Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
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Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 20 - Junho 2019

DECISÃO DO STF SOBRE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA IGNORA REGRAS DE OURO DO SUS

Por Lenir Santos


O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu na Constituição de 1988, art. 198, para dar consequência ao direito à saúde consagrado nos artigos 6º e 196. Sua concepção teórica é o resultado do movimento que se denominou Reforma Sanitária, nascido nos anos 70 e implementando de modo parcial em alguns programas, como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS-1979), Ações Integradas de Saúde (AIS-1986) e o Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS-1987), (Decreto n. 94.657, de 1987).

Seus idealizadores se inspiraram nos sistemas de saúde europeus de concepção universalista, do qual é modelo o sistema inglês (NHS)[1], inspirado nas teorias de Beveridge[2] que preconizava um sistema de acesso universal e igualitário, financiado pelo Estado, implantado em 1948, no ano do nascimento da ONU, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Declaração Universal de Direitos Humanos que dispôs ser a saúde, dentre outros, um direito natural do ser humano, como defende Bobbio[3]. O sistema de saúde italiano também serviu de inspiração para o SUS.

O SUDS, o precursor mais próximo do SUS, visava unificar serviços de saúde e descentralizar a sua execução entre os entes federativos; tornar os serviços públicos, inclusive os do INAMPS, a ser extinto, de acesso universal; unir a prevenção, até então destacada dos serviços curativos; unir todo e qualquer serviços de saúde em um único órgão da administração em cada esfera de governo, sob o comando do secretário ou do ministro de saúde, o que se denomina direção única em cada esfera de governo e determinar serem os serviços públicos de saúde gratuitos e todos eles, os públicos e os privados, de natureza pública (relevância pública).

Esses são os cânones do SUS: um sistema único de responsabilidade dos três entes federativos; de execução integrada, em acordo aos níveis de complexidade dos serviços; de acesso universal, igualitário, integral, sob uma única direção, sendo seu primordial princípio, a garantia da saúde mediante medidas que evitem o risco da doença (segurança sanitária, social e econômica) e serviços que possam recuperar a saúde das pessoas ou minorar o sofrimento.

Por se tratar de um direito social que tem custo, não escapou à Constituição a garantia de recursos para o seu financiamento, disposto no art. 55 do ADCT, de que 30% dos recursos do orçamento da seguridade social seriam para o seu financiamento, até o advento da nova LDO (1990).

Foi a partir daí que se começou a escrever e praticar de modo concreto as concepções teóricas da saúde por diversos atores; alguns, verdadeiros evangelistas - aquele que traz a boa nova, que na Grécia[4] antiga era merecedor de um prêmio; outros que, paulatinamente, distorcem a boa nova: uns por não compreendê-la (pai perdoai-os, eles não sabem o fazem); outros, deliberadamente, por não serem simpáticos a boa nova. O melhor seria, como Saramago[5], em sua obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, que o próprio SUS pudesse ser o divulgador da boa nova para não haver distorção.

Mas o que é essa boa nova nos dias de hoje? No seu início – a partir da Reforma Sanitária – havia um alinhamento conceitual que deu origem ao texto constitucional e a lei orgânica. Mas a partir de sua implementação no governo Fernando Collor, começaram-se as distorções, com os vetos à Lei n. 8.080, de 1990, que excluiu dois pontos primordiais do SUS, a participação da comunidade e as transferências de recursos da União para os estados e municípios. Após intensa negociação com o Legislativo e o Executivo, foi aprovada a Lei n. 8.142, que recuperou sua espinha dorsal, o financiamento tripartite e participação social.

Ao longo de 30 anos, a boa nova, em muitos momentos, deixou de sê-la, sendo preciso uma legião de pessoas a lutar pela sua manutenção. Até que no início dos anos 2.000 a judicialização da saúde começou a tomar proporções inéditas, chamando a atenção dos gestores da saúde, estando hoje no patamar de dois milhões de ações judiciais. Nesse ponto, o SUS começa a ser escrito e interpretado por novos atores, a partir de concepções variadas e muitas vezes distantes daquelas proclamadas pelos evangelistas sanitários quando pregaram a boa nova do SUS.

Primeiramente, os equívocos conceituais do Executivo de trazer para a casa nova a casa velha, como é exemplo a tabela de procedimentos do INAMPS, até que surgiu novo ponto nevrálgico no tocante a interpretação do SUS, pelo Poder Judiciário. O fenômeno da judicialização da saúde, sempre crescente e sem solução aparente, tendo em vista a autonomia e vida própria alcançadas, dispensando os cânones do SUS, suas diretrizes organizativas, o planejamento, os planos de saúde e suas programações anuais, causando sérios embaraços à sua organização.

A recente decisão do STF, nos dois julgamentos ocorridos nos dias 22 e 23 de maio de 2019, não perdeu esse viés de não considerar as regras organizativas do SUS. Na pauta estava prevista o julgamento de três ações versando sobre a saúde: a ADI 5.595, com medida liminar concedida pelo Ministro Lewandowski, que trata do financiamento da saúde, uma das principais causas de sua intensa judicialização, dado o inconteste subfinanciamento. Tal ação foi retirada de pauta, exatamente a que se ocupa da macrojustica[6], uma vez que sem recursos suficientes de nada adianta definir quem é o responsável pela garantia de medicamento. O segundo, o julgamento sobre concessão de medicamento não registrado na Anvisa e por consequência não incorporado no SUS (Recurso Extraordinário (RE) 657718, relator Ministro Marco Aurélio Mello) foi julgado e concluído; e por último a ação que julgaria a responsabilidade solidária nas demandas contra o sistema público de saúde (RE 855.178, relator Ministro Luiz Fux). Resta ainda julgar a concessão de medicamentos para doenças raras com registro na Anvisa, mas não incorporado ao SUS.

Com a ADI, que dá substrato às demais, adiada, foi julgado o RE 657718 que discutia a tese de ser o Estado responsável pela garantia de medicamento sem registro na Anvisa. Uma das causas da judicialização, a principal, é o subfinanciamento da saúde, que desde a EC 95, de 2019, vem suprimindo recursos (se antes se mantinha num patamar de recursos mais ou menos igual, mas sem progressividade, doravante, a regressividade se faz presentes, sendo que por 20 anos desconsiderará: i) o aumento populacional; ii) a mudança do perfil epidemiológico da população que envelhece e se hoje representa 13%, daqui há 20 anos, serão 29%, segundo o IBGE; iii) a inflação da saúde sempre superior aos índices oficiais, o IPCA; iv) as novas tecnologias, sempre caras, e as velhas ainda não incorporadas; v) a necessidade de se preencher os vazios assistenciais; vi) a violência urbana que encarece o SUS, dentre outros fatores. Mas disso não se fala.

Discutir a obrigatoriedade de garantir medicamentos sem discutir o financiamento é optar pela microjustica, como bem afirma Élida Graziane[7], numa visão míope e opaca do SUS, pois tudo nos leva a crer que a judicialização, que ultrapassa mais de 2 milhões de ações, ganhou vida própria, vivendo de si mesma, autonomamente reescrevendo os conceitos do SUS e interditando a boa nova que a Constituição, como evangelista dos anos 80, conseguiu difundir.

O julgamento do RE que discutia a garantia pelo Estado de medicamento sem registro na Anvisa, fixou a tese abaixo, tendo sido vencidos os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio que defenderam a vedação do fornecimento de medicamento, sem a exceção criada. Eis a tese vencedora:
1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
I - a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
II - a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;
III - a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.

A decisão do STF no tocante ao fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa, demonstrou que nem todos os ministros têm conhecimento do SUS, tanto que por diversas vezes durante o julgamento foi mencionado ser a Anvisa a fornecedora de medicamento para a população e não o SUS. Mas, por outro lado, outros ministros bem discorreram sobre o papel da Anvisa e da Conitec.

Ao assentarem a não-obrigatoriedade do Estado na garantia de medicamento sem registro na Anvisa, como regra geral, e criar uma exceção, certamente o Estado não o fornecerá como regra geral e a exceção, que pode virar regra - as indústrias farmacêuticas[8] estão aí para comprovar - manterá o SUS refém desses medicamentos que gerará judicialização; o SUS não fará analises individualizadas, e é lamentável não ter sido considerada a obrigatoriedade de a Conitec se manifestar quanto ao medicamento em questão, dentre os requisitos, emitindo seu parecer, o que poderia dificultar a exceção se transformar em regra.

A Conitec deve sempre ser ouvida quanto a qualquer medicamento ou tecnologia que o SUS venha a custear. A decisão quanto a doenças raras e ultrarraras, que será objeto de julgamento específico, mas já excepcionalizada neste em comento, também incentivará a judicialização, tanto quanto a mora da Anvisa na análise do registro. Essas premissas ajudam a aumentar a judicialização por estimular discussões individualizadas, lembrando que esse é um mercado altamente lucrativo e cheio de artimanhas jurídicas, de marketing e de economia.

Por outro lado, no julgamento do RE 855.178 – que analisava a responsabilidade solidária, o STF se manteve conservador ao aplicar o amplo conceito de solidariedade entre os entes federativos nas responsabilidades comuns do art. 23 da Constituição, que no tocante ao SUS não é cabível por motivos de ordem conceitual, constitucional, legal e decretual, dentre eles, a forma organizativa do sistema que determina a integração das ações e serviços de saúde dos entes federativos em rede regionalizada (regiões de saúde) e hierarquizada quanto à complexidades dos serviços, sendo que essa hierarquia não significa responsabilidade solidária, mas sim compartilhamento de ações e serviços, sob a responsabilidade de cada ente per se.

Fixou o STF, por maioria, a tese que: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.”

O SUS se organiza em região de saúde e o Decreto n. 7.508, de 2011, que regula a Lei n. 8.080, de 1990, define-a no sentido de conformar a população usuária dos serviços e o rol de serviços da região. Ora, se não se pode de modo originário utilizar serviços fora das portas de entrada e das referências do SUS, como poderia demandar em juízo de modo aleatório? Não é crível que o usuário possa demandar de modo aleatório qualquer ente da Federação para fazer completar a sua terapêutica, quando o SUS tem portas de entrada e sistema regionalizado e referenciado. Se não cabe a um município – ou se o sistema lhe veda – criar um hospital sem densidade populacional compatível com serviço, como poderia ser responsável pelo serviço na judicialização?

Decidir que cabe à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro cria mais complexidades à judicialização e mantém o problema em aberto. Se conceder o pedido, deverá a autoridade direcionar o seu cumprimento ao ente federativo responsável pela ação ou determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro (que somente se saberá depois de cumprida a decisão) causará dificuldades práticas a todos os envolvidos. Quando se tratar de medicamento sem registro, em qualquer situação, a demanda deve ser contra a União, aceitando-se neste caso que há competências específicas no SUS em relação a um ente federativo, o que nos parece ser uma contradição não aceitar para outras atribuições.

O direito à saúde é responsabilidade de todos os entes federativos, mas não de modo igual, havendo responsabilidade específica para cada um, tanto que o contrato organizativo da ação pública da saúde, previsto no artigo 33 do Decreto n. 7.508, de 2011, dispõe sobre a pactuação de responsabilidades federativas na região de saúde.

Como poderia ser acionado um município de pequeno porte para a realização de um transplante quando, mesmo se ele quisesse, não poderia realizá-lo por ferir a organização do SUS? Se a responsabilidade solidária fosse demandada num caso de vigilância sanitária, como poderia o usuário escolher o ente federativo que lhe aprouvesse? O SUS não compreende tão somente serviços de recuperação da saúde, mas também serviços de proteção e promoção, sendo a segurança sanitária seu princípio preponderante por evitar que as pessoas adoeçam.

São regras de ouro do SUS: ser sistêmico e ser organizado em regiões de saúde. No caso de o cidadão poder demandar qualquer ente federativo, mesmo que este não integre a região de saúde, mais décadas serão perdidas na conquista da efetividade da região de saúde. Não há SUS sem região de saúde, é assim em todo os países que mantém serviços de saúde de acesso universal. O usuário não pode escolher o ente a ser demandado quando não lhe é permitido fazê-lo ao acessar os serviços diretamente. As boas novas do SUS estão sendo deitadas fora.


[1] National Health Service (NHS).
[2] Wiliiam Henry Beveridge (1879-1963). Definiu em cinco os grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade e propôs a criação de uma contribuição obrigatória para financiar serviços de saúde para todos.
[3] Bobbio, Norberto. A era do direito. Editora Campus, 1992.
[4] A palavra evangelho vem do grego euangelion que significa boa notícia ou boa nova.
[5] Saramago, Jose. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Cia das Letras.
[6] Graziane, Élida. Conjur, 21/05/19 Uma estéril década de microjustiça da saúde no STF.
[7] Op. Cit.
[8] Ver artigo Folha de S. Paulo, dia 26.5.2019, Caderno Cotidiano, Ex-chefe antifraude no EUA defende que Brasil aprimore conduta na saúde.


Lenir Santos, atual presidente do Idisa, advogada em gestão pública e direito sanitário; doutora em saúde pública pela Unicamp.

Publicado em conjur.com.br dia 29/05/2019




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