Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 23 - Julho 2021

Índice

  1. Desafios da Governança Pública - por Valéria Alpino Bigonha Salgado

Desafios da Governança Pública

Por Valéria Alpino Bigonha Salgado


Governança pública, arte de governar. Para o Banco Mundial, governança é a forma como o poder é exercido, na administração dos recursos sociais e econômicos de um país, com vistas ao desenvolvimento e à capacidade dos governos de planejar, formular e programar políticas e cumprir funções. É a forma de dirigir, de administrar a coisa pública.

O decreto 9.203, de 2017, do Governo Federal, define governança como o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle adotados para avaliar, direcionar e monitorar a gestão - – controle primário, frise-se – para a condução de políticas públicas e a prestação de serviços de interesse da sociedade.

Define, portanto, governança pública sob a ótica prioritária do controle em primeiro plano e não da direção: avaliar, direcionar e monitorar, diz o decreto. Direcionar não é, salvo melhor juízo, sinônimo de dirigir, de governar. Direcionar é um dos atributos da direção, da governança.

O mais importante do conceito, vem ao final da definição dada pelo decreto: governar é a arte de conduzir, de dirigir a máquina pública para implantar as políticas públicas, a serviço dos interesses da sociedade.

O extinto e saudoso programa Gespública do Governo Federal, nascido no início dos anos 90, no seio do Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade, como um de seus inúmeros subcomitês - e extinto sem honras, após quase trinta anos, pelo Governo Temer, em 2017 - conceituava governança, no esteio da definição do banco mundial, como o exercício de autoridade, controle, gerenciamento e poder de governo. Para o Gespública, governança é a maneira pela qual o poder é exercido no gerenciamento dos recursos econômicos, políticos e sociais para o desenvolvimento do país.

Conceito relacionado à capacidade de implementação das políticas públicas, em seus aspectos políticos, técnicos, financeiros e gerenciais. Para o Gespública, a função de governança devia estar orientada pelos paradigmas mundiais e contemporâneos da excelência da gestão, quais sejam:

• o pensamento sistêmico;
• o aprendizado, a melhoria e a inovação contínuas;
• a constância de propósitos;
• e o investimento nas lideranças, como elemento promotor da gestão;
• a orientação por processos e informações;
• o foco no cidadão e na geração de valor para o usuário final da ação pública;
• a visão de futuro;
• a promoção do comprometimento das pessoas, do desenvolvimento de parcerias e da gestão participativa.

Para o Gespública, investir em governança, passa, portanto, pela formação de líderes - de gestores públicos – capazes de compreender, fazer compreender e conduzir os demais agentes públicos em direção ao cumprimento do papel da sua organização dentro da macroestrutura de governo, dos compromissos institucionais assumidos. Líderes capazes de promover e garantir o exercício das funções e poderes atribuídos formalmente à organização, com o cuidado de não extrapolar limites, no exercício desses poderes e funções.

Passa pelo investimento sistemático na concepção e na implementação de métodos e práticas de gestão, de coordenação e supervisão, que garantam unidade de objetivos entre as áreas administrativas internas e as entidades descentralizadas; e assegurem a articulação e a ação institucional integrada.

Investir em governança é, também, dispor de um aparato de assessoramento jurídico forte, presente e ciente de sua função primordial de velar pela segurança jurídica das decisões do gestor público. Assessoramento jurídico que não se deixa resvalar no controle de mérito das decisões do gestor. Controle que cabe, privativamente, ao Legislativo e às outras formas de controle social.

Investir em governança é, ainda, adotar a gestão de riscos, como ferramenta do gestor para dirigir a máquina pública em direção ao alcance de resultados, de buscar caminhos seguros e evitar ou mitigar riscos indesejáveis. Uma ferramenta precipuamente do controle primário. Como uma bússola. Como um waze, dentro de um carro, que orienta o motorista sobre os melhores caminhos. Sem esquecer que, em última instância, é o motorista que está na direção. Ele é quem sabe o rumo que pretende adotar e o ponto final ao qual deseja chegar.

Não basta ter sistemas de navegação ultramodernos e eficientes se o motorista não souber dirigir. É necessário, assim, investir na capacidade do motorista de dirigir e de avaliar as informações que recebe dos sistemas de navegação.

Por isso, é preciso orientar o gestor público sobre como exercer a governança, especialmente no que se refere aos mecanismos de coordenação e supervisão que ele dispõe. E melhorar, inovar, refinar esses mecanismos de coordenação e supervisão. E, nesse sentido, estamos ainda estacionados em 1967. O que temos de mais estruturado sobre o exercício de coordenação e supervisão ministerial ou secretarial está regulamentado no Decreto Lei 200.

Não são raras as vezes que secretários e servidores de secretarias de saúde perguntam como exercer a coordenação e a supervisão das suas unidades administrativas internas e, especialmente, das descentralizadas como, por exemplo, as fundações estatais que vêm sendo criadas na área da saúde.

Qual a diferença do controle primário do gestor público sobre uma fundação estatal – entidade da administração indireta e uma organização social ou filantrópica com contrato de gestão, contrato ou convênio celebrado com a Secretaria? Como exercer a orientação, a coordenação e a supervisão previstas no art. 87 da nossa Constituição Federal?

Assim, sem nenhum demérito ao Decreto 9.203, porque é sempre um avanço quando se traz, à pauta política, a preocupação com o investimento em governança pública, considero que o desafio de ampliar a capacidade de governança das instituições públicas passa, primordialmente pelo investimento na formação de líderes, de gestores públicos e pela revisão, modernização e inovação nos nossos métodos de coordenação e supervisão ministerial ou secretarial.

É preciso formar, orientar e instrumentalizar o gestor para o exercício da governança. Buscar as melhores práticas de governança de governos estaduais e municipais, de outros países. Olhar as práticas de governança corporativa das empresas. Orientar os gestores e profissionalizar a sua participação e de outros servidores nos conselhos de administração de suas entidades vinculadas, de organizações sociais, de serviços sociais autônomos. Revisar os instrumentos de coordenação da administração direta sobre seus próprios órgãos internos, suas entidades vinculadas e suas parcerias. Estruturar programas de formação de gestores e de lideranças públicas, que foquem e reforcem os valores da administração pública e da excelência da gestão.

Tudo isso antes, muito antes, de estabelecer controles para a governança, sob pena de aprofundar o estigma da criminalização do gestor público.

Em 2017, Temer extinguiu o Gespública, que investia na capacidade de gestão das organizações públicas. Em 2019, o atual Governo extinguiu o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e subjugou a pasta aos assuntos econômicos. É uma triste sinalização de prioridades.

O tema da governança pública tem que ser capitaneado, conduzido, no Poder Executivo, pelos órgãos responsáveis pela formulação de políticas de gestão pública. E não pela área econômica ou de controle. Se é, realmente, considerado importante dar direção à administração pública, é preciso que o tema entre, efetiva e declaradamente, na pauta política do governo.

Os desafios da governança pública passam, primordialmente, pelo refinamento e inovação nos métodos e práticas de orientação, coordenação e supervisão (controle primário) dos dirigentes dos órgãos e entidades públicas, dentre eles: (i) o investimento nas técnicas de contratualização de resultados dentro da burocracia pública e com seus parceiros externos; (ii) a definição de critérios técnicos objetivos de seleção de dirigentes; (iii) a implementação de uma política permanente de formação de lideranças públicas; (iv) a criação de canais de comunicação internos à burocracia e para as partes interessadas e a sociedade em geral, capazes de fazer circular as informações institucionais em tempo real e com confiabilidade; (v) a adoção de mecanismos eficazes de participação e controle social da atuação dos órgãos e entidades públicas; (vi) o investimento em sistemas de informação que subsidiem a tomada de decisão; e (vii) a gestão de riscos, como uma ferramenta de gestão, de orientação aos dirigentes em seus processos decisórios.

Ampliar a capacidade de governança pública demanda, ainda, a urgente revisão dos marcos legais e normativos obsoletos e, em alguns casos, antagônicos, que regem a ação pública e que têm submetido os atos dos gestores públicos à insegurança jurídica e ao ativismo indesejado e inadequado dos órgãos jurídicos e de controle.

Conforme preconizava o Gespública [1], a qualidade da governança está relacionada à capacidade dos dirigentes públicos de atuarem de forma coesa e orientada para o alcance dos objetivos institucionais, de envolver e motivar os demais agentes públicos e direcionar o órgão ou a entidade ao cumprimento de suas finalidades legais – dentro do seu papel de promover a compreensão interna e externa sobre as responsabilidades institucionais dentro da macroestrutura de Governo; e garantir que a organização atue na estrita observância de suas competências, respeitando os limites dessas competências, observadas as macro-orientações e prioridades de Governo.


[1] Brasil. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Gestão Pública. Programa Gespública, Modelo de Excelência do Sistema de Gestão Pública, Brasília; MP, SEGEP, 2013. Versão 1/2013, disponível em https://b43c612d-05f3-4d26-9938-d249ebc0609a.filesusr.com/ugd/5ec538_305c6a1d302241dab5027ad72a05a253.pdf.


Valéria Salgado é diretora do IDISA, docente do Curso de Especialização em Direito Sanitário - IDISA, palestrante; autora de várias publicações no campo da gestão pública, e consultora junto a órgãos e entidades públicos federais, estaduais, municipais e organismos internacionais;




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