Apresentação
A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.
Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos
Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado
ISSN 2525-8583
Domingueira Nº 21 - Maio 2020
Índice
- Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde¹ - por Lenir Santos² e Francisco R. Funcia³
- O SUS necessita muito mais do que aplausos, gratidão e reconhecimento tardio: precisa de mais recursos para enfrentar o Covid-19 e para consolidar o sistema universal de saúde - por Áquilas Mendes, Carlos Ocké, Francisco Funcia, Rodrigo Benevides
Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde¹
Por Lenir Santos² e Francisco R. Funcia³
“O maior embaraço para a implantação do SUS constitucional foi, e é, o financiamento da saúde. Bastaria o governo cumprir as leis, pois já estavam garantidos 30% da seguridade social para a saúde”. Gilson Carvalho, 2012.
I - Introdução
Nenhum governo, após a caminhada civilizatória da humanidade que culminou com a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), pode deixar de lado a sua responsabilidade social. Isso não significa o abandono da responsabilidade fiscal necessária ao equilíbrio das contas públicas; ambas devem andar juntas, o equilíbrio fiscal e o bem estar da população. O Estado de bem-estar social é fruto da concepção Bobbiana[4] de que não basta proclamar direitos, é preciso efetivá-los. E para efetivá-los, recursos financeiros são necessários.
A responsabilidade social é um freio estatal ao instinto predatório do capital visando à diminuição das desigualdades sociais, mediante a garantia aos cidadãos de seus direitos fundamentais, como a saúde, intrinsecamente ligada à vida; à educação, ao desenvolvimento da ciência, pesquisa e tecnologia.
No nosso país, infelizmente, o Estado social nem sempre foi uma prioridade, ainda que a Constituição tenha essa feição; a frase que embalou diversas gerações era a de que primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. Um bolo que cresceu para algumas elites, com a pobreza colocando o Brasil no final fila no quesito distribuição de renda e IDH.
A saúde pública, pelo histórico de seu financiamento, nunca encontrou suficiência para atender as necessidades das pessoas; não fora a luta de determinadas autoridades públicas, especialistas e da sociedade, o SUS poderia ter se transformado num sistema de saúde pobre para pobres.
Queremos com os dados históricos a seguir demonstrar que a saúde, ainda que garantida pela Constituição, nunca foi, por nenhum governo, em 32 anos, priorizada na alocação de recursos orçamentários e financeiros[5].
Elaboramos, neste trabalho, uma linha do tempo do financiamento da saúde, a partir da Constituição de 1988, para demonstrar que o direito à saúde no Brasil, concebido de modo humanitário na Constituição, não foi até os dias de hoje, assim reconhecido pela área econômica federal ainda que saúde universal espelhe uma evolução que engrandece a Nação.
II – O tripé constitucional da saúde
A Constituição Cidadã positivou direitos, até então não reconhecidos em seu valor intrínseco para a garantia da vida e da dignidade da pessoa. Previdência, saúde e assistência passaram a integrar a Seguridade Social, sistema com orçamento próprio e contribuições sociais específicas, além dos recursos do orçamento fiscal (art. 195 da Constituição da República).
Importante destacar que a Constituição, ao reconhecer saúde como direito, previu um sistema jurídico-administrativo próprio para integrar as ações e os serviços públicos de saúde de todos os entes federativos e definiu um critério-guia ou uma matriz orçamentária para orientar o seu financiamento, uma vez que direitos sociais não se concretizam sem financiamento adequado.
Esse tripé da saúde, o direito posto, o sistema único e o seu financiamento, se cumprido fosse, a saúde pública teria lugar de destaque no cenário nacional e internacional.
Para a efetivação do direito à saúde, o SUS passou a ser organizado nacionalmente, mediante a integração de ações e serviços de saúde de âmbito federal, estadual e municipal, em rede nacional, estadual, regional e municipal, tendo, ao longo desses anos, 47 políticas públicas[6], definidas pelo Ministério da Saúde, em execução pelas três esferas de governo, nem sempre de modo satisfatório pela falta de financiamento adequado.
Suas dificuldades se devem, quase que integralmente, ao seu baixo financiamento, sem ignorar as próprias da gestão, sempre em menor escala que as do financiamento, e muitas vezes, por ele agravado. Além do mais, a ineficiência da gestão não exclui a insuficiência orçamentária. É preciso, pois, combater as duas de modo igual pelo fato de que a eficiência administrativa não suprirá o seu subfinanciamento.
O subfinanciamento da saúde teve início com o descumprimento de sua matriz orientadora, conforme art. 55 do ADCT, que preconizava 30% dos recursos do orçamento da seguridade social para a saúde, seguido de medidas jurídico-fiscais, como a desvinculação de recursos, a DRU. Uma permanente tensão entre o Ministério da Saúde e as áreas econômicas do governo federal, podendo citar fatos como o pedido de exoneração do cargo de Ministro da Saúde pelo Dr. Adib Jatene, no governo FHC, 1996; o enfarte dentro do Ministério da Saúde do Dr. Gilson Carvalho, secretário da Secretária de Assistência à Saúde (SAS), em 1994.
Do ponto de vista administrativo-sanitário, o SUS teve grande sucesso ao longo do tempo, pela capacidade das autoridades do Poder Executivo e Legislativo de promover a transição de um modelo previdenciário de assistência à saúde, amplamente segmentado, sem direção única em cada esfera de governo[7] para um sistema integrado e integral. Essa segmentação foi a causa de duas diretrizes constitucionais, insertas nos incisos I e II do art. 198 da Constituição da República (CR), que impõe a integração das ações preventivas com as curativas e a determina a descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo.
Em 1993, a extinção do Inamps foi um passo decisivo, assim como a criação das comissões intergestores tripartite e bipartite, essenciais para a gestão de um sistema de saúde interfederativo, interdependente e organizado em rede de atenção de modo regionalizado.
Contudo, o mesmo não se pode falar da suficiência do financiamento, sempre objeto de tergiversação pelas autoridades econômicas do governo federal, iniciada com a inclusão de ações e serviços não considerados como “saúde” stricto sensu, para ludibriar a aplicação dos 30% do orçamento da seguridade social na saúde, conforme determinação constitucional e de diversas LDO’s. Ações de assistência social, como alimentação aos necessitados; ações previdenciárias, como inativos da saúde, e assim por diante.
Adib Jatene, em seu discurso de posse como Ministro da Saúde em 1995, ressaltou que a “a nova ética social expressa na CF estendendo o atendimento a toda a população, não foi acompanhada pelo aporte de recursos necessários para cumprir a determinação constitucional.” Gilson Carvalho também afirma que “o maior embaraço para a implantação do SUS constitucional foi, e é, o financiamento da saúde. Bastaria o governo cumprir as leis, pois já estavam garantidos 30% da seguridade social para a saúde”.
Esse foi o início do descumprimento – nunca cessado – da orientação constitucional, do critério-guia de alocação de 30% dos recursos do orçamento da seguridade social para a saúde.
Por isso, traçar uma linha do tempo do financiamento da saúde, a partir de 1988, com a Lei n. 8.080, de 1990, que revogou a Lei n. 6.229, de 1975, que dispunha sobre o Sistema Nacional de Saúde até então vigente e a manter atualizada no Painel Gilson Carvalho, do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA), é de fundamental importância para que a população compreenda e possa discutir democraticamente as alocações orçamentárias das políticas públicas.
III - Linha do tempo do financiamento da saúde[8] – 1988 a 2020 – recursos do OSS, recursos negociados, vinculação de percentuais de receitas móveis, piso-teto pela base fixa.
A questão do financiamento federal do SUS sempre foi alvo de tensão envolvendo o Ministério da Saúde e a área econômica do governo federal, independentemente dos protagonistas envolvidos[9].
1988 – Critério-guia: art. 55 do ADCT: 30% do OSS. Se esse critério tivesse sido adotado, os recursos federais da saúde seriam 271b e não 125b (2020), portanto, correspondente a uma diferença negativa de R$ 146,1 bilhões para o SUS. A Tabela 1 ilustra essa situação.
Tabela 1
Simulação da Perda dos Recursos Federais para o SUS com base na regra dos 30% do Orçamento da Seguridade Social
R$ milhões correntes
1990 a 2012 – A inclusão de ações e serviços de áreas que não a saúde, como previdência social, educação, assistência social, infraestrutura, retirou da aplicação direta em saúde por volta de 11% do seu orçamento, anualmente. Exemplos de serviços que claramente não poderiam ser considerados como de saúde: inativos da saúde (previdência); pessoal dos hospitais universitários federais (educação); alimentação aos necessitados (assistência social); saneamento (Infraestrutura). Consultar ADI 2.999, de 2008[10].
1993 – Ausência de repasses obrigatórios devidos pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), agente arrecadador, cujo Ministro era Antonio Britto, ao Ministério da Saúde (MS) por mais de 110 dias. Isso ensejou ações judiciais dos hospitais privados que participavam complementarmente do SUS; Representação ao Procurador Geral da República pelo Conass e Conasems. A intervenção do PGR, com a abertura do inquérito civil público n.1, permitiu a retomada das transferências, mas sem a devida retroatividade, o que deu ensejo a uma dívida de 2 bilhões de reais pelo empréstimo do Fundo do Amparo ao Trabalhador (FAT) ao MS, em relação a uma dívida não gerada por ele, mas sim pelo MPAS[11] em 1994.
1994 a 2023 – A desvinculação de receitas da União (DRU) teve início com a Emenda Constitucional de Revisão n. 1, de 1º de março de 1994, e sucessivas prorrogações, por 7 (sete) emendas ao ADCT. A desvinculação provisória realizada em 1994 fará 29 anos em 2023! Ela foi estendida até 31 de dezembro de 2023! São as Emendas Constitucionais n. 10, de 04 de março de 1996; n. 17, de 22 de novembro de 1997; n. 27, de 31 de março de 2000; n. 42, de 19 de dezembro de 2003; n. 56, de 20 de dezembro de 2007, n. 68, de 21 de dezembro de 2011 e n. 93, de 8 de setembro de 2016).
1994 – A conversão da URV para a nova moeda, o Real. Na época, o setor saúde vinha se desfinanciando ao ponto de desativar leitos[12] e o desafio da negociação era fazer a conversão mais próxima da realidade do SUS, conforme Gilson Carvalho. Esse acordo nunca ocorreu. As perdas decorrentes da tabela de procedimentos não corrigidas deste sempre e pleiteadas em ação judicial, se corrigidas em 2001, implicariam em 41 bilhões de reais[13] - ação judicial iniciada em 1994, tramitou até 2001, sem sucesso para os impetrantes - (Ação ordinária de cobrança. 17ª Vara – DF – processo 95.64.59-6).
1995 – Buscou-se promover uma reforma na Seguridade Social, o que levou o ilustre e saudoso jurista Geraldo Ataliba a dizer que era totalmente desnecessária e que, por trás disso, estavam 40 bilhões de reais ligados a previdência privada e interesses das companhias de seguro saúde[14]. Por falta de recursos, começou-se a discutir a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) para a saúde, assumida pelo Ministro Jatene[15], seu fiador.
1996-1997 - Criação da CPMF pela EC 12, de 15 de agosto de 1996. Efeitos a partir de janeiro de 2017. O orçamento da saúde era de 14,3b, ao qual deveria se somar 6,9b da CPMF. A execução do MS foi de 17,6b, faltando 3,6b. Por quê? O governo subtraiu fontes próprias. Com uma mão se colocou a CPMF e com outra foram subtraídas fontes que vinham financiando a saúde, como Cofins, CSLL etc.[16]
1998 – Editada a EC 20 que segregou contribuições sociais destinadas desde 1988 à seguridade social, tornando-as exclusivas da previdência social, diminuindo assim as fontes que financiavam a saúde e a assistência social.
2000 – Na contramão do subfinanciamento, o Congresso Nacional aprovou a vinculação de recursos à saúde pela EC 29, ou exatamente para coibir os desmandos até então havidos. O governo, inconformado com a EC, tentou fazer valer a tese em parecer da AGU de que o valor mínimo a ser aplicado em saúde pela União seria sempre o valor do ano anterior, corrigido da variação do PIB, entendido como valor do ano anterior o valor do ano de 1999, como base fixa, corrigido pela variação do PIB. De tão absurda a tentativa de deturpar o disposto na EC 29, tal tese aventada inicialmente não prevaleceu tal a repercussão negativa no Congresso e no meio jurídico e sanitário.
2007 – Em dezembro de 2007, a CPMF foi extinta por decurso de prazo, uma vez que não foi aprovada a proposta que estendia a sua cobrança até o ano de 2011. A CPMF arrecadou 223b entre 1998 a 2006[17], tendo sido aplicado na saúde o valor de 33,5b, quando a sua instituição original havia sido para financiar com exclusividade a saúde, o que nunca ocorreu e levou a demissão do Ministro Jatene.
2012 - Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública - Saúde Mais 10 - do Conselho Nacional de Saúde (CNS), visando um projeto de lei de iniciativa popular, preconizando 10% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União para a saúde. Tal projeto coletou mais de 2 milhões de assinaturas (PLP 321/2013). Projeto arquivado em razão da aprovação da EC 86, de 2015, que previu 15% das receitas correntes liquidas da União, de modo escalonado, por cinco anos como gasto mínimo em saúde.
2015 - A resistência e pressão da área econômica contra o PLP 321/2013 (Saúde+10) resultou na articulação do governo federal junto ao Congresso Nacional para aprovação da EC 86/2015. A garantia conquistada na EC 29/2000 de que os recursos do SUS não seriam reduzidos de um ano para o outro, tendo como referência a atualização do valor aplicado no ano anterior pela variação nominal do PIB, foi perdida com a nova regra de cálculo do piso que passou a ser as Receitas Correntes Líquidas (RCL), a saber: 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União, a ser implementado de forma escalonada e progressiva, em cinco anos: 13,2% em 2016; 13,7% em 2017; 14,1% em 2018; 14,5% em 2019; e 15,0% em 2020.
Com isso, segundo Funcia (2018)[18], os pisos de 2016, 2017 e 2018 seriam inferiores à aplicação de 2014 (14,2% da RCL), bem como os pisos desses anos, e o de 2019, seriam inferiores a 2015 (14,7% da RCL). Em outros termos, somente a partir de 2020, o piso retomaria o nível de aplicação de 2015.
Considerando o princípio da vedação de retrocesso de direitos fundamentais, foi impetrada pela PGR a ADI 5.595, tem como relator o Ministro Ricardo Lewandowski, que concedeu medida liminar suspendendo os efeitos do escalonamento para o ano de 2016, com dever da União de repor os valores devidos, além da questão dos valores do pré-sal, conforme veremos abaixo[19].
Outra novidade negativa para o financiamento do SUS em decorrência da EC 86, foi a determinação da execução orçamentária obrigatória de emendas parlamentares individuais equivalente a 1,2% da RCL, sendo 50% (0,6% da RCL) em ações e serviços públicos de saúde.
Essa obrigação compromete atualmente o orçamento do Ministério da Saúde em mais de R$ 5,0 bilhões – em torno de 4% do total, contra menos de 1% que representou, em média, no período 2009 a 2013, sendo que esse crescimento passou a pressionar a programação própria do Ministério da Saúde na medida que os valores mínimos não foram ampliados, pelo contrário. Em outros termos, quadruplicou a parcela do orçamento do SUS destinada exclusivamente aos interesses parlamentares: mesmo que sejam aplicados em saúde, eles nem sempre atendem às necessidades previstas em planejamento dos entes federativos.
Por fim, com a EC 86/2015, a receita de royalties do Pré-Sal perdeu a condição de financiamento adicional ao “piso” constitucional, estabelecido pela Lei nº 12.858/2013, ou seja, anulou o efeito de fonte específica e temporária de novos recursos para o atendimento das necessidades de saúde da população, especialmente para investimentos e para o fortalecimento tripartite do SUS, diante do esgotamento de alocação adicional de recursos próprios, principalmente por parte dos municípios, que mais que dobraram sua participação orçamentária, desde 1991, conforme ilustra a Tabela 2. Em 2019, conforme publicação no site do Conasems[20], os municípios aplicaram R$ 31 bilhões a mais em comparação ao ano de 2018.
Tabela 2
COMPOSIÇÃO DO FINANCIAMENTO DO SUS
2016 – A edição da EC 95/2016, que denominamos de o último prego na cruz, ou seja, a morte anunciada do SUS pelo seu desfinanciamento. Nesse ano de 2016, houve um breve alento para o SUS: a Câmara Federal aprovou, em 1º turno, a PEC 01-D/2015, que restabelecia a tese básica do “Saúde +10” ao definir como regra de cálculo do piso federal do SUS, 19,4% da RCL (que, na época, era equivalente aos 10% da Receita Corrente Bruta), que seria implementado em sete anos, de forma escalonada e progressiva (a partir de 14,8% da RCL). Porém, nesse mesmo ano de 2016, a Câmara Federal interrompeu a tramitação da PEC 01-D/2015 para apreciar e votar em dois turnos a PEC 241/2016, encaminhada pelo Poder Executivo em junho (que tramitou no Senado Federal como PEC 55/2016), promulgada como EC 95/2016 em dezembro.
A nova regra constitucional deu vida a um fantasma surgido em 2000, como mencionado neste trabalho, a da base fixa e base móvel. As EC 29 e a EC 85 vincularam recursos mínimos para a saúde calculados sobre uma base móvel, ou seja, arrecadação de receitas da União que se alteraram anualmente. Em 2016 e 2017, os valores se alteraram em acordo às RCL; a partir da EC 95, o valor mínimo a ser aplicado da saúde será sempre a partir de uma base fixa, o valor empenhado na saúde no ano de 2017 passou a ser o piso a ser aplicado na saúde, alterando-se, durante 20 anos, unicamente pela variação da inflação medida pelo IPCA-IBGE. A lógica do cálculo dos valores mínimos da saúde abandona a base móvel e passa a ser uma base fixa, ou seja, a partir do valor de empenhado e liquidado em 2017. Assim sendo, nesses dois últimos anos citados, o piso correspondeu a 15% da RCL (base móvel); mas, para o período 2018-2036, o valor do piso de 2017 foi transformado em base fixa de cálculo, acrescido anualmente da variação do IPCA/IBGE.
Essa nova regra constitucional ocasionou uma queda no valor per capita em termos reais em razão do crescimento demográfico anual. Uma tempestade perfeita ao combinar a diminuição dos recursos da saúde com o “teto” para as despesas primárias da União, no período de 2017 a 2036, nos níveis das despesas pagas em 2016, (também corrigido pela variação anual do IPCA/IBGE), o que reduz a capacidade de financiamento do SUS, uma vez que para aumentar as despesas do Ministério da Saúde, faz-se necessário reduzir as despesas de outros ministérios.
Logo no primeiro ano de vigência dessa regra – final de 2017, houve um crescimento de 81% dos empenhos a pagar do Ministério da Saúde, em comparação a 2016, e redução nominal dos pagamentos das despesas inscritas em restos a pagar, o que resultou no crescimento de 50% do total inscrito e reinscrito para execução financeira em 2018. Em outros termos, foram empenhadas as despesas sem a efetiva liquidação e pagamento, ou seja, essas despesas não foram efetivadas como ações e serviços para atender as necessidades de saúde da população, ainda que tenham integrado o seu piso. O Gráfico 1 ilustra essa situação.
Gráfico 1
Ministério da Saúde – Evolução dos Empenhos a Pagar (como proporção do total empenhado)
A partir de 2018, o piso e o valor aplicado em ações e serviços públicos de saúde tem diminuído, tanto em termos reais per capita, como em proporção da Receita Corrente Líquida, caracterizando o desfinanciamento, conceito que expressa o aprofundamento do processo histórico de subfinanciamento do SUS: esse novo processo representa a redução de recursos que já eram insuficientes para atender as necessidades de saúde da população. A Tabela 3 ilustra essa situação.
Tabela 3 - Perdas de Financiamento Federal do SUS a partir de 2018 decorrentes da mudança de regra de cálculo da EC 95/2016
2018-2020 - As perdas do SUS a partir de 2018 estão estimadas em R$ 22,5 bilhões; porém, em termos de aplicação efetiva (soma de 2018 e 2019), a redução de recursos atingiu R$ 17,6 bilhões. Tabela 4 ilustra a perda verificada enquanto proporção da receita corrente líquida, quer do piso, quer da aplicação efetiva (e da inicialmente estimada para 2020, antes da pandemia do novo coronavirus/Covid-19).
Tabela 4 - Perdas de Financiamento Federal do SUS a partir de 2018 decorrentes da EC 95/2016 (em R$ per capita e como proporção da Receita Corrente Líquida)
É oportuno alertar que, historicamente, o piso tem sido a referência para a aplicação efetiva, exceto nos exercícios em que houve a necessidade de alocação adicional de recursos para combater epidemias e pandemias (dengue, gripe H1N1 e Covid-19). Em certa medida, a área econômica do governo federal considera o piso do SUS como teto e com a EC 95/2016, esta prática ganhou reforço.
Convém salientar que o prejuízo que a EC 95/2016 está causando para a saúde coletiva no Brasil também pode ser evidenciada pelos seguintes motivos:
a) gastos crescentes decorrentes da incorporação do desenvolvimento técnico e tecnológico do setor saúde – a redução de recursos dificulta a necessária modernização da saúde pública, cuja defasagem tende a prejudicar a todos, mas principalmente a maioria que depende exclusivamente do SUS para a assistência à saúde;
b) a redução das despesas sociais como decorrência do teto de despesas primárias fixado nos níveis de 2016, condiciona negativamente o atendimento das necessidades da população em outros setores que trazem prejuízos para a saúde da população, como saneamento básico, habitação, transportes, dentre outros; e
c) o estabelecimento do teto de despesas primárias no contexto da recessão econômica, representa uma espécie de retroalimentação para o baixo nível de atividade econômica, o que causa desemprego e queda de renda da maioria da população, o que deteriora as condições de saúde da população.
É possível aferir que os recursos do SUS são insuficientes para atender as necessidades de saúde da população em comparação aos gastos de outros países, conforme ilustra a Tabela 5.
Tabela 5- Gasto Público em Saúde nos países selecionados (em 2015)
Se o gasto público consolidado em saúde do Brasil correspondesse aos 7,9% do PIB como ocorre no Reino Unido, seriam alocados cerca de R$ 256 bilhões adicionais aos R$ 265 bilhões aplicados em 2018 – à guisa de comparação, se os 19,4% da RCL da PEC 01/D, aprovada em 1º turno na Câmara dos Deputados em 2016 (correspondente aos 10% da receita corrente bruta do “Projeto Saúde+10”), estivesse em vigor em 2019, representaria um piso federal do SUS de R$ 175,7 bilhões (ou R$ 53,1 bilhões a mais do que foi efetivamente aplicado).
Esse processo de desfinanciamento do SUS tem inviabilizado a alocação de recursos necessários para cumprir a deliberação do CNS de 2015, que buscou condicionar a alocação dos novos recursos, a serem obtidos mediante novas fontes de receita de caráter não regressivo, para aplicação prioritária na mudança do modelo de atenção à saúde, com a atenção básica como ordenadora da rede de atenção à saúde e a valorização dos profissionais do SUS. Estudo realizado por Funcia[21] (2019) apurou que para:
“I) (...) quadruplicar o valor da despesa empenhada para o Piso de Atenção Básica-PAB Fixo em 2018 (R$ 5,150 bilhões), conforme Brasil, Ministério da Saúde/ SPO14, seriam necessários R$ 15,500 bilhões/ano de recursos adicionais;”
“II) (...) quadruplicar os recursos orçamentários para a Farmácia Básica-PAB em comparação ao valor empenhado em 2018 (R$ 1,500 bilhão), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, seriam necessários aproximadamente R$ 4,5 bilhões/ano de recursos adicionais;”
“III) Ampliar em 50% o valor das despesas empenhadas com Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família (PACS/PSF) pelo Ministério da Saúde em 2018 (R$ 14,622 bilhões), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, a serem transferidos na modalidade fundo a fundo para os Municípios, seriam necessários R$ 7,300 bilhões/ano de recursos adicionais.”
“IV) Quadruplicar o valor das despesas empenhadas com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) pelo Ministério da Saúde em 2018 (R$ 1,078 bilhão), conforme Brasil, Ministério da Saúde/SPO14, a serem transferidos na modalidade fundo a fundo para os municípios, seriam necessários R$ 3,200 bilhões/ano de recursos adicionais.”
É possível constatar que essas quatro propostas de aplicação adicional de recursos somam apenas R$ 30,5 bilhões, ou seja, cifra menor que o valor incremental que seria gerado com a aprovação da PEC 01-D, em substituição à regra da EC 95/2016, e menor que as fontes indicadas para financiar esse incremento, segundo o citado estudo de Funcia (2019): “Se a renúncia de receita federal, estimada por Brasil, Secretaria da Receita Federal do Brasil20 em R$ 306,4 bilhões para 2019, fosse auditada, revisada e reduzida em 30%, haveria aproximadamente R$ 92 bilhões adicionais de receita ao Tesouro Nacional que poderiam ser alocados para o financiamento do SUS. Uma parcela desse valor poderia ser encontrada a partir da auditoria, revisão e redução da renúncia de receita somente vinculada à saúde (...)”; esta última totalizou R$ 32,3 bilhões em 2015 segundo Ocke-Reis[22] (2018), dos quais R$ 12,5 bilhões referentes aos “subsídios que patrocinam o consumo no mercado de planos de saúde”.
Em relação a essas perdas, é importante destacar três estudos distintos que realizaram cálculos com metodologias diferentes dos efeitos da EC 95/2016 para o financiamento do SUS e apuraram perdas, ainda que os valores sejam diferentes:
a) Vieira e Benevides (2016)[23] projetaram vários cenários de variação do PIB e da inflação até 2036, cujos resultados dos efeitos decorrente da vigência desse novo regime fiscal foram quedas de participação da aplicação federal em saúde de 1,68% do PIB para 0,95% do PIB, de 15,2% da RCL para 8,6% da RCL; tais perdas acumuladas em 20 anos poderiam atingir R$ 743 bilhões (a preços de 2016).
b) Funcia e Ocke-Reis[24] (2018) realizaram um exercício contrafactual para avaliar os efeitos da EC 95/2016 sobre o financiamento federal do SUS, retroagindo a aplicação dessa regra constitucional para o período 2001-2015 e comparando com a aplicação federal ocorrida nesse período sob a vigência de outra regra constitucional. Os resultados foram perdas para o SUS de 1,7% do PIB para 1,2% do PIB, de 15% da RCL para 10% da RCL; tais perdas acumuladas no período de 15 anos totalizariam R$ 115,3 bilhões a preços de 2015.
c) Segundo o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) do Governo Federal (Secretaria do Tesouro Nacional) do 6º Bimestre de 2019, o valor aplicado (despesa empenhada) em ações e serviços públicos de saúde foi de R$ 122,3 bilhões para um piso calculado pela regra da EC 95/2016 foi de R$ 117, 3 bilhões, o que resultou numa aplicação acima desse piso de R$ 5,0 bilhões; porém, esse RREO indica também R$ 131,3 bilhões como “valor mínimo a ser aplicado – regra antiga (14,5% RCL)” – da EC 86/2015 – o que nos permite concluir que a área econômica do governo federal está assumindo uma perda de aplicação decorrente da EC 95/2016 de R$ 9,0 bilhões e uma redução do piso federal do SUS de R$ 14 bilhões.
2020 – A Covid-19 e suas implicações no financiamento da saúde.
A natureza limitada do combate à pandemia da Covid-19 no Brasil deve ser compreendida a partir de óticas restritivas: uma que se refere à ausência deliberada do governo federal como um dos protagonistas do processo de planejamento e execução de forma articulada com os governos estaduais e municipais, que assumiram fragmentadamente essa tarefa – muitas vezes, a presença federal tem sido de oposição às decisões de governadores e prefeitos; outra é a herança do processo histórico de subfinanciamento do SUS agravado pelo desfinanciamento causado pela EC 95/2016, que tem retirado recursos para o aprimoramento e a estruturação do nosso sistema público de saúde; e, por fim, o aprofundamento da austeridade fiscal a partir de 2019, que está presente nas medidas limitadas do governo federal, especialmente na disponibilização de recursos para as ações de saúde e demais ações destinadas às medidas de tratamento da doença e enfrentamento dos efeitos da pandemia para a população e para a preservação da estrutura produtiva durante o distanciamento social adotado como medida preventiva em boa parte do país.
No caso dos recursos alocados para o Ministério da Saúde (MS), foi criada uma nova ação orçamentária de combate à pandemia, cujos primeiros recursos foram oriundos de remanejamento interno do próprio orçamento do MS, que totalizaram R$ 5,7 bilhões (até 12 de maio). Além disso, houve um incremento orçamentário de apenas R$ 13,2 bilhões[25] (10,6% acima da despesa originalmente aprovada para as despesas programadas para as ações e serviços públicos de saúde na Lei Orçamentária para 2020), passados mais de 60 dias da pandemia no Brasil, o que totalizou R$ 18,9 bilhões nessa dotação para o combate à pandemia - mas, nesse período em que os casos e as mortes crescem aceleradamente, as despesas empenhadas foram de apenas R$ 10,0 bilhões (ou 53% daquela dotação total), enquanto as liquidadas e pagas foram ainda menores que essas – respectivamente, R$ 7,5 bilhões (39,8% da dotação total) e R$ 6,8 bilhões (36,1% da dotação total). Importante ainda ressaltar que dos 227 bilhões do denominado orçamento de guerra, para a saúde foram destinados 18,9 bilhões (até 12 de maio)[26].
IV - Considerações Finais
O histórico de (sub)financiamento do SUS aqui apresentados em combinação com os dados orçamentários analisados neste estudo demonstraram que a saúde nunca foi tratada efetivamente como prioridade do governo federal de 1988 a 2020, ou seja, foram 32 anos de descumprimento da matriz orientadora do financiamento da saúde de se aplicar em saúde 30% do orçamento da seguridade social, de não se confundir piso com teto e de promover escolhas orçamentárias sabidamente incompatíveis com o bem a proteger: a vida humana pela garantia da saúde. Porém, a EC 95/2016 está representando o último prego na cruz que matará o SUS pelo desfinanciamento programado até 2036.
[1] Artigo revisto e atualizado pelos autores, cuja primeira edição foi publicada na Revista Domingueira da Saúde nº 20, de 19 de maio de 2020 (disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-20-maio-2020).
[2] Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Saúde Pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e conselheira nacional de saúde.
[3] Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e Consultor-Técnico do Conselho Nacional de Saúde.
[4] Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Editora Campus, 1992.
[5] Consultar: Santos, L. SUS: o patinho feio do Estado mínimo. https://www.conjur.com.br/2020-abr-23/lenir-santos-sus-patinho-feio-estado-minimo
[6] Santos, L & Carvalho, Santos. Comentários à Lei Orgânica da Saúde. Campinas: Saberes Editora, 2018, 5ª edição.
[7] Cuidavam da saúde em âmbito federal o MS, o MPAS, o MEC e o Ministério do Trabalho.
[8] Ver estudo de Mendes, Aquilas; Funcia, Francisco R.O SUS e seu financiamento. In: Marques, Rosa; Piola, Sérgio; Roa, Alejandra. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento. Rio de Janeiro: Abres; Brasília: Ministério da Saúde/Desid; Opas/OMS, 2016.
[9] Funcia, Francisco R. Sistema Único de Saúde - 30 anos: Do Subfinanciamento Crônico para o Processo de Desfinanciamento Decorrente da Emenda Constitucional 95/2016. In: ANFIP – Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. 30 anos da Seguridade Social - Avanços e Retrocessos. Brasília: ANFIP, 2018.
[10] Tal distorção que vigorou na saúde em todo o país de 1990 a 2012, quando da edição da Lei Complementar 141 que definiu o que são e não são ações e serviços de saúde para efeito de cômputo dos gastos mínimos com saúde (arts. 2º a 4º). Consultar STF ADI 2.999, de 2008 (RJ).
[11] Consultar tese de doutorado de Gilson Carvalho. Obra impressa pelo autor: Financiamento Federal para a Saúde de 1988 a 2001. Publicação do autor, São Paulo, 2002. Biblioteca Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA). Páginas 76 a 96.
[12] “O setor saúde vinha se exaurindo e se desfinanciando a cada dia. A crise era detectada por todos. A evidência se fazia pelo número de leitos que iam sendo desativados, aos poucos, por total incapacidade de manutenção.” Gilson Carvalho, op. Cit.
[13] Ibidem. Pag. 108 a 121.
[14] Consultar obra de Gilson Carvalho já citada, pag. 149-150 que comenta a pretensa reforma, na qual seria inserida, no art. 196 da CR, que saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido, nos termos da lei, (...).
[15] PEC n. 256-A/95, com a previsão de trazer para a saúde de modo exclusivo, 5 bilhões/ano.
[16] Ibidem.
[17] www12.senado.leg.br – Senadonotícias.
[18] Funcia, Francisco R. Sistema Único de Saúde - 30 anos: Do Subfinanciamento Crônico para o Processo de Desfinanciamento Decorrente da Emenda Constitucional 95/2016. In: ANFIP – Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. 30 anos da Seguridade Social - Avanços e Retrocessos. Brasília: ANFIP, 2018.
[19] A EC 95 de 2016, acabou por revogar o escalonamento da EC 86.
[20] www.conasems.org.br
[21] Funcia, Francisco R. Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos. Ciên Saude Colet 2019; 24(12):4405-4414
[22] Ocke-Reis CO. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Ciên Saude Colet 2018; 23(6):2035-2042.
[23] Vieira, Fabíola S. e Benevides, Rodrigo P.S. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Nota Técnica -Número 28, Disoc, IPEA, 2016.
[24] Funcia, Francisco R. e Ocké-Reis, Carlos O. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: Rossi, Pedro; Dweck, Esther; Oliveira, Ana L.M. Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
[25] Conforme Boletim Cofin 2020/05/13 (com dados até 12 de maio) do Conselho Nacional de Saúde, elaborado por Francisco R. Funcia, Carlos Ocké e Rodrigo Benevides publicado na Revista Domingueira da Saúde, edição nº19/2020, disponível em www.idisa.org.br
[26] Tivemos conhecimento em 20 de maio, quando este texto estava concluído, que foi autorizado (pelas Medidas Provisórias 967 e 969) o incremento de R$ 15,6 bilhões no orçamento do Ministério da Saúde para a ação do combate à pandemia. Esta informação não invalida a análise feita neste documento: apesar do novocoronavirus ter sido anunciado ao mundo neste ano no mês de janeiro e o ter ocorrido o primeiro caso confirmado no Brasil na segunda quinzena de fevereiro, somente no final da primeira semana de abril e da terceira semana de maio o Ministério da Saúde recebeu novos e poucos recursos para o enfrentamento do Covid-19.
O SUS necessita muito mais do que aplausos, gratidão e reconhecimento tardio: precisa de mais recursos para enfrentar o Covid-19 e para consolidar o sistema universal de saúde
Por Áquilas Mendes, Carlos Ocké, Francisco Funcia, Rodrigo Benevides
É de conhecimento geral, entre todos especialistas que acompanham o mundo contemporâneo, que estamos atravessando uma crise econômica de enorme magnitude, isto é, uma crise de longa duração do capitalismo, desde que foi despontado o crash de 2007-2008(1). No Brasil, o padrão declinante da economia já registrou 6 anos de estagnação. O Produto Interno Bruto (PIB) vem indicando essa situação, variando em termos reais: 0,4%, em 2014, -3,5%, em 2015, -3,3%, em 2016, 1,3%, em 2017, 1,3%, em 2018 e 1,1%, em 2019(2). Não resta dúvida de que as implicações desse quadro para a saúde pública, em termos de recursos, têm sido avassaladoras. Ainda, deve-se acrescer a histórica trajetória de subfinanciamento ao longo dos 32 anos de existência do SUS. Para tornar mais problemática essa situação, a forma do governo federal em lidar com esse quadro foi prejudicar a saúde ainda mais, aprovando a Emenda Constitucional (EC) n.95, que estabeleceu um teto, desde 2017, que arrocha os gastos sociais por vinte anos, iniciando o também já conhecido processo de desfinanciamento da política de saúde com a retirada de recursos do SUS, agravando o quadro do subfinanciamento histórico.
Com a EC-95, o significado da perda de recursos para o SUS precisa ficar bem claro para todos. Entre 2018 a 2020, o SUS perdeu R$ 22,5 bilhões. Além disso, assiste-se o aumento do estoque de restos a pagar do Ministério da Saúde no correspondente a R$ 20,0 bilhões desde 2017(3).
Historicamente, as condições de financiamento do SUS indicam que não houve priorização por parte das gestões econômicas que passaram pelo governo federal, em particular considerando as alterações das regras constitucionais promovida pela Emenda n.86 e a aprovação desastrosa da Emenda n.95. Portanto, entender a crise sanitária que vivenciamos na totalidade da crise capitalista, exige que lutemos pela maior necessidade de recursos para o SUS, sendo uma máxima de todos os que se posicionam em defesa da vida.
Além disso, é com muita indignação que acompanhamos o descaso do governo federal em alocar recursos condizentes para o enfrentamento do coronavírus. Desde o seu início, até o momento (19 de maio de 2020), a alocação de novos recursos para o Ministério da Saúde foi insignificante, correspondendo a apenas R$ 13,3 bilhões (ou 10,6%) de acréscimo sobre o valor originalmente aprovado na Lei Orçamentária 2020 para as ações e serviços públicos de saúde (passando de R$ 125,1 bilhões para R$ 138,4 bilhões)(4). No momento da elaboração deste artigo, foram editadas duas novas medidas provisórias (nº 967 de 19/05 e nº 969 de 20/05) que totalizam mais R$ 15,5 bilhões.
Em outros termos, o Ministério da Saúde recebeu em quase 90 dias de pandemia R$ 13,3 bilhões de incremento orçamentário e, somente nos últimos dois dias, recebeu mais R$ 15,5 bilhões, exatamente no mesmo período em que o governo Bolsonaro aprofunda a negociação com o “centrão” para ter base de apoio parlamentar no Congresso Nacional e aproxima a equipe dirigente do Ministério da Saúde da base militar para buscar uma solução para a prescrição de cloroquina e flexibilização do distanciamento social (afinal, a resistência técnica e científica que havia para a adoção dessas medidas resultou na queda de dois ministros da saúde em plena pandemia).
Trata-se de um montante irrisório frente à posição que o Brasil ocupa no ranking de mortes pelo Covid-19. Oficialmente com mais de 20.000 óbitos registrados, o país apresenta o maior ritmo de crescimento das mortes, sendo mais de cinco vezes a média mundial (posição 21/05/2020)(5). O reduzido número de testes realizados no País e o enorme crescimento de óbitos por síndrome respiratória grave, ainda não confirmados para coronavírus, indica que essas estatísticas ainda estão subestimadas.
Passemos ao entendimento da forma como foram alocados os recursos para a pandemia. A primeira Medida Provisória (MP) n.924, de 13 de março, destinou R$ 4,84 bilhões oriundos de remanejamento interno do orçamento do MS e retirados das “subfunções” ‘Atenção Básica’ e da ‘Assistência Hospitalar e Ambulatorial’, como se o combate ao Covid-19 dispensasse o atendimento de outras necessidades de saúde da população programadas na Lei Orçamentária de 2020 (cujo projeto foi elaborado, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República antes do conhecimento dessa pandemia). Após esse remanejamento, houve outro que correspondeu a MP n.941 no valor de R$ 828 milhões. Assim, até 19 de maio, o valor total remanejado para essa ação de combate à pandemia totalizou R$ 5,7 bilhões. Dessa forma, os R$ 13,2 bilhões restantes foram definidos conforme a emissão de três Medidas Provisórias de créditos extraordinários no período seguinte: i) a Medida Provisória n. 940 de 2 de abril, correspondente a um incremento ao orçamento do MS de R$ 9,4 bilhões, o que representa 7,5% do total alocado para esse Ministério em 20203; ii) a Medida Provisória n. 941, também de 2 de abril, que destinou RS 1,2 bilhões; iii) a Medida Provisória n. 947 de 8 de abril, que correspondeu a R$ 2,6 bilhões. Como dissemos, recentemente, foram publicadas: a) a Medida Provisória n. 967 de 19 de maio, no valor de R$ 5,6 bilhões e; b) a Medida Provisória n. 969 de 20 de maio, no valor de R$ 10, bilhões.
É importante notar que do total dos R$ 18,9 bilhões (até 19 de maio) destinados ao enfrentamento do coronavirus, de acordo com o Boletim da Comissão de Orçamento e Finanças do Conselho Nacional de Saúde, segundo a posição de 19/05/2020, apenas R$ 10,4 bilhões foram empenhados e R$ 8,2 bilhões foram liquidados(4). É oportuno destacar que, desse montante liquidado, RS 3,0 bilhões (ou 36,3%) foram transferidos aos Estados, R$ 4,1 bilhões (ou 49,6%) aos Municípios e apenas R$ 0,7 bilhão (ou 8,8%) foram alocados em ações e serviços aplicados diretamente pelo MS (4).
É fundamental mantermos nossa indignação com esse baixo volume de recursos destinados ao SUS para o enfrentamento dessa grave crise sanitária, no contexto de uma crise econômica de longa duração, já comparada à crise que o capitalismo sofreu nos anos 1930(6). É necessário que a saúde das brasileiras e brasileiros seja tratada com todo o respeito que seres humanos merecem, digno de uma vida valorizada acima dos lucros, com a rejeição das políticas de austeridade fiscal adotadas desde 2015 e das políticas que caracterizam práticas genocidas adotadas atualmente pelo governo Bolsonaro.
Assim, entendemos ser urgente que o SUS conte com muito mais recursos tanto para enfrentar a pandemia agora e suas consequências nos próximos anos, como para romper com o processo histórico de subfinanciamento do SUS que restringe a capacidade de cumprir plenamente seus princípios e diretrizes constitucionais. Não se combate essa pandemia sem o fortalecimento do SUS, que por sua vez precisa de financiamento adequado hoje e sempre para cumprir o mandamento constitucional da saúde como “direito de todos e dever do Estado”.
Neste sentido, é urgente a defesa de algumas medidas emergenciais, como vários países estão adotando. No nosso caso, reivindicamos: (a) a revogação imediata da EC-95; (b) aplicação de recursos adicionais no SUS, que poderiam ser financiados com a venda de títulos públicos, emissão de moeda e/ou utilização de parte do superavit financeiro da Conta Única do Tesouro Nacional, criando um fundo público no valor mínimo de R$ 42,5 bilhões (soma dos R$ 22,5 bilhões da perda apurada nos exercícios de 2018, 2019 e 2020 em decorrência da mudança da regra do piso do SUS federal pela Emenda Constitucional 95/2016, com os R$ 20,0 bilhões do estoque de restos a pagar que se repete no início de cada ano a partir de 2018); (c) aprovação da Contribuição sobre Grandes Fortunas no parlamento, substituindo o dispositivo constitucional que criou o Imposto sobre Grandes Fortunas. Os recursos seriam repartidos entre União, estados e municípios e vinculados às áreas da seguridade social (sendo que a saúde ficaria com 50% do total arrecadado por esse tributo), ciência e tecnologia, saneamento básico e segurança alimentar(8) e finalmente (d) é fundamental destinar recursos para a importação de equipamentos de proteção individual (luvas, máscaras, etc.), insumos e kits para testagem, luvas, máscaras e respiradores e outros equipamentos, para garantir a proteção dos trabalhadores nos serviços de saúde, que estão na linha de frente do combate à pandemia. Em especial, dada sua relevância no processo de inovação tecnológica, deve-se fortalecer o papel da Fiocruz e dos laboratórios públicos para acelerar o desenvolvimento de kits para diagnósticos, bem como participar dos esforços da comunidade científica internacional na busca da vacina e de medicamentos para tratamento do coronavírus;
Todas essas medidas devem fazer parte de um plano estratégico para enfrentarmos a crise do coronavirus em um contexto de grave crise econômica. É hora de denunciarmos o descaso desse governo federal com o SUS. Somente com mais recursos, vamos enfrentar seriamente essa pandemia e evitarmos que outras atravessem o nosso caminho no futuro bem próximo. O SUS merece sim aplausos, gratidão e mais recursos.
Referências
1. ROBERTS, Michael. The long depression: how it happened, why it happened, and what happens next. Chicago: Haymarket Books, 2016
2. DEPE. Boletim - Depe. Grupo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Econômico e Política Econômica. Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política Departamento de Economia – PUCSP, ano V, número 25, dezembro de 2019.
3. FUNCIA, F. Bolsonaro não dá dinheiro à Saúde para combater o coronavírus. VioMundo.3 de abril de 2020. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/blogdasaude/francisco-funcia-ate-quando-o-governo-bolsonaro-vai-usar-a-tatica-da-retranca-para-financiar-o-combate-ao-coronavirus.html
4. COMISSÃO DE ORÇAMENTO E FINANÇAS. Conselho Nacional de Saúde. Boletim Cofin. 2020/05/20/1e2 A-B. (dados até 19.05). Elaboração de Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides; Carlos Ocké.
5. CALIL, Gilberto. Ritmo de crescimento das mortes no Brasil já é mais de cinco vezes superior à média mundial. 21 de maio de 2020. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2020/05/21/ritmo-de-crescimento-das-mortes-no-brasil-ja-e-mais-de-cinco-vezes-superior-a-media-mundial/
6. CARCHEDI, G; ROBERTS, M. World in Crisis: a Global Analysis of Marx's Law of Profitability. Chicago: Haymarket Books, 2018.
7. ANFIP. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da receita federal do Brasil. Análise da Seguridade Social em 2018. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da receita federal do Brasil. Brasília: Anfip, 2019.
8. MORETTI, B.; OCKE, C.; ARAGÃO, E.; FUNCIA, F.; BENEVIDES, R. Mudar a política econômica e fortalecer o SUS para evitar o caos. Carta Capital. 29/03/2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/mudar-a-politica-econo%CC%82mica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/
Áquilas Mendes, Professor Dr. Livre-Docente de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUCSP.
Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.
Francisco Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.
Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.