Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 28 - Setembro 2018

NOTAS PRELIMINARES PARA O DEBATE EM TORNO DA PROPOSTA DE RETIRADA DAS DESPESAS COM PESSOAL DA SAÚDE DO CÔMPUTO DO LIMITE ESTABELECIDO PARA ESSAS DESPESAS PELA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL PARA OS ENTES DA FEDERAÇÃO

Por Francisco R. Funcia


Introdução
Um tema muito importante para a gestão e o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) está relacionado à contratação de pessoal pelos Entes da Federação e aos respectivos limites para essas despesas estabelecidos pela Lei Complementar 101, de 04 de maio de 2000 (também conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal ou pela sigla LRF).

Considerando a importância dos trabalhadores das diferentes áreas técnicas da saúde no desenvolvimento das atividades finalísticas (atendimento direto aos usuários dos serviços públicos), bem como daqueles trabalhadores administrativos que atuam tanto no atendimento direto da população, quanto nas atividades internas (licitação, contratos, orçamento, etc.) nos órgãos públicos de saúde, a ampliação ou aprimoramento da oferta de serviços públicos de saúde para o cumprimento dos princípios constitucionais da universalidade e integralidade tem sido restringida sob o argumento da necessidade de cumprimento da LRF. Essa tem sido a justificativa apresentada pelos gestores para o processo de terceirização desses serviços por meio de contratações de Organizações Sociais de Saúde (OSS), sob a alegação de que tais despesas não fazem parte do cômputo do citado limite.

Desta forma, há uma corrente de especialistas em gestão e economia da saúde que defendem a exclusão das despesas com pessoal da saúde do cômputo desses limites da LRF, considerando o caráter intensivo da força de trabalho para a prestação das ações e serviços de saúde para a população e, portanto, a necessidade de garantir a realização de concursos e/ou preenchimento de vagas para servidores públicos para as diferentes unidades de atendimento à saúde da população nos municípios e estados.

Mas, para outros especialistas, essa exclusão não seria a solução para o problema apontado, muito pelo contrário, poderia trazer novas distorções no financiamento das demais despesas correntes e de capital, inclusive para o Sistema Único de Saúde.

Nessa perspectiva, o presente texto apresenta algumas referências tanto para o debate em torno das limitações das despesas de pessoal estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, como para as propostas de flexibilização dessa limitação para a área da saúde.

1 – Despesas de Pessoal: conceito e limites estabelecidos pela LRF
O artigo 18 da LRF estabelece o conceito de despesa total de pessoal:

“Somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência”.

Nesse mesmo artigo, o parágrafo 2º estabelece qual será a regra para a anualização dessas despesas com o objetivo de apurar o cumprimento do limite legal – “somando-se a realizada no mês em referência com as dos onze imediatamente anteriores, adotando-se o regime de competência”.

Porém, para o objetivo do presente texto, o parágrafo 1º é muito importante ao estabelecer, para o cômputo das despesas de pessoal, que “os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como ‘Outras Despesas de Pessoal’."

Sobre este tema, é bastante esclarecedora a recente norma da Secretaria do Tesouro Nacional , cujos trechos principais relacionados à terceirização estão transcritos a seguir:

“As despesas relativas à mão de obra, constantes dos contratos de terceirização, empregada em atividade-fim da instituição ou inerentes a categorias funcionais abrangidas pelo respectivo plano de cargos e salários do quadro de pessoal, serão classificadas no grupo de despesa 3 – Outras Despesas Correntes, elemento de despesa 34 – Outras Despesas de Pessoal decorrentes de Contratos de Terceirização. Essas despesas devem ser incluídas no cálculo da despesa com pessoal por força do §1º do art. 18 da LRF”.
(...)

“A LRF não faz referência a toda terceirização, mas apenas àquela que se relaciona à substituição de servidor ou de empregado público. Assim, não são consideradas no bojo das despesas com pessoal as terceirizações que se destinem à execução indireta de atividades que, simultaneamente:

a) sejam acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade (atividades-meio), na forma de regulamento, tais como: conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática – quando esta não for atividade-fim do órgão ou Entidade – copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações;

b) não sejam inerentes a categorias funcionais abrangidas por plano de cargos do quadro de pessoal do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário, ou seja, relativas a cargo ou categoria extintos, total ou parcialmente; e

c) não caracterizem relação direta de emprego como, por exemplo, estagiários”.
(...)

“Além da terceirização, que corresponde à transferência de um determinado serviço à outra empresa, existem também as despesas com pessoal decorrentes da contratação, de forma indireta, de serviços públicos relacionados à atividade fim do ente público, ou seja, por meio da contratação de cooperativas, de consórcios públicos, de organizações da sociedade civil, do serviço de empresas individuais ou de outras formas assemelhadas.

A LRF, ao estabelecer um limite para as despesas com pessoal, definiu que uma parcela das receitas do ente público deveria ser direcionada a outras ações e, para evitar que, com a terceirização dos serviços, essa parcela de receitas ficasse comprometida com pessoal, estabeleceu, no § 1º do artigo 18, que os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos devem ser contabilizados como "Outras Despesas de Pessoal".

Da mesma forma, a parcela do pagamento referente à remuneração do pessoal que exerce a atividade fim do ente público, efetuado em decorrência da contratação de forma indireta, deverá ser incluída no total apurado para verificação dos limites de gastos com pessoal.

Ressalta-se que, se os entes da federação comprometem os gastos com pessoal relacionados à prestação de serviços públicos num percentual acima do limite estabelecido pela LRF, seja de forma direta, mediante contratação de terceirizados ou outras formas de contratação indireta, esses entes terão sua capacidade financeira reduzida para alocar mais recursos em outras despesas. Além disso, se as contratações de forma indireta tiverem o objetivo de ampliar a margem de expansão da despesa com pessoal, poderá ocorrer o comprometimento do equilíbrio intertemporal das finanças públicas, o que poderá inviabilizar a prestação de serviço ao cidadão”.

Desta forma, o limite de pessoal da LRF não pode servir como argumento para o gestor optar pela contratação de OSS no lugar da realização de concurso público para a contratação de servidores, porque a contratação de OSS, no que se refere às despesas de pessoal, deverão ser computadas como “Outras Despesas de Pessoal” para aferir o cumprimento dos limites legais em cada Ente da Federação (considerando somente o Poder Executivo):

Outro aspecto a ser considerado é que esses limites estabelecidos pela LRF são para o conjunto do Poder Executivo (Administração Direta e Indireta), ou seja, não há obrigatoriedade legal de que cada área governamental cumpra esses mesmos limites. Em outros termos, a LRF considerou as especificidades dos serviços prestados à população pelas diferentes áreas governamentais, cabendo ao Chefe do Poder Executivo planejar as contratações de pessoal à luz das necessidades e do caráter intensivo da força de trabalho para a prestação dos serviços à população, como são os casos das ações e serviços públicos de saúde e de educação.

Por fim, um levantamento preliminar que realizamos sobre a situação dos Estados e Municípios que têm contratos com OSS para a prestação de serviços nas unidades de saúde apontou tanto a existência de situações em que as despesas de pessoal estão muito abaixo do limite estabelecido pela LRF, como o contrário, o que impede de considerar “ex-ante”, como regra geral, que a LRF é a responsável pela expansão da terceirização dos serviços públicos de saúde nos Estados e Municípios.

2 – As propostas de flexibilização dos limites de pessoal da LRF para a área da saúde
Na seção anterior, foi possível observar que a terceirização dos serviços de saúde não pode ser justificada como forma de não incorrer na ilegalidade da contratação direta por causa do limite da LRF, pois essa terceirização deve ser classificada como “Outras Despesas de Pessoal” para fins de aferição do cumprimento do limite legal dessa despesa.

Mas, considerando que, na prática, em flagrante desrespeito da legislação, alguns Tribunais de Contas excluem tais despesas dessa aferição do cumprimento do limite da LRF, alguns especialistas têm apresentado a proposta de retirada dessas despesas do cômputo do cumprimento do limite legal. Trata-se de proposta que precisa ser analisada com cautela, à luz das seguintes considerações:

  • a) Não há um padrão de gasto com pessoal da saúde, o que significa dizer que não há um percentual da saúde a ser deduzido do limite total do Poder Executivo como regra geral para o país. Desta forma, é muito provável que se adote arbitrariamente um percentual de redução a partir de uma média observada nos Estados e Municípios, o que poderá gerar: para uns, uma situação de criação de “margem” para ampliação das despesas de pessoal de outras áreas que não a da saúde; para alguns, a necessidade de redução dessas despesas por ficarem em situação de ilegalidade por essa nova regra; e, por fim, para outros, manutenção da situação existente sem essa flexibilização;

  • b) Para as duas primeiras situações descritas anteriormente, poderá ocorrer uma redução da capacidade de financiamento das outras despesas de custeio e capital, inclusive da área da saúde. Neste caso, o efeito final da retirada das despesas de pessoal do cômputo do limite geral da LRF seria negativo para o financiamento do SUS.
    Outra proposta de flexibilização da LRF que tem sido apresentada por especialistas é ampliar o prazo da regularização do limite das despesas de pessoal, cujo valor tenha sido ultrapassado exclusivamente por causa da necessidade de contratação de pessoal para a área de saúde: segundo o art. 23 da LRF, esse prazo é de dois quadrimestres. Assim sendo, a proposta seria ampliar esse prazo para nove quadrimestres, prazo suficiente para se adotar medidas com o objetivo de aumentar a receita corrente líquida e/ou reduzir a despesa com pessoal de outras áreas que não a da saúde.

Considerações Finais
O presente texto trouxe referências para o debate em torno da necessidade de flexibilização do limite da LRF para as despesas com pessoal da área de saúde. Inicialmente, ficou caracterizado que a terceirização de pessoal da saúde se enquadra no conceito de “Outras Despesas de Pessoal” para fins do cômputo do cumprimento do limite da LRF. Diante do descumprimento desse conceito por parte de alguns Tribunais de Contas, muitos gestores têm optado em contratar as OSS como meio de solucionar a necessidade de pessoal para a prestação dos serviços de saúde pela impossibilidade da contratação direta, para não desrespeitar o limite da LRF.

Porém, as OSS também foram contratadas em Estados e Municípios cujas despesas de pessoal estavam muito abaixo do limite legal, o que permite inferir a existência de outros fatores que determinam a terceirização dos serviços públicos de saúde. Mas, considerando a existência de casos dos Entes em que as despesas de pessoal estão muito próximas do limite legal, a proposta de flexibilização da LRF para excluir as despesas com saúde precisa ser analisada com cautela para não gerar efeito contrário e reduzir a capacidade de financiamento do SUS. A proposta mais adequada seria ampliar o prazo de regularização dessa despesa caso o Ente tenha ultrapassado o limite legal por causa exclusiva da necessidade de contratação de pessoal da saúde, para que seja possível adotar medidas para aumentar a receita corrente líquida e/ou reduzir a despesa de pessoal de outras áreas que não a da saúde.

¹A despesa pelo regime de competência citada na LRF significa despesa empenhada, conforme disciplina a Lei 4320/64
²SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Manual de Demonstrativos Fiscais Aplicado à União e aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Válido a partir do exercício financeiro de 2018. 8ª edição. Versão 18.09.2017. 04.01.00 ANEXO 1 – DEMONSTRATIVO DA DESPESA COM PESSOAL. Disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/613266/Item+6+-+MDF+8%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o+-+Item+04.01.00+Anexo+1+%E2%80%93%20Demonstrativo+da+Despesa+com+Pessoal.docx/0ef6f5a9-9c8c-4ac9-bd5d-c576da191e4b (Acesso em 28/09/2018).

Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.




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