Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 26 - Julho 2022

Anterioridade eleitoral violada pelo abuso de créditos extraordinários

Por Élida Graziane Pinto


Foto: Migalhas

O objetivo deste artigo é avaliar — pragmática e sistemicamente — os efeitos da adoção reiterada de regras excepcionais lastreadas na alegação, durante o último triênio, de hipóteses de emergência sobre o regime de anterioridade eleitoral, dado pelo artigo 16 da Constituição.

O que era imprevisível e urgente em 2020 não pode mais ser assim considerado nos anos subsequentes, se os pressupostos fáticos forem essencialmente os mesmos, dados os seus efeitos prolongados nos exercícios posteriores. Todavia, há três anos buscam-se créditos extraordinários mediante permissivos constitucionais que excetuam transitoriamente a incidência do teto dado pela Emenda 95, de 15 de dezembro de 2016.

Vale lembrar que, em 2020, "a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente de pandemia" justificou a adoção de regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações no âmbito da Emenda 106, de 7 de maio de 2020.

A imprudência dos que defenderam que a pandemia da Covid-19 iria terminar com os fogos de artifício do réveillon de 2021 deu causa a que a "Emenda do Orçamento de Guerra" fosse sucedida pelo arcabouço dito "residual" que a "Emenda Emergencial" trouxe. Vale lembrar que o artigo 3º da Emenda 109, de 15 de março de 2021, previu que, durante o aludido exercício financeiro, "a proposição legislativa com o propósito exclusivo de conceder auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19 fica[ria] dispensada da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa".

Agora, em meados do terceiro ano da tríade de regimes de exceção que estamos a analisar, é iminente a aprovação da PEC 1/2022 [1]. Tal proposta visa reconhecer "o estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes", para entre outras finalidades, expandir o Programa Auxílio Brasil, de que trata a Lei 14.284, de 29 de dezembro de 2021.

Em todas as hipóteses acima, há a invocação direta ou indireta das noções de imprevisibilidade e urgência em face de alegadas emergências fáticas que, em tese, justificariam o manejo de créditos extraordinários. Todavia, somente se pode reputar como plenamente incontroversa a necessidade de instrumentos excepcionais para o enfrentamento da crise sanitária de 2020.

Diferentemente do primeiro ano da pandemia, os exercícios de 2021 e 2022 tiveram em comum:

1) a possibilidade de planejar resposta estatal adequada, desde o envio dos projetos de lei de diretrizes orçamentárias e de orçamento anual, para lidar com os efeitos prolongados da crise decorrente da Covid-19;

2) a equivocada resistência em rever — de forma ampla — o "Novo Regime Fiscal" que fixou o teto de despesas primárias para a União e, por fim,

3) o uso de justificativas duvidosas para prorrogar o uso de créditos extraordinários em detrimento do devido processo legislativo orçamentário regular. Ora, era previsível [2] o risco de novas ondas de contaminação da Covid-19 desde a concepção do PLDO-2021 e do PLOA-2021, em meados de 2020. Tampouco a guerra na Ucrânia se presta a justificar a realidade atual de insegurança alimentar dos brasileiros mais vulneráveis e de escalada dos preços dos combustíveis, dada a acentuada oscilação causada pela política de paridade de preços de importação (PPI), adotada pela Petrobras desde 2017.

Eis o contexto que nos permite sustentar a hipótese de que há um padrão deliberado e recorrente de frustração do planejamento orçamentário para falsear o cabimento de créditos extraordinários tanto no artigo 3º da Emenda 109/2021, quanto no artigo 120 a ser acrescido ao ADCT pela PEC 1/2022, em reiteração abusiva e farsesca do arranjo dado pela Emenda 106/2020.

Aludida constitucionalização de regras contingentes de exceção precisa ser lida em sua série histórica, na medida em que tais permissivos excepcionais têm fundamentos e finalidades substancialmente semelhantes, sobretudo em relação à alegada pretensão de resguardar auxílio alimentar aos vulneráveis.

Em igual medida, as Emendas 113 e 114, ambas de dezembro de 2021, mantiveram a tendência de redesenhos fiscais de curto fôlego, para manter a narrativa de aparente respeito ao teto de despesas primárias pelo governo federal. Assim é que foram parcelados precatórios e revista a baliza temporal de correção monetária do teto, para que, durante o ano de 2022, supostamente fossem retirados plenamente os créditos extraordinários, que haviam sido ostensivamente manejados nos anos de 2020 e 2021.

É sintomático, aliás, o fato de que a Emenda 114/2021 tenha inserido o seguinte parágrafo único no artigo 6º da Constituição, para obrigar que houvesse política pública planejada e consistente de enfrentamento à insegurança alimentar no Brasil:

"Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária".

Para regulamentar o direito fundamental à renda básica familiar, foi promulgada a Lei 14.284/2021, que instituiu os Programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil. Todavia, foram vetados (conforme mensagem presidencial disponível aqui) tanto o fim da fila de espera no acesso ao Auxílio Brasil, quanto as metas de redução das taxas de pobreza e de extrema pobreza, sob falseados argumentos de intransponível restrição fiscal.

Caso não tivessem sido vetados o caput do artigo 21 e o artigo 42 da Lei 14.284/2021, certamente não seria necessário invocar, pela terceira vez, regime excepcional de despesa para pagamento do auxílio alimentar aos vulneráveis. A propósito, cabe indagar acerca do que mudou de 29 de dezembro de 2021 para agora, 12 de julho de 2022, em relação ao auxílio alimentar aos vulneráveis, senão a iminência do calendário eleitoral? Os motivos determinantes alegados para o veto em 29 de dezembro de 2021 deixaram de subsistir apenas seis meses depois?

Tal sucessão estritamente factual e cronológica de normas e vetos explicita o quanto é insubsistente a terceira alegação sucessiva de imprevisibilidade e urgência, sobretudo para fins de extensão do Programa Auxílio Brasil, a que se refere o artigo 3º, inciso I da PEC 1/2022. A pretensão de se manejar créditos extraordinários por três anos consecutivos e, em especial, o fato de que sua adoção neste terceiro ano ocorre praticamente às vésperas do calendário eleitoral merecem reflexão sistêmica em face do ordenamento constitucional brasileiro.

Na origem da Emenda 109/2021 e da PEC 1/2022, há imprudência e incúria do Executivo federal em planejar satisfatoriamente o atendimento às demandas nucleares de subsistência dos cidadãos, em meio aos efeitos prolongados da crise pandêmica em que nos encontramos desde 2020.

A bem da verdade, é provável que as políticas públicas ordinárias sejam deliberadamente formuladas em patamar aquém do necessário, para que caiba posterior invocação de regimes excepcionais, em soluções de afogadilho que potencializam seus respectivos ganhos de curto prazo eleitoral. Nesse sentido, estaria em curso uma "emergência fabricada", ao custo da fome de cerca de 33 milhões de brasileiros.

Em face de tal retomada panorâmica dos fatos é possível passar ao esforço de resposta da indagação nuclear que justifica este texto, qual seja: estaria afastada a garantia de anterioridade eleitoral, inscrita no artigo 16 da Constituição, para acomodar, pelo terceiro ano consecutivo, créditos extraordinários, os quais, nos anos de 2021 e 2022, decorrem de emergências fabricadas e omissão quanto ao dever de planejamento orçamentário?

Se uma lei ordinária fosse aprovada revogando o §10 do artigo 73 da Lei 9.504, de 12 de novembro de 1997, certamente todos os órgãos de controle interpretariam tal alteração legislativa como francamente abusiva a qualquer tempo. Mas e se o esvaziamento da vedação de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios ocorrer de forma fraudulenta, via proposta de emenda à Constituição, em pleno ano de eleições nacionais? Qual seria o alcance da proteção à paridade de armas e à lisura das eleições em face de uma alteração tão francamente discriminatória?

O sentido dado pelo artigo 16 da Constituição parece-nos claro e deve servir de baliza interpretativa para o regime fixado pela PEC 1/2022: "Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".

Precisamos reconhecer que a situação de emergência da PEC 1/2022 altera as eleições deste ano, com violação à exigência constitucional de anterioridade, na medida em que, abrupta e desarrazoadamente, afasta a vedação à distribuição gratuita de bens, valores e benefícios que ocorrer em caráter inovador ou ampliativo. Ao converter, tergiversadora e abusivamente, proibição em permissão a menos de três meses das eleições, aludida PEC afeta o escrutínio popular.

O artigo 16 da Constituição prevê a regra da anualidade eleitoral como salvaguarda para a lisura dos pleitos. Não é regra de menor importância. É uma garantia salutar para o exercício da cidadania ativa, consubstanciada no voto direto, secreto, universal e periódico (artigo 60, §4°, I, da Constituição). Evita condutas de triste recorrência no Brasil, como a compra de votos, facilitada pela miséria e desigualdade que fragilizam a condição de vida dos brasileiros pobres. No entanto, admitir que, por mágica, aceite-se medida que subverta a proibição do §10 do artigo 73 da Lei 9.504/1997 em pleno ano da eleição, apenas porque se está utilizando de emenda constitucional para fraudar a própria Constituição e corromper a condições de exercício do voto livre, é cristalizar um meio de burla aos direitos políticos e suas garantias. É aceitar que um poder constituído pela própria Constituição (o reformador) seja utilizado para a sua própria destruição, tornando os direitos dúcteis, submetendo permanentemente os cidadãos à incerteza da excepcionalidade e às contingências políticas.

A despeito da inegável e profunda insegurança alimentar que assola milhões de brasileiros, é preciso impugnar o fato de que, ao pretender regime jurídico de exceção lastreado em suposta emergência pela terceira vez consecutiva, o governo federal está agindo em venire contra factum proprium. Eis uma evidente incoerência de quem, poucos meses antes, vetou a regra que permitiria zerar a fila de acesso ao Programa Auxílio Brasil. Ainda que a demanda por medidas de proteção social não possa ser ignorada, o que está em causa, no entanto, é como atendê-la sem tornar a suposta ajuda uma máquina de distribuição de recursos com propósitos eminentemente eleitorais, verdadeiro peso em uma das bandejas da balança política.

Nesse contexto, o artigo 120 do ADCT trazido pela PEC 1/2022, quando contrastado com o artigo 3º da Emenda 109/2021 e com os vetos à Lei 14.284/2021, implica evidente risco de abuso de poder político e econômico pelo mandatário que concorre à reeleição. Como a PEC 1/2022 não adotou o mesmo cuidado do artigo 2º da Emenda 107/2020, reputamos cabível o manejo da hipótese prevista no artigo 14, §10 da Constituição para conter tal distorção, assim como da investigação judicial eleitoral prevista no artigo 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990.

Em suma, são mutuamente excludentes, de um lado, a escolha por distribuir bens, valores e benefícios gratuitamente de forma inovadora em pleno ano de eleições, por força de emergência fabricada e, de outro lado, a candidatura à reeleição. Quem quer que o faça, mesmo com um controverso permissivo fiscal excepcional, arca com o risco de suportar o plenamente justificável questionamento judicial do seu abuso de poder político e econômico, na forma das ações de investigação judicial eleitoral e de impugnação do mandato eletivo (respectivamente, AIJE e AIME).

Em face da PEC 1/2022 é preciso contrapor a regra constitucional de garantia de anterioridade, notadamente em relação ao elenco de condutas vedadas em pleno ano das eleições. A reiteração de créditos extraordinários desde 2020 tende a tornar seu uso controverso e abusivo não só em 2021, mas primordialmente em 2022, em rota de fraude semântica ao conceito de imprevisibilidade e urgência demandados pelo §3º do artigo 167 da CF/1988.

Os vetos ao fim da fila de espera do Auxílio Brasil e às metas de redução das taxas de pobreza e de extrema pobreza atestam a insubsistência dos motivos alegados na justificação da PEC 1/2022, para fins de cumprimento do parágrafo único do artigo 6º da CF/1988, o qual, é oportuno reiterar, foi recentemente inserido no texto constitucional pela Emenda 114/2021.

Acatar tal situação de emergência fabricada para fins de afastamento das restrições eleitorais, na prática, significa admitir alteração da legislação eleitoral com violação ao princípio da anterioridade, gerando incontornável e abusiva disparidade de armas.

Para evitar que sejam esvaziadas estruturalmente as condições de competição justa no processo eleitoral, é preciso afirmar a impossibilidade de quem concorrer à reeleição se beneficiar de distribuição gratuita de bens, valores e benefícios criados ou expandidos no próprio ano das eleições, se a situação de emergência — ainda que parcial e indiretamente — decorrer das suas ações e omissões ao longo de todo o seu mandato eletivo.

Independentemente de ser aprovada por emenda constitucional, a situação de emergência não pode aviltar o princípio democrático e a paridade de armas durante as eleições, sob pena de quem deu causa à emergência fabricada se locupletar da própria torpeza. A segurança alimentar dos mais vulneráveis é direito fundamental que não pode ser fiscalmente condicionado para ser mais eficazmente manipulado às vésperas do calendário eleitoral.


Élida Graziane Pinto é professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.


Fonte: Revista Consultor Jurídico, 12 de julho de 2022, 8h04




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