicaram R$ 31,4 bilhões.

Considerando as despesas declaradas pelas três esferas de governo em 2017, quando atualizadas pelo índice inflacionário, observa-se uma queda nos recursos destinados ao financiamento de ações e serviços públicos de saúde, arrastando as despesas para níveis de 2013. Em que pese a diferença da capacidade de arrecadação dos três entes, a mudança de metodologia de aplicação do mínimo obrigatório em ASPS para a União, comprometeu de sobremaneira a destinação dos valores dedicados a saúde pela esfera federal. Observa-se que o mínimo obrigatório, em valores atualizados pelo IPCA, era de R$ 123 bilhões em 2015 e R$
106 bilhões em 2016, ou seja, um arrefecimento na destinação federal dos recursos financeiros para o cumprimento dos princípios constitucionais de integralidade e universalidade das ações e serviços públicos de saúde.


Quadro 01 – Cenário do financiamento do SUS, três esferas de governo, 2002 a 2017
Elaboração própria.
Fontes: Dados da União “Aplicação Mínima” e “Despesa declarada pela União” que se refere ao gasto público em ações e serviços públicos de saúde, foram obtidos junto à Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO) do Ministério da Saúde. Os dados para Municípios e Estados foram extraídos do SIOPS em 13 de março de 2019. Os dados das três esferas de governo foram atualizadas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA para janeiro de 2019.

Financiamento da saúde: vinculação
Os valores mínimos que devem ser aplicados por Estados e Municípios são estabelecidos tendo como base de cálculo o produto dos recursos próprios arrecadados por cada um dos entes. A Base Cálculo para a aplicação mínima para ESTADOS se dá pelo produto das seguintes receitas:

Receita de Impostos Líquida
• Impostos sobre Transmissão "causa mortis" e Doação (ITCD)
• Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)
• Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)
• Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF)
• Multas, Juros de Mora e Outros Encargos dos Impostos
• Dívida Ativa dos Impostos
• Multas, Juros de Mora e Outros Encargos da Dívida Ativa

Receita de Transferências Constitucionais e Legais
• Cota-Parte do Fundo de Participação dos Estados (FPE)
• Cota-Parte do Imposto sobre Produtos Industrializados Proporcional às Exportações (IPI-Exportação)
• Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais
• Desoneração ICMS (LC 87/96) e Outras

Deduções de Transferências Constitucionais aos Municípios
• Parcela do ICMS Repassada aos Municípios
• Parcela do IPVA Repassada aos Municípios
• Parcela da Cota-Parte do IPI-Exportação Repassada aos Municípios

Para os MUNICÍPIOS a base de Cálculo é:

Receita de Impostos Líquida
• Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)
• Imposto sobre Transmissão de Bens Intervivos (ITBI)
• Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS)
• Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF)
• Imposto Territorial Rural (ITR)
• Multas, Juros de Mora e Outros Encargos dos Impostos
• Dívida Ativa dos Impostos
• Multas, Juros de Mora e Outros Encargos da Dívida Ativa

Receita de Transferências Constitucionais e Legais
• Cota-Parte do Fundo de Participação dos municípios (FPM)
• Cota-Parte ITR
• Cota-Parte Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)
• Cota-Parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)
• Cota-Parte IPI-Exportação
• Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais
• Desoneração ICMS (LC 87/96) e Outras


Segundo dados extraídos do SIOPS - Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde, entre os anos de 2002 e 2017, em valores atualizados para janeiro de 2019, do conjunto de tributos que compõem a base de cálculo do mínimo constitucional, os Estados arrecadaram R$ 7,3 trilhões, contra R$ 4,9 trilhões do conjunto de Municípios. Todavia, enquanto os estados destinaram à saúde R$ 922,6 bilhões, os Municípios destinaram R$ 1,0 trilhão. Registra-se que, em detrimento a um poder de arrecadação duas vezes maior do que os Municípios, os Estados destinam menos recursos à saúde.


Figura 2 – Arrecadação direta por nível de governo, 2002 a 2017
Fragmento de Frente Nacional de Prefeitos, 2019.

A composição da arrecadação tributária entre as três esferas de governo corrobora tal assertiva. Apesar de a esfera municipal ser a que menos arrecada, é a que se compromete, ano após ano, com o maior incremento de recursos financeiros, muito além do mínimo constitucionalmente estabelecido (Figura 02). Mais do que as vinculações, são as despesas de realização obrigatória que contribuem para a rigidez orçamentária (Giocomoni 2011). De acordo com o Ministério da Economia, o espaço para as despesas discricionárias está cada vez mais restrito, visto que as despesas obrigatórias avançam cada vez mais na estrutura do orçamento federal.


Figura 3 - Dotação autorizada despesas primárias: obrigatórias x discricionárias, 2000 a 2021
Fragmento de Câmara dos Deputados, 2018.

Nos últimos 18 anos, as despesas obrigatórias sucessivamente ocuparam um espaço importante no volume total de despesas do Orçamento Geral da União. Em 2018, afetou em 91% a dotação autorizada de despesas primárias, com estimativa deste percentual ser ainda maior nos próximos anos, alcançando, segundo o Ministério da Economia, 98% em 2021.

Novamente, reitera-se que as despesas das áreas sociais (saúde e educação mais especificamente), pouco contribuem para o enrijecimento do orçamento no tocante ao volume total de despesas que compõem o Orçamento Geral da União. No orçamento federal, nos últimos 20 anos, as despesas destinadas à saúde segundo as Leis Orçamentárias Anuais da União, nunca alcançaram 5% do total do Orçamento Geral da União (Pereira, et al. 2016). Em 2019, tais despesas comprometem em apenas 4% o total do OGU - Orçamento Geral da União.


Tabela 2 – Valores de Lei Orçamentária Anual (LOA), 1998 a 2019
Fonte: Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) - Secretaria de Orçamento Federal - Orçamento Federal - Lei Orçamentária Anual.

**Financiamento da saúde: arrecadação vs. destinação
**
A fim de conhecer o montante de recursos que poderiam ser desvinculados, foram subtraídos do total do OGU os valores entendidos como não passíveis de alteração de destinação. Assim, a Tabela 3 apresenta todas as despesas alocadas no orçamento geral da União distribuídas entre as passíveis de desvinculação (itens 3.3. e 4) e aquelas que possivelmente não entrarão no computo da desvinculação, quais sejam: pagamento de juros e encargos da dívida e a respectiva amortização, benefícios previdenciários, transferências para Estados e Municípios e folha de pagamento.


Tabela 3 - Valores OGU, 2015 a 2019
Elaboração própria.
Fonte: Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento - SIOP, dados extraídos em 20.03.2019.

Para o cálculo do valor destinado a Benefícios Previdenciários, foram consideradas as despesas discriminadas nas subfunções Previdência Básica (271), Previdência do Regime Estatutário (272), Previdência Complementar (273) e Previdência Especial (274) nos grupos de despesas “Outras despesas correntes” e nas Modalidades de aplicação - Aplicações Diretas (90 e 91) e até o exercício de 2009 as Transferências ao Exterior (80).

No item 3.1 são consideradas todas as transferências a Estados e Municípios hoje praticadas pela União, dentre elas os repasses das transferências constitucionais e legais, como os Fundos de Participação dos Estados e Municípios, bem como os repasses na modalidade fundo a fundo para financiamento das ações e serviços públicos em saúde.

No que tangue a composição da estrutura orçamentária demonstrada na Tabela 2, percebe-se que o avanço no espaço orçamentário dos ganhos do capital financeiro com a dívida pública, praticado desde o início do Plano Real, permanece até os dias atuais e que os benefícios previdenciários restringiram sobremaneira o financiamento dos demais setores essenciais a políticas públicas, tais como saúde.

Considerações

Uma proposta oficial de desvinculação ainda não foi apresentada ao Congresso Nacional ou à sociedade. No entanto, é imprescindível o debate sobre o tema, sobretudo em relação a uma possível redução de recursos para ações e serviços públicos de saúde, o que seria equivalente à redução de direitos dos cidadãos. Uma possível desvinculação apresenta-se, à primeira vista, como uma opção interessante às três esferas de governo, porquanto, supostamente, estes teriam maior liberdade de destinações orçamentárias, inclusive às respectivas áreas prioritárias. No entanto, o financiamento da saúde, para a maioria dos Estados, que

sucessivamente aplicaram somente o mínimo exigido, apresenta-se como liberdade de aplicar aquém do quase mínimo que já o fazem.

Já os municípios não teriam a mesma opção, vez que ano após ano injetam volumes cada vez maiores de recursos objetivando manter ou ampliar o atendimento aos cidadãos. Neste cenário, a desvinculação pode produzir o colapso financeiro dos Municípios ou ainda a impossibilidade da manutenção e ampliação das ações e serviços públicos de saúde. Uma diminuição na destinação à saúde implicaria em fechar serviços de saúde dedicados à população. Definitivamente, os municípios estão em uma posição na qual uma diminuição de recursos destinados à saúde só seria possível mediante ao aumento da contrapartida do financiamento por parte da União e dos Estados.

Por sua vez, a União pouco seria afetada, visto que grande parte do orçamento do Ministério da Saúde é comprometido às transferências aos Estados e Municípios. No que tange ao orçamento total da União, uma possível desvinculação ampliaria a discricionariedade de utilização dos recursos em menos do que 17% do total, se considerar que parcelas expressivas das despesas discricionárias são essenciais – ou quase obrigatórias – para o funcionamento dos serviços públicos. Na verdade, seria um percentual ainda menor, visto que não foram diminuídos os valores dedicados à manutenção de toda estrutura física da gestão Federal.

A atual crise econômica é, em grande medida, a falência de um padrão de atuação do Estado brasileiro. Algumas características explicitam essa falência: grave crise fiscal, desigualdade na distribuição de renda e o baixo crescimento da produtividade nas últimas décadas (Afonso, et al. 2017). Outras iniciativas, que não a desvinculação, são necessárias para o fortalecimento da atuação do Estado e mais prementes para a dinamização da economia e ampliação das receitas, como o estabelecimento de regras fiscais para um horizonte de estabilização e redução da dívida ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, reformas que transforme o sistema tributário brasileiro mais progressivo.

Afinal uma nação que anualmente disponibiliza, apenas de seu orçamento federal, subsídios fiscais equivalentes ao mesmo que destina as ações e serviços públicos de saúde deveria antes de almejar a desvinculação orçamentária, promover o fortalecimento da atuação do Estado brasileiro com a constituição de um Pacto Federativo com competências fundadas na garantia de não redução de direitos dos seus cidadãos.

Referências

Afonso, José Roberto, Melina Rocha Lukic, Rodrigo Octávio Orair, e Fernando Gaiger Silveira. Tributação e Desigualdade. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

Afonso, José Roberto, Ricardo Figueiró Silveira, Celia Maria Silva Carvalho, e Danielle Klintowitz. A renúncia tributária do ICMS no Brasil. Documento para Discussão, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2014.

Associação dos Servidores da Secretaria do Tesouro Nacional. “Avaliação dos subsídios governamentais.” 2018.

Câmara dos Deputados. Orçamento em Foco - Parâmetros, resultados fiscais e execução. 1.
Brasília, DF, 2018.

Coelho, Ricardo da Silveira, e Rodrigo Guedes Maia. “Guerra Fiscal: uma Análise Comparativa da Renúncia Fiscal Praticada pelos Estados Brasileiros.” Guerra Fiscal: uma Análise Comparativa da Renúncia Fiscal Praticada pelos Estados Brasileiros. Universidade Federal Fluminense, 2017.

Frente Nacional de Prefeitos. Multi Cidades - Finanças Municipais do Brasil. Vitória, ES, 2019.

Giocomoni, James. Receitas vinculadas, despesas obrigatórias e rigidez orçamentária. Vol. 1, em Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, 329-352. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

Júnior, Flavio Corrêa de Toledo. A vital apuração da receita corrente líquida. O padrão que baliza os limites da despesa de pessoal e dívida pública e o pagamento de precatórios judiciais e parcelamentos previdenciários. 3467. Edição: Revista Jus Navigandi.
Teresina, Piauí: Revista Jus Navigandi, 28 de dezembro de 2012.

Ministério da Saúde. Nota Técnica: Base de cálculo e aplicação mínima pelos entes federados em ações e serviços públicos de saúde. Brasília, DF, 22 de março de 2016.

Ocké-Reis, Carlos Octávio, e Filipe Nogueira da Gama. Radiografia do Gasto Tributário em Saúde - 2003-2013. Nota Técnica, Brasília: IPEA, 2016.

Oliveira, Fabrício Augusto de. Economia e Polìtica das Finanças Públicas no Brasil. São Paulo, SP: Hucitec, 2009.

Pereira, Blenda Leite Saturnino, Daniel Faleiros Resende, Mauro Guimarães, e Denise Rinehart. “Diagnóstico do (des) financiamento federal do Sistema Único de Saúde: Constribuições para o Debate.” Brasília, DF, 2016.


Blenda Leite Assessora técnica do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília
Daniel Faleiros Assessor técnico do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde
Doutor em Farmacoeconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais
Pós doutor - Universidade de Brasília e pesquisador visitante na London School of Hygiene & Tropical Medicine


Artigo publicado em https://www.conasems.org.br/




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