Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 22 - Junho 2022

Do Rol de serviços taxativo ao Rol necessário à proteção da saúde

Por Lenir Santos



Foto: Getty Images

O STJ decidiu dia 8 de junho de 2022, no julgamento de dois processos, que o rol de procedimentos e eventos, nos termos da Lei n° 9.656, de 1998, definidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é, regra geral, taxativo quando então, ao contratante de planos e seguro saúde somente cabe o acesso a serviços e eventos ali previstos, não podendo ir além. O Brasil desde 1966 - Decreto-lei n° 73 - regula o seguro-saúde para cobrir riscos na área da assistência médica e hospitalar, artigos 129 a 135. Após a Constituição de 1988, passou-se a discutir a possibilidade de se regular a comercialização de planos de saúde, o que ocorreu em 1998, com a Lei n° 9.656, alterada diversas vezes, sendo que, desde então, a judicialização tem sido crescente no privado, tanto quanto no SUS.

A lei criou o plano referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico ambulatorial e hospitalar, permitindo a contratação de modo segmentado, desde que respeitada a cobertura mínima. Criou ainda a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.
Entendemos que a discussão sobre rol taxativo ou exemplificativo está mal enquadrada no cenário jurídico sanitário. As legitimas preocupações dos usuários dos planos de saúde em relação ao rol de serviços precisa de um olhar mais aprofundado dada a evolução incessante de tecnologias em saúde, que além de onerosas, nem sempre se configuram como uma inovação benéfica e necessária.

Por outro lado, o rol exemplificativo seria continuar a deixar nas mãos do Judiciário a decisão sobre a sua extensão, deslocando para outro Poder a responsabilidade pela garantia de serviços.

Necessário que o rol se fundamente em parâmetros assistenciais e outros elementos que flexibilizem a sua rigidez, ao tempo em que se protege do excesso de tecnologias, à mercê do mercado que influencia profissionais de saúde e o cidadão a consumir saúde, gerando falsos desejos e necessidades. Que ninguém se engane quanto a isso.

É preciso pensar em balizas que garantam equilíbrio entre o necessário em saúde e o supérfluo, pois nem sempre as novas tecnologias são reais inovações benéficas à saude. A tecnologia continuará a avançar incessantemente e a incorporação precisa de mecanismos de controle que permitam separar o joio do trigo e não ser capturada pelo mercado consumidor de saúde a qualquer preço.

Importante lembrar que saúde é um direito fundamental do ser humano, cabendo ao Poder Público a sua regulamentação, fiscalização e controle, além da garantia de serviços à população. É dever do poder público regular essa atividade, seja ela pública ou privada, na forma do disposto no artigo 197 da Constituição. O objeto da proteção constitucional é a saúde das pessoas, independentemente de onde são cuidadas.

Daí a existência da Anvisa, a cumprir o desiderato constitucional de proteger a população de riscos à saúde mediante análises e registros de produtos, procedimentos, medicamentos, alimentos, bebidas, dentre outras, conforme determina o artigo 200 da Constituição. Ainda que a assistência à saúde seja livre à iniciativa privada, em se tratando de um direito fundamental, está inteiramente sujeita a regulamentação, fiscalização e controle público.

Se é papel do Poder Público regular, fiscalizar e controlar todas as ações e serviços de saúde, não importando se públicos ou privados (art. 197 da CF), seria oportuno pensar que, após a análise da Anvisa para registro e circulação no país de qualquer tecnologia em saúde, caberia, em nome do mesmo princípio da proteção à saúde da população, proceder-se ao exame da tecnologia registrada, por um órgão nacional, único, quanto ao seu cabimento no SUS e no rol dos planos privados, completando assim o círculo de proteção, o registro na Anvisa e o parecer sobre o cabimento da incorporação no SUS e no rol privado.

Bastaria aperfeiçoar o que já existe no país quanto à incorporação de tecnologia pelas suas insuficiências, como demonstram os números da judicialização. Um órgão nacional, autônomo, de incorporação de tecnologias em saúde que emitisse seu parecer logo após o registro da tecnologias pela Anvisa, poderia mitigar as insuficiências nas relações de ações e serviços e inibir a incorporação de tecnologias desnecessárias, criando-se uma racionalidade, sobriedade nas listagens que devem ser taxativas, mas suficientes, como ocorre na maioria dos países de saúde universalizada.

O rol de serviços não pode ser nem mitigado nem turbinado, e seu conteúdo deve corresponder às necessidades reais de saúde das pessoas. As ações judiciais devem voltar-se para combater erros, abusos, omissões públicas e privadas e não para incorporar tecnologias de modo individual. Esse órgão nacional e único, poderia ainda ter um papel revisor do rol para apontar se o mesmo, em comparação às tecnologias existentes e registradas no país, é suficiente para a garantia do direito à saúde, apontando divergências, discrepâncias, obsolescências, custo-benefício de uma tecnologia em relação a outra.

É preciso fortalecer o papel de um órgão nacional único e garantir-lhe autonomia, pondo fim a duplicação de atribuições, como a comissão da ANS e também o banco de pareceres técnico para apoio às decisões do Judiciário, de modo individualizado sobre incorporação. É preciso sair dessa armadilha de rol taxativo, exemplificativo e do deslocamento para o Judiciário de atribuição própria do Executivo.


Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.




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