Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 23 - Julho 2019

O FINANCIAMENTO ADEQUADO DO SUS CONSTITUCIONAL DEPENDE DA REVOGAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL 95/2016

Por Francisco R. Funcia


O objetivo desta nota é esclarecer de forma resumida porque a revogação da Emenda Constitucional 95/2016 é necessária para financiamento adequado do SUS que garanta os princípios constitucionais da saúde como “direito de todos e dever do Estado” e seu caráter de “relevância pública. Este tema foi muito debatido nas Oficinas Macrorregionais realizadas pelo Conselho Nacional de Saúde, por meio da sua Comissão de Orçamento e Financiamento, nos meses de março a junho de 2019 em diferentes cidades brasileiras.

Nesta nota, estão apresentados os principais pontos para o entendimento da EC 95/2016, que possibilitam compreender que suas regras “fazem mal saúde” e, também, porque “ferem de morte” o interesse público, e algumas propostas alternativas para sua revogação. Nessa perspectiva, a forma de apresentação será por meio de “perguntas e respostas resumidas”, que servirão de referência para o aprofundamento de cada ponto levantado em próximas notas a serem publicadas na Domingueira da Saúde.

1 – A EC 95/2016 foi decorrência da promulgação das Propostas de Emenda Constitucionais nº 341 e nº 55 apresentadas pelo governo Michel Temer (formulada pela equipe econômica chefiada pelo Ministro da Fazenda Henrique Meirelles) e tramitadas de junho a dezembro de 2016 respectivamente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Qual foi seu objetivo?

Resposta: O objetivo da EC 95/2016 foi apresentado na mensagem inicialmente encaminhada pelo governo federal ao Congresso Nacional – reduzir o déficit das contas públicas por meio de um ajuste de despesas baseado em: (i) teto de despesas primárias (ou seja, não houve teto para as despesas financeiras com juros e amortização da dívida, nem para os gastos tributários ou renúncias de receitas) e (ii) desvinculação dos pisos federais para as áreas de saúde e educação como percentuais da receita. Com isso, o governo fez uma opção clara de restabelecer o equilíbrio das contas públicas por meio da redução da despesa, sem levar em conta que as receitas pararam de crescer (e até tiveram queda real) nos anos recentes.

2 – Mas, se as despesas cresceram nos últimos anos, por que se crítica a EC 95/2016? Afinal, não era necessário adotar alguma medida para conter a despesa pública?

Resposta: Sim, era necessário adotar medidas para controlar a despesa pública, mas não é verdade que a única forma para esse fim seria por meio das regras estabelecidas pela EC 95/2016.

3 – Por que o teto de despesas primárias da EC 95/2016 é prejudicial ao interesse público e à saúde?

Resposta: O teto de despesas primárias manteve a disponibilidade financeira nos níveis dos pagamentos realizados em 2016 atualizados somente pela variação anual do IPCA/IBGE – isso significa prejuízo para o atendimento às necessidades da população que cresce anualmente em torno de 0,8% a 1,0%, ou seja, a despesa per capita cairá ano a ano e, com isso, menos recurso por habitante será alocado para o atendimento nas áreas de saúde, educação, saneamento, transportes, habitação, dentre outras. Considerando o conceito de saúde estabelecido pela Organização Mundial de Saúde contemplado na Constituição Federal do Brasil, a deterioração das condições de vida da população pela redução da oferta e qualidade dos serviços públicos prestados nas diferentes áreas sociais afetará negativamente as condições de saúde da população.

4 – Quais despesas públicas ficaram de fora da regra do teto da EC 95/2016
Resposta: O teto não atingiu:

a) as despesas financeiras com juros e amortização, que têm sido os responsáveis pelo desequilíbrio estrutural das contas públicas brasileiras e, contraditoriamente, os credores da dívida pública são beneficiados com o aumento da taxa de juros adotado pelo Banco Central como principal instrumento para controlar a inflação. Para se ter uma dimensão de grandeza, enquanto as despesas financeiras estão na casa de um trilhão de reais, os gastos com saúde federal estão na casa de pouco mais de cem bilhões reais – enquanto as despesas financeiras são destinadas para alguns poucos credores da dívida pública (que, estranhamente, não é permitido o acesso aos beneficiários dessa despesa pública), as despesas com saúde federal fazem parte de quase metade do financiamento das ações e serviços públicos de saúde para 100% da população brasileira (sim 100%, afinal, aqueles que dizem que não usam o SUS porque compram os serviços em clínicas e hospitais privados, esquecem que é o SUS que garante a vigilância epidemiológica e sanitária, entre outras ações em que o setor privado se beneficia direta ou indiretamente do SUS); e
b) os gastos tributários ou renúncia de receita, que tem crescido acima da inflação nos últimos anos – redução de tributos para famílias e empresas legalmente estabelecida para, em tese, beneficiar a população e a economia por meio do estímulo às atividades produtivas, comerciais, financeiras e de serviços diversos;

6) Além dessas críticas, quais foram as outras regras da EC 95/2016 que prejudicaram a saúde e o interesse público?

Resposta: Dois aspectos merecem destaque:
a) Houve mudanças das regras dos pisos da saúde e da educação, que deixarão de ser calculados com base em percentuais da receita a partir de 2018 – no caso da saúde, o piso federal corresponderá ao valor monetário de 15% da receita corrente líquida de 2017 atualizado pela variação anual do IPCA/IBGE a partir de 2018, o que representará uma redução estimada em 30% na alocação de recursos federais para o SUS no final da vigência da EC 95/2016 (em 2036), ou seja, uma perda de aplicação anual em torno de 36 a 40 bilhões de reais a preços de hoje a partir de 2036 (por exemplo, quase o dobro do que é gasto anualmente pelo Ministério da Saúde com a Atenção Básica, mais de dez vezes do valor gasto anual com o Programa Mais Médicos antes de ser desmontado pelo atual governo que assumiu em janeiro de 2019, etc.).
b) Além disso, a disponibilidade financeira para a saúde não segue a regra do piso, mas sim a regra do teto, ou seja, houve uma mudança de patamar dos restos a pagar acumulados de vários anos, que aumentaram em cerca de 50% em 2017 e 2018 em comparação a 2016 (passaram de cerca de 14 bilhões de reais para cerca de 20 bilhões de reais, representando mais de 16% das despesas empenhadas em cada ano). Empenhar despesa num ano e não pagar no mesmo ano significa dizer que o atendimento às necessidades da população foi adiado para os anos seguintes.

7) Então, se a EC 95/2016 apresenta tantos defeitos, diante da necessidade de restabelecer o controle das contas públicas, o que pode ser feito?

Resposta: Algumas propostas têm sido apresentadas, muitas delas pelo Conselho Nacional de Saúde, que podem ser consideradas de forma individualizada ou integrada:
a) Estabelecer um controle das despesas públicas baseado num percentual do Produto Interno Bruto (PIB), de modo que a variação da despesa esteja relacionada ao dinamismo da atividade econômica.
b) Estabelecer um controle de despesas públicas baseado num percentual da receita corrente, de modo que a variação da despesa esteja relacionada ao comportamento da arrecadação. É oportuno lembrar que a receita cresce quando o PIB cresce e, desta forma, esta proposta deve estar associada àquela apresentada no item “7.a”.
c) Estabelecer uma reforma tributária que desonere a produção e o consumo (que hoje representa 50% da carga tributária brasileira) e que onere patrimônio, renda e riqueza, de modo que a tributação esteja de acordo com a capacidade de pagamento do contribuinte. Nessa perspectiva, rever principalmente as alíquotas e faixas de rendimento do Imposto de Renda, de modo a criar faixas de rendimentos nos níveis superiores de renda com alíquotas mais elevadas e reduzir a tributação sobre as faixas de rendimentos mais baixos, bem como rever as isenções aos dividendos que hoje geram graves distorções na cobrança desse imposto. Ainda no campo da reforma tributária, aumentar a tributação sobre os produtos derivados do tabaco e das bebidas alcoólicas e açucaradas, bem como das motocicletas, que geram externalidades negativas que impactam os gastos em saúde, bem como aumentar a tributação sobre as heranças em substituição aos baixos valores cobrados no Imposto Transmissão Causa Mortis e Doação pelos Estados brasileiros.


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.





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