Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 24 - Julho 2019

“ROTEIRO DE TREM FANTASMA – CADA CURVA UM SUSTO”: BREVE NOTA SOBRE A 2ª SEMANA DE JULHO QUE TERMINA COM NOVOS EFEITOS NEGATIVOS PARA O SUS

Por Francisco R. Funcia


Introdução
A segunda semana de julho/2019 termina com dois fatos preocupantes e impactantes negativamente para o Sistema Único de Saúde (SUS): a extinção da Câmara Técnica do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (CT-SIOPS) e a aprovação (em primeiro turno na Câmara dos Deputados) da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 06/2019 – que trouxe outro impacto negativo, a saber, a liberação de emendas parlamentares, inclusive vinculadas à área da saúde, para influenciar uma parte dos parlamentares na aprovação dessa PEC. O objetivo desta breve nota é refletir sobre os efeitos negativos destes fatos para o SUS e seu (“sub”e“des”)financiamento.

1. Extinção da CT-SIOPS
A extinção da CT-SIOPS ocorreu no contexto das recentes ações governamentais motivadas pela interpretação de que as instâncias colegiadas existentes, de qualquer natureza, estão “contaminadas” ideologicamente por “esquerdistas” e, por isso, primeiro devem ser “banidas” sem substituição e sem análise sobre o papel que tem desempenhado para o fortalecimento das políticas sociais em prol do interesse público.

A CT-SIOPS estava vinculada ao Ministério da Saúde e foi extinta em 28 de junho de 2019, com base no Decreto 9759, de 11 de abril de 2019, depois de mais de dezoito anos de contribuições para o fortalecimento do SUS – portanto, de caráter suprapartidário, considerando que, nesse período, o Brasil foi presidido por Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, bem como o Ministério da Saúde teve diferentes ministros e equipes dirigentes originados do meio político, das diferentes universidades e institutos de pesquisa, dos excelentes quadros técnicos de profissionais da carreira pública do próprio ministério e de outros órgãos governamentais, dentre outros profissionais qualificados que, majoritariamente, compreendiam que o SUS é uma política de Estado, e não de governo).

Convém destacar que este colegiado de caráter consultivo foi criado pela Portaria Conjunta 1163/2000 (Procuradoria Geral da República e pelo Ministério da Saúde) e integrado por representantes de outros ministérios (como é o caso da Secretaria do Tesouro Nacional), órgãos do Ministério da Saúde e instituições da sociedade civil. Em recente “Nota de Preocupação” (disponível em https://www.facebook.com/398633893672045/posts/1215302208671872?s=100001344175311&sfns=mo) a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) manifesta preocupação com a extinção da CT-SIOPS, considerando o papel desse colegiado para o desenvolvimento institucional-legal do SIOPS, como por exemplo, no processo de convergência para as novas normas de contabilidade pública, para as reflexões que resultaram na Lei Complementar 141/2012 e para o aprimoramento e consolidação do banco de dados sobre a gestão orçamentária e financeira do SUS nas três esferas de governo – que tem subsidiado estudos e pesquisas que permitiram tanto caracterizar o processo de subfinanciamento do SUS, como definir a alocação de recursos para a implementação das políticas de saúde de forma integrada.

Nos termos do Decreto citado, a CT-SIOPS somente será “re-criada” se o Ministério da Saúde editar outro ato para esse fim. Mas, não basta o mero ato de “re-criação”, é preciso também que esse ato restabeleça o colegiado com a mesma filosofia de “política de Estado” e de respeito ao interesse público, bem como que seja mantida a sua composição insterinstitucional, inclusive com integrantes da sociedade civil organizada, voltada para o fortalecimento da economia da saúde e da gestão do SUS sob a concepção de um direito de cidadania – baseada nos princípios constitucionais da universalidade, integralidade e participação da comunidade como norteadores do seu processo de financiamento.

2. Aprovação da PEC 06/2019 da Reforma da Previdência e o “desvio de finalidade” das Emendas Parlamentares para esse fim.
A aprovação (em primeiro turno na Câmara dos Deputados) da PEC 06/2019 foi o primeiro passo para mais uma contribuição negativa ao processo de (“sub”e”des”)financiamento do SUS, no contexto da Emenda Constitucional 95/2016 que “congelou” o piso federal do SUS nos níveis de 2017 e estabeleceu um teto financeiro para as despesas primárias do governo federal, mas que tem prejudicado diretamente o SUS.

Primeiramente, é preciso ficar claro que a crítica aqui feita não está relacionada à necessidade de se estabelecer um ajuste fiscal para enfrentar o déficit das contas públicas e à necessidade de se promover uma reforma previdenciária. O problema está na política adotada pelos governos Temer e Bolsonaro (respectivamente com Meirelles e Guedes no comando da área econômica) para esse fim – de forma autoritária e mediante a retirada de direitos de cidadania com a redução de recursos para o financiamento das políticas sociais, especialmente da seguridade social – saúde, assistência e previdência social, em desrespeito aos princípios constitucionais vigentes. Nunca é demais repetir o que determina o texto constitucional:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao poder público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - eqüidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados. (Constituição Federal do Brasil, 1988).

A EC 95/2016 está reduzindo o piso federal e a disponibilidade financeira para SUS (processo que terminará em 2036) sem resolver o desequilíbrio das contas públicas (como foi tratado na Domingueira da semana passada), ao mesmo tempo que a aprovação da PEC 06/2019, se confirmada no segundo turno na Câmara dos Deputados e nos dois turnos no Senado Federal, não resolverá o problema imediato do desequilíbrio das contas públicas (esse efeito será a médio prazo), mas atinge o direito dos trabalhadores e trabalhadoras, a maioria de baixa renda, no curto prazo (sem retirar privilégios de outros segmentos minoritários) e deteriora as condições de vida da população, cuja consequência direta será sobre os serviços públicos de saúde, ampliando o que está ocorrendo nos últimos três anos com o agravamento da recessão que gera desemprego e queda de renda.

Nesse contexto, é ainda mais grave que autoridades governamentais utilizem e confirmem a utilização de meios ilegais para influenciar uma parte dos parlamentares a votarem favoravelmente a PEC 06/2019, a saber, a liberação de emendas parlamentares – conforme notícias disponíveis em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/07/ministro-diz-que-liberacao-de-emendas-foi-para-aprovar-previdencia-e-causa-polemica.shtml, , https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/10/politica/1562725412_115974.html, https://oglobo.globo.com/economia/governo-agiliza-liberacao-de-25-bi-em-emendas-para-aprovar-reforma-da-previdencia-23793410, https://www.cartacapital.com.br/economia/vale-rasgar-a-constituicao-para-aprovar-a-reforma-da-previdencia/, dentre outros órgãos de imprensa.

É equivocado o argumento adotado por alguns para justificar esse procedimento – que a Constituição Federal estabelece que as emendas parlamentares tem execução orçamentária obrigatória e, por isso, estão sendo liberadas neste momento: trata-se de argumento que omite tanto o fato da Emenda Constitucional 86/2015 estabelecer as chamadas “emendas impositivas” somente para as emendas parlamentares individuais e sem essa finalidade de “influenciar votações no Congresso Nacional”, como a flagrante ilegalidade (portanto, crime) desse desvio de finalidade das Emendas Parlamentares – a Lei nº 13.707, de 14 de agosto de 2018, que “dispõe sobre as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária de 2019 e dá outras providências”, em seu artigo 142, estabelece que a “execução da Lei Orçamentária de 2019 e dos créditos adicionais obedecerá aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública federal, não podendo ser utilizada para influir na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional” (grifo nosso).

Mas, pior do que tudo isso, é que 50% do valor das emendas parlamentares individuais de execução obrigatória são vinculadas à área da saúde nos termos da EC 86/2015 (o que corresponde a cerca de R$ 5,1 bilhões, equivalente a 0,6% das Receitas Correntes Líquidas da União, estimadas para o ano de 2019 em aproximadamente R$ 845,5 bilhões conforme demonstrativo do 1º quadrimestre de 2019 publicado em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/demonstrativos-fiscais#RCL ), portanto, nos termos da Constituição Federal, da Lei 8080/90, da Lei 8142/90 e da Lei Complementar 141/2012, a alocação desses recursos deveria obedecer as necessidades de saúde da população com a devida aprovação do Conselho Nacional de Saúde, instância máxima de deliberação do SUS, o que efetivamente não ocorreu, representando mais uma afronta à Constituição Federal e à legislação vigente. Considerando a redução de recursos federais para a saúde estabelecida pela EC 95/2016, esse desvio de finalidade do uso das emendas parlamentares é ainda mais prejudicial para o atendimento das necessidades de saúde da população à luz das diretrizes para o estabelecimento de prioridades para 2019 aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde nos termos da Lei Complementar 141/2012.

Considerações Finais
Portanto, é fundamental que o conjunto de entidades e instituições que atuam em prol do SUS se mobilizem por meio de ações judiciais e junto ao Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal para tornar nula essa votação e aprovação em primeiro turno da PEC 06/2019 oriunda de um processo ilegal de liberação de emendas parlamentares para esse fim, bem como se apure as devidas responsabilidades dos agentes envolvidos com essas ilegalidades no âmbito do Poder Executivo e da Câmara dos Deputados.


Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.





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