Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 29 - Julho 2020

Índice

  1. Aspectos de Lei Complementar 173 de 2020 na gestão do SUS - por Lenir Santos
  2. Boletim Cofin/CNS 2020/07/15 - por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke

Aspectos de Lei Complementar 173 de 2020 na gestão do SUS

Por Lenir Santos


A Lei Complementar 173, de 27 de maio de 2020, criou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19). Esta LC por prever recursos para os entes subnacionais em decorrência da pandemia da Covid-19, tem relevância na gestão do SUS por conter vedações ao administrador público.

Tal Programa dispõe sobre:

a) a suspensão do pagamento das dívidas contratadas entre a União com os estados, DF e municípios; reestrutura as operações de crédito interno e externo junto ao sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito; e
b) a entrega de recursos da União, na forma de auxílio financeiro, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, no exercício de 2020, e em ações de enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19).

A LC 173, define ainda regras para a utilização dos recursos pelos entes federativos, além de afastar algumas disposições da Lei Complementar 101, 2000 (LRF), e de outras leis, decretos, portarias e atos normativos.

As exceções criadas pela lei em comento se aplicam aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento do Programa e a convênios vigentes durante o estado de calamidades e não eximem seus destinatários, ainda que após o término do período de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, da observância das obrigações de transparência, controle e fiscalização referentes ao período, objeto de futura verificação pelos órgãos de fiscalização e controle.

O valor que a União entregará aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em 4 (quatro) parcelas mensais e iguais, no exercício de 2020, é de 60 bilhões de reais para aplicação pelos Poderes Executivos, em ações de enfrentamento à Covid-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros, sendo para a área da saúde e da assistência social o valor de dez bilhões de reais - sete bilhões de reais aos Estados e ao Distrito Federal e três bilhões de reais aos Municípios. Os três bilhões afetos aos municípios são para as ações de assistência social e para o SUS, não havendo definição na lei de quanto deve ser para cada uma das áreas, cabendo ao município essa decisão, podendo inclusive escolher aplicar em uma única área.

Os recursos podem ser aplicados para pagamento de pessoal e demais despesas, seja de capital ou custeio. Os recursos serão depositados pela União nos tesouros municipais mediante crédito pelo Banco do Brasil S.A. na conta bancária em que são depositados os repasses regulares do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e do Fundo de Participação dos Municípios.

Ainda que os recursos sejam transferidos pela União para os tesouros municiais, no caso da saúde, em acordo ao disposto no art. 77, § 3º do ADCT, todos os recursos devem ser aplicados mediante fundo de saúde; essa regra não foi alterada por nenhuma emenda constitucional durante a pandemia, estando pois em vigor e sendo de cumprimento obrigatório.

Art. 77 (...)
§ 3º. Os recursos dos Estados, DF e dos Municípios destinados às ações e serviços de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da Constituição Federal.

Desse modo, os recursos serão aplicados pelo município, no caso da saúde, pelo fundo municipal de saúde, cabendo ao tesouro municipal fazer a devida transferência.

O município deverá adequar a sua lei orçamentaria anual em relação ao recebimento dos créditos extraordinários, e o fundo municipal de saúde também deverá alterar a sua programação para contemplar as despesas que serão realizadas com os recursos extraordinários, com a ação especifica de combate ao coronavírus, cabendo aos servidores da área orçamentário-financeira promover os atos específicos afetos à sua área de atuação.

O município na introdução do crédito orçamentário no orçamento municipal deve observar a mesma natureza orçamentaria da origem, ou seja, se o crédito for extraordinário, a sua incorporação deverá ser como crédito extraordinário não cabendo outra modalidade, como suplementação ou especial, nos termos da Lei n. 4.320, de 1964, tendo vista terem natureza financeira específica. Vejamos:

Art. 40. São créditos adicionais, as autorizações de despesa não computadas ou insuficientemente dotadas na Lei de Orçamento.

Art. 41. Os créditos adicionais classificam-se em:

I - suplementares, os destinados a reforço de dotação orçamentária;
II - especiais, os destinados a despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica;
III - extraordinários, os destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública.

A origem do crédito não deve ser alterada na sua entrada no município para que se evitem problemas futuros. A Nota Técnica SEI nº 21231/2020/ME, que trata da contabilização de Recursos Destinados ao Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19), deve ser observada e é bastante detalhada em suas orientações.

A orientação do STN e do MS é de que a despesa no enfrentamento da COVID-19 deve ser balizada em ações programadas no Plano Municipal de Contingenciamento Epidemia, que por sua vez deve estar incorporada à Programação Anual de Saúde do exercício. A NOTA TÉCNICA Nº 7/2020-CGFIP/DGIP/SE/MS, trata do ajuste no Plano de Saúde (PS) ou na Programação Anual de Saúde (PAS) para inclusão das metas ou das ações, respectivamente, decorrentes do enfrentamento à pandemia da COVID 19.

Por se tratar de recurso extraordinário, ele não pode ser computado para o piso obrigatório da saúde pelo fato de esse valor decorrer de percentual de receitas fiscais municipais, conforme expresso na Lei Complementar 141, de 2012. É bom lembrar ainda que esse recurso da Lei Complementar 173 é uma transferência da União, Tesouro Nacional, e não uma transferência do Ministério da Saúde, via Fundo Nacional de Saúde. Caberá ao município definir como aplicar os recursos que receber para a saúde e assistência social.

Insistimos no ponto de que as despesas realizadas com esses recursos devem ser para o enfrentamento da Covid-19. Os recursos, como mencionado acima, serão transferidos para os tesouros municipais, sem que a LC 173 tenha definido as modalidades das despesas, se custeio ou capital. Nesse sentido, elas podem ser para ambas as modalidades. Caberá ao município decidir sobre a sua aplicabilidade ao alterar a sua lei orçamentaria e a do fundo municipal de saúde em acordo a programação orçamentaria. A Lei Complementar 173 permite expressamente que os recursos sejam aplicados em pagamento de pessoal para o combate a Covid-19.

Nesse ponto é bom lembrar que há vedações próprias da Lei Complementar 173 para o Município até dezembro de 2021 no tocante a ato que: a) provoque aumento da despesa com pessoal e não atenda às exigências dos arts. 16 e 17; b) aumente o limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal inativo; c) resulte em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20; d) resulte em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20; e) exija a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefe do Poder Executivo de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, ou a edição de ato, por esses agentes, para nomeação de aprovados em concurso público, quando resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo; f) resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo.

A lei complementar 173 excepcionou os profissionais de saúde e de assistência social, desde que relacionados as medidas de combate à calamidade pública, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

Na realidade, o município – excluindo a saúde - está proibido de aumentar despesa com pessoal a qualquer título, seja por carreira; seja por admissão ou contratação de pessoal, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários. Também ficam suspensas as realizações de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias. Por fim, é vedado criar, majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório de servidores e empregados públicos, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade.

Também estão suspensos os prazos de validade dos concursos públicos já homologados na data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, em todo o território nacional, até o término da vigência do estado de calamidade pública estabelecido pela União.

Nesse sentido, reiteramos que: a) os recursos a serem entregues pela União aos municípios por força da LC 173, de 2020, têm apenas uma parte vinculada à saúde e a assistência social (3 bilhões), sem haver definição na própria lei quanto caberá a cada área, ficando ao livre arbítrio do município essa repartição; b) os recursos não estão definidos se são para custeio ou investimento, o que permite ao município definir a programação do gasto, em acordo as alterações que vier a produzir em seu orçamento para acrescer o crédito recebido; c) os recursos que forem destinados à saúde, devem ser transferidos pelo tesouro municipal para o fundo de saúde, que também deve ter a sua programação alterada para a realização do gasto.

Todas as demais regras sobre gasto público continuam em vigor, com as exceções da Lei 13.979 no tocante à dispensa de licitação na compra de bens e serviços, preços, forma de pagamento, como a sua antecipação, e outras exceções ali criadas, como aditamento de contratos e convênios para o enfrentamento da Covid-19, sendo mais adequado para as devidas prestações de contas, tendo em vista o regime de exceção em relação a Lei n. 8.666, de 1993, sejam realizados novos contratos ou convênios ao invés de se aditar os existentes para separar os compromissos assumidos no regime de exceção da calamidade sanitária dos demais. Mas os aditamentos são possíveis e será uma escolha do administrador. A separação aqui aconselhada é no sentido processual para separar as futuras prestações de contas da pandemia das rotineiras.

Lembramos que a referida LC exige que em todas as aquisições de produtos e serviços, os Estados e Municípios darão preferência às microempresas e às empresas de pequeno porte, seja por contratação direta ou por exigência dos contratantes para subcontratação.

Tem sido discutida a aplicabilidade da lei eleitoral, Lei n. 9.504, de 1997, nas compras, despesas de pessoal e outros atos administrativos no período eleitoral. A situação de emergência para o combate à Covid-19 trouxe regras excepcionais, como as da Lei n. 13.979, de 2020.

A aplicabilidade da lei eleitoral tem sido discutida entre juristas e advogados. A LC 173 é uma lei complementar, com regras temporárias, excepcionais; a lei eleitoral, Lei n. 9.504, de 1997, é uma lei ordinária, com normas especiais, ou seja, de regência do processo eleitoral de modo permanente. É importante neste caso específico que o procurador do município se manifeste para instruir o Prefeito quanto à sua aplicabilidade diante desse regime de exceção sanitária, uma vez que poderá haver interpretações jurídicas diversas.

Outras indagações têm sido comuns, como a possibilidade de se criar gratificação para os servidores da saúde; de abrir concurso público para reposição de servidores aposentados, exonerados ou falecidos; de se contratar pessoal por prazo determinado para atender a situação de urgência e emergência configurada no caso do enfrentamento e combate à Covid-19. Não há impedimento para criar gratificação desde que haja previsão legal; idem quanto ao concurso público e contratação por tempo determinado, sem se esquecer das restrições da lei eleitoral e a necessária consulta ao procurador municipal, esclarecendo sempre que a LC 173, de 2020, admite aumento de despesa com pessoal durante e para atender a pandemia.

Outras despesas com pessoal que não têm a ver com a emergência sanitária estão vedadas, excetuadas as previstas no artigo 8º da LC 173, inciso IV e V, como as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares e a realização de concurso público para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV da referida lei.

Com relação aos aditamentos de convênios com entidades filantrópicas ou contrato de gestão com organização social para ampliar a quantidade de profissionais (ou hora-profissional) sem tempo determinado, entendemos que as regras para se alterar os contratos e os convênios com as entidades privadas que participam do SUS complementarmente ou mediante parceria estão entre as exceções previstas na Lei n. 13.979, desde que o enfrentamento da Covid-19; para as atividades rotineiras, não excepcionais, continua em vigor as mesmas regras anteriores. Nada foi alterado.

É de se observar em especial o disposto nos artigos abaixo da Lei n. 13.979, de 2020:

Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o **caput **deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Art. 4º-B Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta Lei, presumem-se atendidas as condições de:
I - ocorrência de situação de emergência;
II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência
III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares;
IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Art. 4º-H Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.
Art. 4º-I Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.

Em se tratando de convênio, devem ser observadas as mesmas regras em seus aditamentos; nesse aspecto ele não difere do contrato. O prazo será sempre vinculado à emergência sanitária. Lembrar sempre que o objeto do contrato ou convênio e de seus aditamentos devem estar vinculados ao enfrentamento e combate do coronavírus. Aditamentos para atendimento de necessidades não vinculadas ao combate do coronavírus, observam as regras que regem comumente os ajustes, sem exceção.

Observadas as restrições nos períodos previstos pela lei eleitoral e a depender do entendimento da procuradoria do município, é possível contratar bens e serviços para a área da saúde, mediante aditamento. Os limites continuam sendo os da Lei n. 8666, de 1993, e em se tratando do combate à Covid-19, o prazo de duração dos aditamentos devem limitar-se à sua duração. Dentre os serviços contratados com terceiros, não estão excluídos o que se referem a pessoal.

Outras questões contábeis, orçamentárias e financeiras devem ser objeto de apreciação e estudo pela área própria de programação e execução orçamentária, devendo sempre que houver dúvidas, ser consultado o serviço de auditoria interna e, quando for o caso, o controle externo porque o estado de calamidade pública instaurou regimes excepcionais que demandam aprofundamento das áreas específicas.

Importante o processo administrativo retratar com fidedignidade todos os acontecimentos, ter cópia de todos os documentos, notas técnicas circunstanciadas sempre que os compromissos estiverem sob regime de regras excepcionais. As prestações de contas serão realizadas depois que o regime de exceção terminar e a memória dos fatos se perderão, sendo fundamental estar com todos documentos, ainda que em excesso.

Nesse sentido, entendemos ter atendido às demandas jurídicas do Cosemssp de modo abrangente, cabendo às áreas contábeis, orçamentárias e financeiras dos municípios as questões afetas ao seu campo de atuação.


Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.



Boletim Cofin/CNS 2020/07/15

Por Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke


















Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.

Rodrigo Benevides, Economista (UFRJ) e mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ.

Carlos Ocké, Economista e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES.




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