Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 22 - Maio 2020

Índice

  1. Boletim Cofin 2020/05/28/1-2AeB-3-4AaD - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke
  2. O uso da hidroxicloroquina e cloroquina à luz do ordenamento jurídico - por Lenir Santos e Élida Graziane

Boletim Cofin 2020/05/28/1-2AeB-3-4AaD

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke





O uso da hidroxicloroquina e cloroquina à luz do ordenamento jurídico

Por Lenir Santos e Élida Graziane


As orientações terapêuticas para uso precoce no caso da Covid-19 chamam a atenção ao referir que “até o momento não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a Covid-19”

Instalou-se no país um intenso e exaustivo debate em torno do uso off label dos medicamentos hidroxicloroquina e cloroquina, para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e seus efeitos. Ao lado da discussão de seu uso terapêutico, há uma questão de ordem jurídica que não pode ser olvidada, ou seja, o desenho regulatório brasileiro para o uso, a comercialização nacional e a incorporação de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).

O país avançou muito nessa questão, com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), como pessoa jurídica responsável pela regulação de produtos, medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, bem como dos produtos de higiene, cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários, dentre outros.
Nenhum medicamento pode, no Brasil, circular comercialmente sem o devido registro da Anvisa, nos termos do art. 12 da Lei n. 6.360/1976 conjugado com o art. 7º, IX e o art. 8º, §1º, I da Lei 9.782/1999, a seguir transcritos:

Art. 12. Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”.
Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo:
[…] IX – conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação; […]

Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.

§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I – medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias; […]

No SUS, os medicamentos registrados pela Anvisa não são incorporados imediatamente. É preciso que haja pedido de incorporação de terceiros ou de ofício pelo próprio Ministério da Saúde (MS) à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec). A Lei n. 12.401/2011, que alterou a Lei n. 8.080/1990, estabeleceu fases de avaliação e competências decisórias em um devido processo administrativo para a garantia da assistência integral à saúde por meio, entre outras dimensões, da dispensação de medicamentos registrados e incorporados à política pública.

Em relação aos procedimentos para a incorporação de medicamentos no SUS, a Conitec, após estudos e análises, encaminha à Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE), relatório a respeito do medicamento analisado, cabendo a essa autoridade efetivar ou não a incorporação requerida por terceiros ou de ofício, nos termos dos arts. 15 a 28 do Decreto n. 7.646/2011.

O relatório da Conitec deve levar em consideração as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento e a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas. Se aprovada a inclusão do medicamento em uma listagem oficial, ele passa a integrar o conjunto de fármacos da assistência farmacêutica do SUS, com fornecimento gratuito e obrigatório nas unidades de saúde do SUS, em consonância com os regramentos específicos e os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas (PCDT).

Desse modo, cabe à Anvisa analisar e registrar medicamento para ser comercializado no país e compete à Conitec proceder ao exame técnico, científico e econômico de medicamento já registrado e em circulação nacional, bem como emitir parecer quanto à sua incorporação no sistema público à luz da Lei n. 8.080/1990 e do Decreto n. 7.646/2011.

Em razão de novas descobertas técnico-científicas, é possível que um medicamento registrado pela Anvisa seja usado para outras indicações terapêuticas que não as originais, o que se denomina de uso off label. Em tais circunstâncias, cabe ao interessado pleitear perante a Anvisa a aprovação para o novo uso, com a alteração da bula e direito à publicidade. Contudo, esse mesmo medicamento, antes de ocorrer aludida aprovação, pode ser utilizado pelo médico de forma diversa da prescrita na bula, sob sua responsabilidade exclusiva e em caráter de tratamento excepcional e individualizado a cada paciente.

A própria Agência mantém em seu site orientação intitulada “Como a Anvisa vê o uso off label de medicamentos”, com a indicação de que o médico é direta e pessoalmente responsável pela prescrição off label e, obviamente, também por eventuais erros e danos daí decorrentes. Nesse sentido, o médico deve prescrever o medicamento desde que fundado em evidências científicas.

O uso off label pode muitas vezes nem ser solicitado à Anvisa por já ter comprovação científica e ser usado em outros países, o que tende a afastar o interesse do laboratório em formalizar essa alteração no ordenamento sanitário brasileiro.

Em qualquer circunstância e na assistência à saúde privada, compete aos médicos a prescrição off label de medicamentos, sob sua exclusiva responsabilidade, assumindo as consequências do erro médico, caso ocorra. O mesmo não ocorre no setor público que precisa alterar o correspondente protocolo clínico e diretriz terapêutica na forma da lei, até porque vige a responsabilidade objetiva do Estado.

No âmbito do SUS, há um rigoroso e devido processo para que o medicamento seja registrado pela Anvisa, incorporado pela Conitec e incluído pelo MS nas listagens oficiais de dispensação nos termos da Lei 8.080/1990. Tal percurso deve se dar em consonância com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo a saúde (art. 25 do Decreto 7.646/2011). Para alteração dessas diretrizes, o Ministério da Saúde precisa estar lastreado pelo exame técnico da Conitec (art. 19-Q da Lei n. 8.080/1990) e, em sendo para uso off label, deve contar com a autorização da Anvisa.

Em breve síntese, temos que:
– Os medicamentos somente podem circular no país e serem prescritos se registrados na Anvisa;
– A sua dispensação deve observar o previsto na respectiva bula, conforme determina o registro;
– O uso off label pode ser assumido pelo médico, desde que haja evidências científicas, sob sua exclusiva responsabilidade, havendo orientação do Conselho Federal de Medicina (CFM) e também da Anvisa. (Orientação Anvisa, nota de rodapé 1, e do CFM 2/2016);
– O uso off label deve ser requerido pelo interessado, caso pretenda alteração na bula e realização de publicidade para o novo uso (RDC 98/2008, Anvisa);
– O medicamento registrado no país pode ser incorporado pelo SUS, mediante análise e parecer da Conitec (art. 19-Q, da Lei n. 8.080/1990);
– Cabe ao Ministério da Saúde, pela SCTIE, promover a sua incorporação no SUS, após relatório da Conitec;
– A dispensação deve seguir o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas (PDCT) e
– O uso off label pelo SUS deve se fazer acompanhar de alteração do PCDT (art. 25 do Decreto n. 7.646/2011), a cargo do MS, assessorado pela Conitec, conforme disposto no art. 19-Q da Lei 8.080/1990).

Nesse contexto, a Anvisa deve assegurar a segurança sanitária na cadeia de produção e consumo, o que pressupõe aderência às evidências científicas e às boas práticas de fabricação, com vistas à garantia da máxima proteção do paciente.

Por outro lado, o CFM deve cuidar da prática médica em todos os seus aspectos, como ética, orientação acerca da responsabilidade civil e penal, a atuação com prudência, perícia, zelo, conhecimento técnico-científico.
Ao MS cabe dispor sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde da população, reduzindo os riscos de agravo à saúde. É atribuição do SUS, do qual o MS é o seu dirigente nacional (em diálogo com as secretarias estaduais e municipais da saúde), definir quais os medicamentos serão incorporados, no bojo da política pública sanitária em todo o território brasileiro, sem retirar a competência estadual e municipal de ampliar o rol de medicamentos, às suas expensas e em acordo a seus regulamentos.

O uso off label no SUS [1]
O uso da hidroxicloquina e cloroquina no enfrentamento da Covid-19 tem sido palco de intensas polêmicas no Brasil e no mundo quanto às suas evidências científicas, bem como sobre em que fase da doença elas deveriam ser supostamente usadas. Ambas são prescritas, de modo original, para pacientes acometidos de doenças como lúpus, artrite, malária e seu registro no país destina-se a esses pacientes, razão pela qual deve a bula conter um conjunto de informações sobre a sua composição, cuidados de armazenamento, prazo de validade, contraindicação, eficácia, posologia, efeitos adversos etc.

Vale repisar que compete ao Ministério da Saúde a inclusão de medicamentos nas listas oficiais do SUS, mediante um devido processo administrativo em que se faz obrigatória prévia análise técnica da Conitec. Por consequência, o uso de qualquer fármaco fora do aprovado pela Anvisa (off label), requer rigorosas análises e estudos de evidências científicas e alteração do PCDT, documento orientador da dispensação pelos profissionais de saúde[2].

No caso da hidroxicloroquina e cloroquina para uso na Covid-19, temos os seguintes fatos ocorridos de março a maio de 2020:
– a Anvisa, em nota divulgada pela Assessoria de Comunicação em 31 de março de 2020, considerou o uso autorizado pelo MS em documento abaixo mencionado, como uso compassivo, ou seja, por compaixão, quando não há outras medidas terapêuticas. Ainda no tocante a ambos os medicamentos, a Anvisa considerou-os como de uso controlado, não podendo ser adquiridos sem receita de controle especial (RDC 351, alterada pela RDC 354 e a RDC 352 que impediu a sua exportação);
– o CFM emitiu o Parecer n. 4, de 2020, recomendando o uso off label dos medicamentos em casos leves, graves e por compaixão, sempre precedido do consentimento informado do paciente, que deve ser esclarecido de todos os seus efeitos, cabendo ao médico assumir a responsabilidade pela prescrição. O Conselho assumira que, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não comete infração ética o médico que prescrever aludidas medicações, nos termos do parecer da entidade;

O Ministério da Saúde, pela sua Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde emitiu, em março de 2020, a Nota Informativa n. 5/2020-DAF/SCTIE/MS, reconhecendo “a inexistência de terapias farmacológicas e imunobiológicos específicos para Covid-19”. Mas, em razão da existência de diversos estudos em andamento para avaliar a eficácia e a segurança dos medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina, admitiu a possibilidade de seu uso, sujeito a regras estritas ali expressas: a critério médico, como terapia adjuvante no tratamento das formas graves ou críticas de Covid-19, em pacientes hospitalizados, sem preterimento de outras medidas, e com monitoramento cardíaco específico.

Em 21 de maio de 2020, o Ministério da Saúde, pela sua Secretaria Executiva, editou a Nota Informativa n. 9/2020 (SE/GAB/SE/MS) contendo “Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”. Essa norma expande o uso desde os primeiros sinais e sintomas leves a moderados; bem como sintomas graves da doença, sem, contudo, fazer menção ao PCDT[3] e admite o uso compassivo em caráter genérico e amplo para uma coletividade indeterminada de pacientes, ao arrepio do art. 13 da RDC 38/2013 da Anvisa.

Orientações
O documento elaborado pelo Ministério da Saúde, assinada por todos os secretários da pasta, não se ampara em prévio relatório da Conitec, com as devidas análises sobre as evidências científicas, a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança dos medicamentos em seu uso off label.

Houve lesão ao devido processo administrativo previsto na Lei Orgânica do SUS, sobretudo na pretensão – direta ou indiretamente – de que fosse alterado o correspondente PCDT. Ressaltamos que a Lei n. 13.979/2020 não reviu, tampouco mitigou qualquer competência da Conitec em razão da pandemia, de modo que continuam a ser de sua alçada as análises sobre a incorporação, exclusão e alteração do uso terapêutico de medicamentos incorporados (Lei n. 8.080/1990 e o Decreto n. 7.646/2011).

As orientações terapêuticas para uso precoce no caso da Covid-19 chamam a atenção ao referir que “até o momento não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para a Covid-19”. Ora. exatamente por considerar a necessidade de reforçar que a auto prescrição dos medicamentos, pode resultar em prejuízos à saúde e/ou redução da oferta para pessoas com indicação precisa para o seu uso, é que a autoprescrição foi cerceada pela RDC 351 da Anvisa, ao definir que ambos os medicamentos têm seu uso controlado.

Outro aspecto é a incongruência entre, de um lado, a necessidade de condicionamento da prescrição individualizada ao prévio consentimento do paciente (que assumiria, privada e pretensamente, todos os riscos do tratamento experimental) e, de outro, o motivo alegado sobre a suposta necessidade de ampliar o acesso dos pacientes, para fins de publicação das orientações para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico de Covid-19. Não faz sentido ampliar o acesso a tratamento sob condição de acatamento facultativo pelo paciente, porque, se o tratamento fosse seguro e eficaz, de acordo com as regras gerais do SUS, o uso de qualquer fármaco incorporado deveria ser acessível de modo obrigatório para toda a população, mediante prescrição médica correspondente.

Nisso há uma inversão do fluxo de assunção de risco em desfavor dos usuários do SUS. O Ministério da Saúde – ao frustrar o devido processo de registro, incorporação e inclusão do medicamento – produziu uma regra geral inválida, com perniciosos efeitos de responsabilização fraudulentamente de alcance individual.

Aparentemente, a pretensão federal era rever o protocolo clínico dos aludidos medicamentos, sem obedecer, contudo, ao devido processo sanitário, o que ensejaria responsabilidade civil da União e dos médicos prescritores. Para conter tais riscos, o Ministério da Saúde tentou se eximir da responsabilidade por omissão e afronta às evidências científicas, como se fosse tão somente uma questão de escolha pessoal do paciente em diálogo com seu médico.

Chega a ser abusivo o fato de que o documento do consentimento informado descreva todos os efeitos colaterais, tais como redução dos glóbulos brancos, disfunção do fígado, disfunção cardíaca, arritmias e alterações visuais por danos na retina, mas exija que o paciente – ao aquiescer, por sua exclusiva conta e risco, com o tratamento – declare que entendeu que:

“não existe garantia de resultados positivos para a Covid-19 e que o medicamento proposto pode inclusive apresentar efeitos colaterais e o aceite do paciente de sua ciência de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina associada à azitromicina pode causar os efeitos colaterais descritos acima e outros menos graves ou menos frequentes, os quais podem levar à disfunção de órgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente e até ao óbito”.

Tal postura contraria o que determina a Lei n. 8.080/1990 quanto à segurança dos medicamentos incorporados para o paciente em razão de suas evidências científicas. Nenhum termo de consentimento genérico afasta o comando do art. 37, §6º da Constituição de 1988, segundo o qual sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direito decorrente de serviço público, cabe a correspondente responsabilidade objetiva estatal.

Some-se a isso o fato de que não houve aderência ao devido processo administrativo nas orientações sobre o uso off label da hidroxicloroquina e cloroquina de 21 de maio de 2020. Sem prévia análise da Conitec, não há que se falar em alteração do PCDT, na forma da Lei n. 8.080/1990, artigos 19-M e seguintes e do art. 25 do Decreto 7.646/2011.

Sem evidências científicas e sem respaldo do devido processo administrativo, o Ministério da Saúde exorbitou da sua competência legal ao editar orientações temerariamente abstratas para “ampliar o acesso dos pacientes a tratamento medicamentoso no âmbito do SUS” com a hidroxicloroquina e a cloroquina em face do diagnóstico de Covid-19.

Nesse sentido, a Nota Informativa n. 9/2020, assinada pelos sete secretários do Ministério da Saúde, não pode ser reconhecida como protocolo clínico e diretriz terapêutica quanto ao uso off label dos medicamentos em questão. O termo de consentimento a ser assinado pelo paciente não inverte o ônus da responsabilidade objetiva estatal, tampouco exime o médico da sua responsabilidade profissional por cada prescrição.

Afronta o ordenamento brasileiro a pretensão de o Ministério da Saúde dispor – temerária e genericamente – sobre orientações de tratamento medicamentoso, sem suficiente embasamento científico e fora das normas legais que regem a matéria[4].

Se ambos os medicamentos realmente fossem eficazes e merecessem ter seu uso ampliado, por que não seriam observados o devido processo administrativo e todas as precauções sanitárias? Devolver ao paciente o peso da escolha sobre o risco do tratamento para sua própria vida é inverter o ônus da responsabilidade estatal e profissional médica, mediante anulação do princípio da precaução que deve ser observado na proteção da saúde e da vida.

Preservar vidas no âmbito do SUS pressupõe necessariamente mitigação de riscos, com ampla obediência ao devido processo legal e às evidências científicas. Devem ser rechaçados quaisquer experimentalismos medicamentosos que não resistam à indagação sobre quem se responsabiliza objetivamente por eles.

Se já havia permissivo para o uso off label em caráter tópico e consciente da cloroquina e da hidroxicloroquina, nada justifica o atropelo das regras, do devido processo e das evidências científicas para uma resposta genérica tão temerária no enfrentamento da Covid-19 no nosso país.


Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.
Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela EBAPE-FGV, doutora em Direito pela UFMG e professora da EAESP-FGV.


[1] Revista Saúde Pública 2012;46(2):398-9 – Informes Técnicos Institucionais. Conitec. Uso off label: erro ou necessidade?
[2] Pode ainda o MS, nos termos do art. 29 do Decreto n. 7.646, de 2011, em caso de relevante interesse público, determinar a incorporação ou alteração pelo SUS de tecnologias em saúde, desde que respeitadas as regras definidas na Lei n 8.080, de 1990 quanto às evidências científicas, acurácia, eficácia, segurança.
[3] A Anvisa não se pronunciou sobre as Orientações, mas tão somente quanto a Nota informativa n. 5 da DAF/SCTIE para considerar como compassivo o uso ali previsto.
[4] Não se pode alegar que a Lei n. 13.979/2020, em seu art. 3º, III, letra “e”, validaria tal ato, tendo em vista tratar-se de autorização para tratamento “compulsório” ou seja, cuidado necessário para evitar o contágio público, danos à saúde coletiva, por estarmos em uma pandemia. Até porque o MS não pode impor tratamento que não tenha evidências científicas.


Texto publicado dia 28/05/2020 em www.diplomatique.org.br




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