Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 29 - Agosto 2022

Índice

  1. STF julga na ADI 5.595 destino de mais de R$ 40 bilhões para o SUS - por Francisco R. Funcia, Bruno Moretti, Carlos Ocké-Reis e Lenir Santos

STF julga na ADI 5.595 destino de mais de R$ 40 bilhões para o SUS

Por Francisco R. Funcia, Bruno Moretti, Carlos Ocké-Reis e Lenir Santos


Foto: Blog da Parábola Editorial

O financiamento da saúde sofreu boicote desde sua origem ao não ver respeitada a divisão dos recursos do orçamento da seguridade social, com 30% para a saúde, conforme artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Ao longo desses 34 anos de Constituição, foram muitas pedras no meio do caminho, do Fundo Social de Emergência em 1994, passando pela Desvinculação das Receitas da União (DRU) provisória de 28 anos, às Emendas Constitucionais (EC) 86, de 2015, e 95, de 2016.

Daí a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.595, em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2017 e com julgamento marcado para este mês de agosto, ser um tema de importância estratégica para o financiamento da saúde, por definir a aplicação do princípio de vedação de retrocesso na garantia de direitos fundamentais que impediria a redução dos recursos da saúde, como ocorreu com a EC 86, de 2015, ao incluir no seu piso o valor dos recurso do pré-sal. O ministro Lewandowski em decisão cautelar de 2017 reconheceu aplicabilidade desse princípio, restando agora o julgamento final pelo Pleno do STF.

Para clarear a questão, a EC 86, de 2015 determinou que os royalties do petróleo devem ser considerados dentro do piso constitucional de saúde, em desrespeito à legislação que disciplinou que a quota-parte de tais recursos para a saúde seria destinada para aplicação acima do piso constitucional, configurando um retrocesso na garantia de direito à saúde pela asfixia de seus recursos.

Igualmente, a citada EC definiu recurso mínimo obrigatório da saúde no valor de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), de modo escalonado em cinco anos a partir de 13,2% da RCL (com início em 2016), desconsiderando os valores efetivamente maiores que esse percentual aplicados pelo governo federal nos anos anteriores. Além do mais, dispôs ainda sobre as emendas parlamentares individuais impositivas (com execução orçamentária obrigatória) no valor de 1,2% da RCL, sendo que, no mínimo, a metade (0,6% da RCL) seria destinada à saúde, contabilizando os valores no piso federal da área.

Este último fato comprometeu a programação própria do Ministério da Saúde e o planejamento ascendente do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme Lei Complementar 141/2012, pois cerca de 2/3 do orçamento do Ministério da Saúde são transferidos para estados, Distrito Federal e municípios em acordo ao planejamento da saúde que deve incorporar as diretrizes das conferências de saúde e as consequentes pactuações das políticas de saúde firmadas na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), nos termos da Lei 8080/90 e da Lei 8142/90.

Na verdade, a EC 86, de 2015, foi uma bomba fiscal contra o SUS: em uma conjuntura de recessão econômica e queda da receita tributária, o piso indexado à RCL nos patamares fixados, produziria uma catástrofe no financiamento da saúde, à medida que representaria efetivamente uma autorização para reduzir a aplicação dos recursos da saúde. Além disso, royalties do petróleo e emendas parlamentares individuais seriam consideradas dentro deste piso "rebaixado" não havendo nenhuma margem de crescimento dos recursos para atender à crescente demanda por saúde.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, no ano seguinte à aprovação da EC 86, de 2015, foi promulgada a EC 95, de 2016, instituindo o Novo Regime Fiscal prevendo o congelamento dos gastos primários da União e do piso federal do SUS de 2017 por 20 anos (até 2036). O princípio jurídico de vedação de retrocesso na garantia de direitos fundamentais foi flagrantemente violado pela EC 95, de 2016, uma vez que os recursos federais aplicados na saúde foram reduzidos abaixo de 14% da RCL até 2019, ano imediatamente anterior ao início da pandemia da Covid-19 no contexto do aprofundamento da política de austeridade fiscal.

Em 2017, conforme mencionado acima, o ministro Ricardo Lewandowski, em sua decisão cautelar de 2017 suspendeu os efeitos de artigos da EC 86, de 2015, em particular, que estabeleciam que somente após cinco anos o piso federal do SUS passaria para 15% da RCL e o referente aos recursos de royalties do petróleo que seriam considerados como piso por reconhecer o retrocesso no financiamento da saúde. Para se ter uma ideia da relevância da matéria, somente entre 2017 e 2022, R$ 2,9 bilhões da fonte 42 (royalties do petróleo) foram alocados adicionalmente no orçamento da saúde.

Contudo, importa observar a potencialidade dos recursos dos royalties para os próximos anos tendo em vista especialmente o aumento da produção dos campos do pré-sal, que segundo a Lei no 12.858, de 2013 [1], garante destinação à educação e à saúde.

Apenas para o regime de partilha (no qual são licitadas as áreas do pré-sal), a empresa da União responsável pela gestão dos contratos (PPSA) estima, entre 2023 e 2031, uma arrecadação com royalties de US$ 90 bilhões [2]. Considerando o câmbio médio a R$ 5,50/US$ e que 22% dos royalties são da União [3] e 25%, destinados à saúde, isso corresponderia no referido período a R$ 27 bilhões para o orçamento federal de saúde. Mas isso somente será uma realidade com o reconhecimento da inconstitucionalidade da EC 86, em relação aos artigos impugnados em julgamento na ADI 5.595.

Para o regime de concessão, há campos muito produtivos, como os de Tupi e Sapinhoá, cujos recursos vão direto para o Fundo Social. O fundo comtempla a saúde, mas não há percentual definido de aplicação no setor. Além disso, há produção sob o regime da cessão onerosa cujos royalties pagos nos termos da Lei no 12.276, de 2010, são parcialmente destinados à saúde.

Logo, em relação exclusivamente ao regime de partilha, se os recursos dos royalties forem executados para além do piso da saúde, acresceriam R$ 27 bilhões para o setor até 2031, sem considerar os valores que possam ser obtidos em razão do regime de concessão e da cessão onerosa.

Vale também considerar as estimativas agregadas de arrecadação de royalties da ANP [4] entre 2023 e 2031 [5]. Supondo-se que, na média, 20% fiquem com a União e 25% sejam destinados à saúde, o SUS contaria ao longo desse período com R$ 41,7 bilhões, considerando todos os regimes de produção (partilha, cessão onerosa e concessão).

Ainda que sejam valores subestimados, já é possível ter uma ideia da relevância para a saúde da decisão do STF acerca dos royalties. Esses recursos equivalem a quase duas vezes o valor anual do piso de atenção básica destinado aos entes federativos (R$ 21,9 bilhões), mais de trinta vezes o orçamento anual para custeio do Samu (R$ 1,2 bilhão) e vinte vezes os valores destinados ao acesso gratuito de medicamentos pelo Farmácia Popular (R$ 2,04 bilhões).

Para a garantia do direito universal, integral e igualitário à saúde, é fundamental que o STF julgue inconstitucional a inclusão dos recursos dos royalties no piso da saúde, por violar o princípio da vedação de retrocesso na garantia de direitos fundamentais, no qual a saúde se inclui, impondo a sua condição de recursos extra teto, conforme previsão legal anterior, assegurando o bem-estar e a redução dos indicadores de morbimortalidade da população brasileira.

A decisão do STF é de relevância para o custeio e o investimento do SUS e medida de justiça por vedar retrocesso nas políticas sociais, assegurando ao SUS no mínimo cerca de R$ 42 bilhões para atender à demanda da população por serviços públicos de saúde estimados para o período de 2023 a 2031, em um sistema subfinanciado ao longo de três décadas e desfinanciado a partir da EC 95, de 2016.

Nos termos do inciso I e do § 30, ambos do art. 2o, as receitas dos órgãos da administração direta da União provenientes dos royalties e da participação especial decorrentes da declaração de comercialidade ocorrida a partir de 3 de dezembro de 2012, relativas a contratos celebrados sob os regimes de concessão, de cessão onerosa e de partilha de produção, conforme Leis 9.478, de 1997, 12.276, de 2010, e 12.351, de 2010, quando a lavra ocorrer na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva.

https://static.poder360.com.br/2021/11/estimativas-contratos-de-partilha-ppsa-2021.pdf.

Em liminar, a ministra Cármen Lúcia suspendeu dispositivos da Lei nº 12.734, de 2012, que previa os 22% de royalties para a União. Ainda assim, diante do vácuo legal, utiliza-se este percentual como referência para as estimativas apresentadas.

https://cpl.anp.gov.br/anp-cpl-web/public/sigep/consulta-estimativa-royaties/consulta.xhtml

A rigor, as estimativas são para o período 2023-2026. De 2027 a 2031, considerou-se a mesma taxa de crescimento médio anual do período 2023-2026.


Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração, professor dos cursos de Medicina e de Economia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).

Bruno Moretti é economista e assessor legislativo no Senado, mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor com estágio pós-doutoral em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

Carlos Ocké-Reis é economista, doutor em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro (Uerj) e pós-doutor pela Yale School of Management (Yale University).

Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Saúde Pública pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp.


Fonte: Revista Consultor Jurídico, 2 de agosto de 2022, 6h32




OUTRAS DOMINGUEIRAS