Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 28 - Agosto 2021

Índice

  1. DISCRIMINAÇÃO NUNCA MAIS! - por Lenir Santos
  2. Desfinanciamento federal do SUS e o impacto nas finanças municipais - por Marilia Ortiz e Francisco R. Funcia

DISCRIMINAÇÃO NUNCA MAIS!

Por Lenir Santos


A evolução da civilização é o que se almeja na caminhada pela vida. Se se limitar a história a dois mil anos atrás, constatamos a existência progressiva da compreensão humanitária - ainda que em meio a guerras, holocaustos -, porque constata-se que o que move a humanidade é a busca de avanços ético, moral, cultural, político, sem retrocesso.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, um marco no reconhecimento dos valores humanos do século XX, se soma a muitas outras convenções internacionais que se incorporaram nas sociedades e elevaram a sua condição ético-moral e política. O respeito à diversidade, tão presente neste século, bem demonstra a centralidade do ser humano na conquista de direitos longamente postergados, ignorados, vilipendiados. Nunca mais a escravidão; nunca mais a tortura; nunca mais a segregação, a discriminação, o banimento das pessoas em razão de suas crenças religiosas, políticas, cor, raça, condição social, orientação sexual, gênero.

Contudo, ainda há pessoas que não evoluíram o suficiente para compreender as mudanças civilizadoras e apaziguadoras das dores do preconceito, da discriminação, da segregação, da exclusão social. Este século precisa ser marcado pela inclusão social, solidariedade, respeito mútuo, liberdades. Não se pode mais admitir retrocessos em direitos humanos, fundamentais à existência digna. Dignidade é primado do viver.
Estamos a dizer tudo isso para repudiar a fala discriminatória de quem deveria ser o guardião da educação para as liberdades humanas, contra a discriminação, do atual Ministro da Educação, senhor Milton Ribeiro que publicamente se referiu às pessoas com deficiência como as que atrapalham as demais quando no uso de seu direito inalienável à igualdade escolar.

Senhor Ministro, esse tempo já passou; a sociedade evoluiu a custa de muitas lutas, guerras, dor, morte para a conquista da igualdade, liberdade e fraternidade. Seu tempo não é deste século porque seu pensamento retrocede às conquistas das pessoas com deficiência de viverem as suas vidas de modo digno, igualitário e inclusivo. As pessoas com deficiência não atrapalham. Quem atrapalha as suas vidas são pessoas que pensam como o senhor e assim, além de ofender a sua dignidade, os excluem da vida em sociedade, do direito de ser plenamente em suas capacidades sem as métricas discriminatórias que não comportam as diferenças humanas, tão próprias da vida.
Sua fala excludente não vê a grandeza de uma pessoa simplesmente por ser ela um ser humano. Logo o senhor, um pastor cristão que deveria pregar e viver de modo exemplar a igualdade e a fraternidade.

Pessoas assim atrasam a evolução da sociedade, retardam o usufruir de suas conquistas, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, da qual o Brasil é signatário, o que lhe dá o status de norma constitucional; que ignora e descumpre a Lei Brasileira de Inclusão, a qual reafirma o direito das pessoas com deficiência de estarem na escola regular de ensino. São pessoas com esse pensamento que não deixam a educação brasileira evoluir para o bem comum.

A sociedade indignada espera que o senhor tenha a coragem e se demita da tão nobre cargo de Ministro da Educação por não estar à altura desse mister e por descumprir a Constituição, a Lei Brasileira de Inclusão, a Convenção da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, demonstrando ser alguém que ainda pensa que há pessoas com mais ou menos direitos.

Como defensores dos direitos das pessoas com deficiência, declaramos tolerância zero a qualquer retrocesso humano e social. Discriminação Nunca Mais!


Lenir Santos, Advogada, doutora em saude pública pela UNICAMP, fundadora e vice-presidente da Fundação Síndrome de Down e Diretora da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down.



Desfinanciamento federal do SUS e o impacto nas finanças municipais

Por Marilia Ortiz e Francisco R. Funcia


Neste momento de pandemia de Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido amplamente defendido e valorizado publicamente pela população. Mais do que garantir o direito ao atendimento gratuito à saúde e coordenar o programa nacional de imunização, estamos falando de uma política pública que é referência mundial. Trata-se do maior sistema de saúde do mundo com mais de 200 milhões de habitantes com acesso gratuito a diversos tratamentos e serviços de saúde. Mas, quanto custa esse sistema?

De acordo com dados do Siops (2019), o SUS custou 303,3 bilhões, sendo os percentuais de financiamento assim subdivididos: 42% no orçamento da união, 26% dos estados e 32% dos municípios. Estamos falando de 1,4 mil reais per capita Brasil por ano e 3,97 reais por dia. Em termos internacionais, o valor desse gasto público consolidado em saúde no Brasil é muito mais baixo do que outros países ou dos planos privados.[1]

A título de comparação, o Brasil aplicou somente 3,8% do PIB com a rede pública de saúde, sendo que sistemas universais como Canadá, Espanha e Reino Unido investiram, respectivamente, 7,7%, 6,5% e 7,9% do PIB em 2015 segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).[2] Não bastasse o subfinanciamento de um sistema do porte do SUS em perspectiva comparada, o professor Áquilas Mendes destaca ainda que o percentual do gasto do Ministério da Saúde em relação ao PIB está em torno de 1,7% do PIB desde 1995.[3]

Após 12 anos da promulgação da Constituição Federal, marcados pela instabilidade no processo de financiamento
do SUS[4], a Emenda Constitucional 29/2000 consagrou como direito pisos obrigatórios, sendo para o governo federal o valor empenhado no ano anterior mais variação nominal do PIB; para estados e municípios, respectivamente, 12% e 15% de suas receitas de impostos e transferências de impostos.

A revisão prevista para ocorrer no prazo de cinco anos foi regulamentada somente em 2012, pela Lei Complementar 141, que manteve essas regras de cálculo dos pisos, mas inovou ao definir o que são e o que não despesas com ações e serviços públicos de saúde para o cômputo desses pisos.

Mas, a partir de 2015, duas Emendas Constitucionais – a 86 de 2015 e a 95 de 2016 – alteraram a regra de cálculo do piso federal do SUS: a primeira estabelecendo 15% da Receita Corrente Líquida da União (além da inclusão para o cômputo desse piso das despesas correspondentes a 0,6% da receita corrente líquida das emendas parlamentares individuais e da perda da condição de aplicação adicional ao piso da partilha da receita dos royalties do pré-sal); e a segunda congelando o piso por 20 anos pelo valor dessa regra aplicada para o ano de 2017, essa última trazendo redução da aplicação federal em ações e serviços públicos de saúde, como constatado posteriormente.

O que ocorre na prática é que os estados e, principalmente, os municípios investem mais do que o mínimo. Conforme estudo de Funcia e Bresciani[5], os municípios, cujo piso é de 15% da receita, gastaram em média cerca de 24% em 2016 e 2017.

O impacto do aumento da participação dos entes subnacionais no financiamento da saúde foi sentido principalmente a partir da promulgação da Emenda Constitucional de teto dos gastos (EC 95/2016) que limitou os gastos públicos por 20 anos, ou seja, até 2036, ao valor de 2016 e, no caso da saúde e educação, aliou esse teto ao piso fixado no valor de 2017 corrigido apenas pela inflação.

Especialistas têm denominado esse efeito de “desfinanciamento da saúde”, considerando as seguintes análises:

  1. Houve queda no valor do piso per capita de R$ 565,00 para R$ 558,00 e no valor da despesa empenhada per
    capita de R$ 594,00 para R$ 583,00 no período 2017-2019, calculado a preços de 2019;[6]

  2. A regra geral do teto de despesas primárias, na prática, limita as possibilidades de aplicação em saúde acima
    do piso à queda de gastos em outras áreas, o que transforma o piso em teto;

  3. A exceção dessa condição ocorreu inicialmente em 2020, quando a abertura de créditos extraordinários para o enfrentamento da Covid-19 flexibilizou o cumprimento do teto geral das despesas primárias; porém, se forem deduzidas as despesas para enfrentamento da Covid-19 da aplicação em saúde, nem o valor do piso federal do SUS teria sido atingido em 2020, ou seja, ocorreu nova queda da aplicação federal per capita;[7]

  4. A exceção foi novamente mantida para 2021, com o agravamento da Covid-19, mas, para isso, o governo federal optou por considerar como “imprevistas” as despesas para ações de enfrentamento da Covid-19 e, desta forma, está alocando recursos orçamentários por meio de abertura de créditos extraordinários que não são computados no teto das despesas primárias.

Desde a promulgação da Emenda do “Teto dos Gastos” a participação da união no financiamento do SUS vem se reduzindo: em 2017 era de 43,2% e, em 2019, foi para 42%. Em 2017 os estados contribuíam com 25,7% e em 2019 aumentaram a participação em 0,8 pontos percentuais, fechando em 26,5%. Já os municípios passaram de 31,1% para 31,5% – um aumento de 0,4 pontos percentuais.[8]

Convém lembrar que do total da carga tributária do Brasil de 31,6% do PIB em 2020, 21% ficou com o Governo Federal, 8,5% com os estados e, apenas, 2,1% com os municípios (STN, 2021). Sendo assim, o “desfinanciamento” do SUS pelo Governo Federal tem enorme impacto sobre a saúde fiscal e a capacidade de ampliar investimentos em outras áreas de estados e, principalmente, municípios considerando sua baixa participação no bolo da arrecadação tributária. Portanto, considerando a necessidade de ampliação dos gastos públicos em saúde no Brasil para se aproximar da aplicação em outros países, caberia ao governo federal aumentar sua participação no financiamento do SUS.

Em 2020, com a deflagração da pandemia de Covid-19 e a consequente pressão por gastos de diversas ordens em decorrência de políticas de assistência à saúde e políticas sociais, a situação de desfinanciamento federal da saúde ficou ainda mais crítica. Foram editadas 40 medidas provisórias que disponibilizaram 673,5 bilhões em crédito extraordinários para o combate à pandemia, mas a saúde ficou com menos de 10% desse valor (R$ 63,7 bilhões, conforme Boletim Cofin/CNS 2020-12-31), dos quais R$ 21,6 bilhões destinados exclusivamente para vacina não foram utilizados em 2020 e transferidos (créditos orçamentários reabertos) em 2021.

Mesmo diante dessa participação do governo federal, os entes subnacionais tiveram que ampliar sobremaneira suas participações no financiamento de suas políticas de saúde, diante da lentidão e irregularidade das transferências do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde.[9]

O impacto dessa situação de desfinanciamento federal do SUS para os estados e municípios pode ser muito bem ilustrada com a redução de recursos transferidos para esses entes da Federação para o financiamento das ações e
serviços de saúde para o enfrentamento da Covid-19 no primeiro quadrimestre de 2021 em relação ao 3º quadrimestre de 2020 – respectivamente, menos 17% e menos 63%.[10]

A Lei Orçamentária Anual da União deste ano foi considerada por muitos analistas uma peça de ficção, uma vez que não incluiu nenhum centavo para as despesas necessárias para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, nem mesmo no Ministério da Saúde. Mesmo diante dessa negligência, a realidade se impõe para os entes municipais. Municípios recebem demandas de toda sorte de uma população penalizada pelos efeitos da pandemia e que sofre os efeitos do descaso e da falta de governabilidade necessária para o enfrentamento desta grave crise sanitária.

A CPI tem revelado detalhes da omissão na conduta do governo federal para administrar a crise. O desfinanciamento do SUS ao longo dos anos e a falta de priorização para viabilizar recursos para o SUS, especialmente aos estados e municípios nesse contexto de crise aguda, reforçam a negligência e o descaso com a manutenção do maior sistema público de saúde do mundo e o mais fundamental de todos os direitos: direito à vida.


Notas

[1] Ver: tabela comparativa em: https://www.assecor.org.br/index.php/download_file/4971/6981/
[2] Ver: https://www.who.int/data/gho/data/indicators
[3] Ver: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/SQy6jTcM9j4q6c4RRmwmbmh/?lang=pt
[4] Ver: HTTPS://BVSMS.SAUDE.GOV.BR/BVS/PUBLICACOES/SISTEMA_SAUDE_BRASIL_ORGANIZACAO_FINANCIAMENTO.PDF
[5] Ver: http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MjYwNzM=
[6] Ver: HTTPS://WWW2.CAMARA.LEG.BR/ATIVIDADE-LEGISLATIVA/COMISSOES/COMISSOESTEMPORARIAS/EXTERNAS/56A-LEGISLATURA/ENFRENTAMENTO-PANDEMIA-COVID-19/APRESENTACOES-EM-EVENTOS/FRANCISCOFUNCIA.PDF
[7] Ver: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-10-abril-2021
[8] Ver: HTTPS://WWW2.CAMARA.LEG.BR/ATIVIDADE-LEGISLATIVA/COMISSOES/COMISSOESTEMPORARIAS/EXTERNAS/56A-LEGISLATURA/ENFRENTAMENTO-PANDEMIA-COVID-19/APRESENTACOES-EM-EVENTOS/FRANCISCOFUNCIA.PDF
[9] Esse apontamento foi realizado pelos autores Francisco Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke em 33 edições do Boletim Cofin/CNS elaborados para a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde. Boletins disponíveis em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin
[10] Ver: http://www.susconecta.org.br/cns-considera-como-preocupante-orcamento-do-ministerio-da-saudeno-
primeiro-quadrimestre/


Referências
Funcia, Francisco R. Sistema Único de Saúde – 30 anos: Do Subfinanciamento Crônico para o Processo de Desfinanciamento Decorrente da Emenda Constitucional 95/2016. In: ANFIP – Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. 30 anos da Seguridade Social – Avanços e Retrocessos. Brasília: ANFIP, 2018.

Marques, Rosa; Piola, Sérgio; Roa, Alejandra. Sistema de Saúde no Brasil: organização e financiamento. Rio de
Janeiro: Abres; Brasília: Ministério da Saúde/Desid; Opas/OMS, 2016.


Marilia Ortiz, Gestora de Políticas Públicas (USP- EACH) e Mestre em Administração Pública e Governo (FGVEAESP)
e Secretária de Fazenda de Niterói.

Francisco Funcia, Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP), Professor dos Cursos de Economia e Medicina e Doutorando em Administração na USCS, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e Secretário de Finanças de Diadema.


Fonte: Artigo publicado no Estadão em 17 de agosto de 2021.




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