Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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ISSN 2525-8583



Domingueira nº 27 - Julho 2024

OMS decepciona e apresenta avanços tímidos na reforma do RSI

Por Fernando Aith


Resolução que altera partes do Regulamento Sanitário Internacional não responde adequadamente aos desafios do século 21

Em sua 77ª Assembleia Geral, a Organização Mundial da Saúde (OMS) debateu aspectos importantes relacionados a um dos temas que mais afligem o campo da saúde pública global: a preparação e resposta da OMS e dos países às futuras pandemias. Na agenda preliminar estavam a reforma do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) e a aprovação de um acordo específico para o enfrentamento de pandemias.

As justificativas para que a Assembleia Geral da OMS deliberasse e encontrasse soluções eficazes estavam bem resumidas no Relatório sobre o trabalho da entidade no que concerne às emergências em saúde pública, apresentado pelo diretor-geral da OMS.

Sintético e objetivo, o relatório intitulado “Emergências em Saúde Pública: Preparo e Resposta” apresentou um resumo da atuação da OMS nas mais relevantes emergências de saúde pública de interesse internacional que exigiram uma resposta da entidade em 2023, bem como das tendências e desafios globais e da OMS de curto e médio prazos no que diz respeito às emergências internacionais de saúde pública.

OMS e emergências em saúde pública em 2023

De acordo com o relatório, em 2023 a OMS respondeu a um total de 72 emergências de saúde pública, incluindo 19 emergências classificadas ao mais alto nível, Grau 3. Elas ocorreram ao redor do mundo, com destaque para as de Afeganistão, República Democrática do Congo, Etiópia, Haiti, Somália, Sudão e Ucrânia, onde foram ativados os protocolos de resposta das Nações Unidas, considerado o mais alto nível de apoio da ONU.

Ao longo de 2023 foram enfrentadas, no total, 19 emergências de Grau 3, isso para o período de apenas um ano. Dentre essas emergências, o diretor-geral da OMS destacou nomeadamente: o terremoto na República Árabe Síria e na Turquia; a crise humanitária no Haiti; a escalada das hostilidades no Sudão; a crise humanitária na República Democrática do Congo; a escalada das hostilidades no território palestino ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, e Israel; e o surto multirregional de dengue.

O relatório informava ainda que, no ano de 2023, a OMS desenvolveu planos operacionais e de resposta estratégica com as autoridades nacionais de saúde e parceiros para todas as emergências classificadas.

A OMS apoiou as autoridades nacionais para: aumentar a qualidade e a cobertura dos serviços de saúde; reforçar os cuidados primários, secundários e hospitalares através da implantação de equipes móveis e do reforço das instalações de saúde; melhorar a vigilância da saúde pública e os sistemas de alerta precoce, bem como outros sistemas de informação sanitária; realizar campanhas de vacinação; distribuir medicamentos e insumos; e treinar profissionais de saúde.

As ações da entidade encontraram limitações importantes, com destaque para: os obstáculos encontrados para viabilizar o acesso humanitário, que ficou restrito em muitos territórios; o fraco financiamento dos planos de resposta humanitária em escala global e também das ações protagonizadas pelos parceiros locais.

Tendências globais

De acordo com o relatório apresentado, registrou-se um aumento global acentuado nas necessidades de saúde humanitária, impulsionado por fatores agravantes sobrepostos, incluindo a aceleração das mudanças climáticas, o aumento dos conflitos e da insegurança, o aumento da insegurança alimentar, o enfraquecimento dos sistemas de saúde na sequência da pandemia da Covid-19, e novos surtos de doenças infecciosas.

Essas tendências refletem-se na natureza das 19 emergências de Grau 3 às quais a OMS respondeu em 2023, das quais todas, exceto três, eram principalmente crises humanitárias complexas precipitadas por conflitos, alterações climáticas ou catástrofes naturais. O relatório destacou, ainda, o fato de que as emergências multirregionais de cólera e dengue eram, ao final de 2023, as únicas emergências agudas de Grau 3 causadas principalmente por doenças infecciosas.

Desafios

O cenário apresentado demonstra que a OMS deverá responder a emergências de saúde pública cada vez mais frequentes, mais complexas e mais duradouras do que em qualquer momento da sua história. As emergências sanitárias têm múltiplas etiologias e manifestações complexas, com riscos e vulnerabilidades em evolução.

Os surtos de cólera na República Democrática do Congo, no Haiti e na Somália mostraram como as emergências complexas e prolongadas, caracterizadas por deslocamentos relacionados com conflitos e violência, graves impactos climáticos e insegurança alimentar, dão frequentemente origem a novas crises agudas.

Ainda, de acordo com o relatório, os dados preliminares dos Estados-Membros mostram um aumento significativo na incidência da cólera em todo o mundo. Os números apontam que a cólera expandiu-se para 30 países em 2023, contra 27 em 2022, com 9 países notificando mais de 10 mil casos cada.

Esta escalada aponta para o crescente alcance geográfico e impacto dos surtos de cólera, cuja resposta mundial é prejudicada por uma escassez crítica de vacinas orais. Apesar dos pedidos de 76 milhões de doses de 14 países, apenas 38 milhões estavam disponíveis entre janeiro de 2023 e janeiro de 2024. Assim, satisfazer as exigências de vacinação continua a ser uma preocupação primordial para esta e outras emergências.

Os surtos de sarampo constituem também uma grande preocupação da OMS, especialmente entre as crianças com menos de cinco anos de idade. Entre 1º de janeiro e 30 de setembro de 2023, foram notificados cerca de 311 casos de sarampo e 5.800 mortes na República Democrática do Congo. O Brasil vem flertando perigosamente com a volta do sarampo no território nacional, pelo que o relatório se mostra ainda mais preocupante.

Outra grande preocupação trazida pelo diretor-geral da OMS em seu relatório refere-se ao número de países que denunciam aumento dos ataques às equipes de saúde.

Em 2023, foram notificados 1.486 ataques em 19 países/territórios, que provocaram 745 mortes e 1.239 lesões de profissionais de saúde e pacientes. O Sudão relatou o maior número de mortes (34) desde 2018; e o território palestino ocupado registrou o maior número de mortos (620) e feridos (964) desde 2018. O uso de armas pesadas foi o tipo de ataque mais comum contra as equipes de saúde que atuam em situações de emergência de saúde pública, tendo sido relatados 574 incidentes. Também foram notificados ataques frequentes relacionados à obstrução ao acesso aos serviços de saúde (572 incidentes) e o uso de armas individuais (344 incidentes).

Panorama

O relatório destaca, ao final, que as tendências atuais não são sustentáveis caso não haja preparação e resposta adequadas. O aumento acentuado das necessidades humanitárias em 2023 refletiu um cenário global de fatores de risco e ameaças que se intensificam e se reforçam mutuamente.

Estes fatores de risco ocorrem num contexto de vulnerabilidades crescentes e profundas, impulsionadas por múltiplos choques globais e regionais. O aumento exponencial das vulnerabilidades e das pessoas necessitadas está associado à diminuição do financiamento para operações humanitárias. O diretor-geral destacou em seu relato que, no final do biênio 2022-2023, o segmento base do orçamento do Programa para Emergências Sanitárias da OMS tinha um déficit de financiamento de 33% – mais do dobro do déficit de financiamento básico da OMS de 14%.

O relatório conclui apontando para a necessidade de respostas da OMS em contextos humanitários, não só para satisfazer as necessidades urgentes de saúde a curto prazo, mas também para construir resiliência estratégica e reforçar as capacidades básicas na interface da segurança sanitária, dos cuidados de saúde primários e da promoção da saúde.

Uma abordagem mais estratégica e holística na resposta a todas as emergências de saúde ajudaria a quebrar o ciclo de pânico e negligência que muitas vezes deixa as comunidades mais frágeis e vulneráveis.

O documento conclui afirmando que é imperativo e urgente que o Programa da OMS para Emergências de Saúde seja dotado de autoridade suficiente e capacitado com todos os recursos financeiros e humanos necessários, para torná-lo adequado à sua finalidade. Com base nas tendências atuais, é provável que esta situação se agrave mais a curto e médio prazo sem uma alteração material no financiamento do programa e na criação de instrumentos de governança e gestão, no âmbito da OMS, que permitam uma atuação mais eficaz e protegida no âmbito dos Estados-Membros.

Resolução 77.17 da Assembleia Geral da OMS 2024

Embora a pandemia da Covid-19 e as fragilidades da OMS para responder às emergências internacionais de saúde pública tenham pautado grande parte dos debates da 77ª Assembleia Geral, a resposta mais estruturante no que diz respeito a preparar a entidade para os desafios de pandemias e emergências que se avizinham foi a aprovação da Resolução WHA 77.17, de 1º de junho de 2024.

Nesta resoluçao, a OMS teve como principais objetivos criar novos instrumentos para a preparação e para as respostas contra pandemias e emergências de saúde pública. Estes instrumentos foram criados por meio de alterações pontuais realizadas no Regulamento Sanitário Internacional de 2005.

As alterações aprovadas pela Resolução WHA 77.17 ficaram muito aquém das expectativas, já que a pandemia da Covid-19 deixou evidentes as fragilidades da OMS nas respostas globais necessárias, bem como as fragilidades dos instrumentos do RSI para que os Estados respondam e se preparem adequadamente para as futuras emergências, em cooperação direta com a OMS.

A não aprovação de um Acordo para Pandemias, como se tinha a expectativa, somada às tímidas alterações feitas no RSI de 2005, deixam evidente que a OMS não conseguiu aproveitar a janela de oportunidade da Covid-19 para promover as reformas necessárias aos desafios que se avizinham. Na próxima coluna serão abordados os principais incrementos incorporados ao RSI no que se refere ao preparo e respostas da OMS e dos países às futuras emergências de saúde pública.


Publicado na site Jota


Fernando Aith – Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP




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