Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira Nº 29 - Outubro 2018

BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A REPROVAÇÃO DO RELATÓRIO ANUAL DE GESTÃO 2017 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

Por Francisco R. Funcia


O Conselho Nacional de Saúde (CNS) reprovou o Relatório Anual de Gestão (RAG) 2017 do Ministério da Saúde. Esta foi a segunda vez que ocorreu a reprovação – a primeira foi em 2016, cujas causas principais naquela oportunidade foram:

a) o não cumprimento da aplicação mínima de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL), em desrespeito à Constituição Federal (CF);
b) a reincidência de itens de despesa com baixos níveis de liquidação conforme painel de acompanhamento quadrimestral e semestral que tem subsidiado a análise da Comissão de Orçamento e Financiamento (COFIN) do CNS desde o início de 2016, gerando o descumprimento de muitas metas previstas na Programação Anual de Saúde de 2016;
c) a não compensação formal (em dotação orçamentária própria) além da aplicação mínima, como determina a Lei Complementar 141/2012, de parte dos restos a pagar cancelados no exercício imediatamente anterior ao do relatório analisado;
d) a falta de comprovação de que havia disponibilidade financeira, mesmo no “caixa único” previsto pela Constituição Federal para centralização dos recursos financeiros federais, correspondente ao valor das despesas empenhadas e não pagas em 2016 somadas aos restos a pagar referentes aos empenhos de exercícios anteriores a 2016, como determina a Lei Complementar 141/2012; e
e) o desrespeito parcial de algumas resoluções e recomendações do Conselho Nacional de Saúde, dentre outras causas apontadas no parecer conclusivo do Conselho Nacional de Saúde que integra a Resolução 551/2017 (disponível em http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso551.pdf e http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso551_anexo.pdf)

Exceto para o item “a”, todos os anteriores estiveram presentes como fatores para reprovação do Relatório Anual de Gestão de 2017 do Ministério da Saúde, acrescentando-se ainda a não compensação formal (em dotação orçamentária própria) do valor da aplicação insuficiente ao mínimo em 2016.

Porém, apesar do cumprimento da aplicação mínima constitucional de 15% da RCL em 2017, esse cumprimento representou uma espécie de “maquiagem” que encobriu um fato grave ocorrido, a saber, o grande aumento verificado nos empenhos a pagar do exercício de 2017 e do total de restos a pagar (que inclui também os empenhos de exercícios anteriores a 2017 e não pagos até 31/12/2017).

Essa “maquiagem” decorre do fato de que a verificação do cumprimento da aplicação mínima federal é feita pela despesa empenhada (e não pela despesa liquidada e paga), ou seja, a comprovação da aplicação mínima ocorre por meio da despesa que foi compromissada para um credor e finalidade específica, mas que ainda não foi efetivada em termos de ações e serviços de saúde para a população. No caso da análise do RAG 2017/MS, foi constatado um grande crescimento (recorde em relação aos últimos anos) dessas despesas empenhadas (ou compromissadas) para serem liquidadas e pagas (ou efetivadas) a partir de 2018.

É preciso ficar claro que o problema não está na existência dos restos a pagar, situação prevista na Lei Federal 4320/64, mas sim no fato de que houve um crescimento expressivo dos restos a pagar, o que, na prática, prejudicou o atendimento às necessidades de saúde da população, a saber:

a) os empenhos a pagar referentes ao exercício de 2017 cresceram 81% comparado a 2016 – ou seja, despesas foram compromissadas em 2017, mas não foram liquidadas e pagas no ano passado (portanto, não se transformaram em ações e serviços públicos de saúde para a população) – e, no mesmo período, a cifra foi recorde também para as despesas referentes às transferências para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde (165%), o que representou sérios prejuízos para o financiamento das ações de saúde realizadas pelas secretarias estaduais e municipais de saúde em 2017.
b) se forem incluídos ao valor do item “a” os restos a pagar anteriores a 2017, o resultado dessa soma foi quase R$ 22 bilhões e correspondeu a um crescimento maior que 50% em comparação a 2016. Essa situação interrompeu uma tendência declinante observada nos últimos, que convergia para o índice de 5% do valor de empenhos a pagar em relação aos valores empenhados em cada exercício, conforme recomendação do CNS e revela que muitas despesas empenhadas num exercício para execução no seguinte sofreram retardamento de realização em 2017, portanto, em prejuízo para o atendimento às necessidades de saúde da população no ano passado.

Em outros termos, para que as necessidades da população sejam atendidas de fato, não basta empenhar, é preciso pelo menos liquidar e, em alguns casos, pagar a essa despesa (por exemplo, atestar que a compra do bem ou a contratação do serviço e obra tenham ocorrido, ou que o recurso financeiro tenha sido transferido para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde). Não basta comprovar somente que aplicou o mínimo compromissando as despesas, é preciso que as despesas com saúde se efetivem em ações para a população ou em financiamento para a realização das despesas descentralizadas nos Estados e Municípios.

Diferentemente dos anos anteriores, esse grande crescimento dos restos a pagar em 2017 pode ser explicado pela EC 95/2016, o que representa a possibilidade concreta de postergação da execução dessas despesas e/ou um efeito de manutenção de cifras expressivas de empenhos a pagar nos próximos exercícios por causa do dispositivo constitucional do teto de despesas primárias que restringe a disponibilidade financeira de pagamento do conjunto dos Ministérios aos valores pagos em 2016 atualizados monetariamente pela variação do IPCA. Em outros termos, é falso o argumento de que a EC 95/2016 beneficiou o atendimento às necessidades de saúde da população porque estabeleceu também para 2017 o piso de 15% da RCL – a falsidade decorre exatamente da nossa explicação anterior de que não é suficiente empenhar a despesa em termos orçamentários, se a execução financeira está limitada pelo teto de despesas primárias calculado pelos valores pagos em 2016 (incluindo os restos a pagar) corrigidos somente pela variação anual do IPCA/IBGE.

Nesse contexto, o crescimento dos restos a pagar das despesas federais de saúde pode ser associado ao que a Dra. Élida Graziane Pinto, do Ministério Público de Contas de São Paulo, tem denominado como “precatorização dos direitos sociais” (disponível em https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/saude-da-populacao/estudantes-e-docentes-da-uerj-comparecem-em-peso-no-ato-em-defesa-do-sus/20665/); a gravidade reside no fato de que tais despesas, diferentemente dos precatórios judiciais, não são atualizadas monetariamente e nem são cobrados juros de mora pelo atraso ao atendimento às necessidades de saúde da população, ou seja, a existência de restos a pagar desde 2003 tendem a crescer no contexto da EC 95/2016, cujos valores sofrerão desvalorização que poderão inviabilizar a realização das despesas (por exemplo, com obras e equipamentos, reestruturação de hospitais universitários, etc).

Várias despesas de custeio (como aquisição de medicamentos, vacinas, etc.) também apresentaram um baixo nível de liquidação e pagamento em 2017, o que no contexto da EC 95/2016 tende a criar um movimento de “empurrar para frente” anualmente a execução dessas despesas, como se as necessidades de saúde da população pudessem também ser postergadas tal qual ocorre com a liquidação e o pagamento das despesas – não existe um “restos de necessidades de saúde a atender” para compatibilizar com os restos a pagar, e o crescimento observado gerou efeitos negativos no exercício de 2017, ainda que uma parte dessas despesas empenhadas e não pagas em 2017 (não todas) tenham sido pagas em 2018. O Painel de Acompanhamento dos Níveis de Liquidação de Despesas que a COFIN/CNS monitora a cada quadrimestre e semestre indicou a manutenção dos baixos índices (classificados como inadequado, intolerável e inaceitável) de forma reincidente para vários itens de despesa, inclusive com ampliações observadas em 2017, que guarda relação com o crescimento expressivo dos empenhos a pagar em 31 de dezembro de 2017, bem como com os restos a pagar inscritos e reinscritos.

Com isso, apesar das recomendações e resoluções do CNS a respeito da necessidade de disponibilizar recursos suficientes para a execução do orçamento anual e para execução financeira dos restos a pagar a partir de 2017, por causa dos efeitos restritivos da EC 952016, o que se verificou em 2017 foi o contrário, qual seja, os valores pagos tiveram queda real (ou nominal, como ocorreu com os restos a pagar), comprometendo o atendimento às necessidades de saúde da população em 2017 e também nos anos seguintes sob a vigência da EC 95/2016.

Finalmente, com a edição da Portaria 3992/2017, no apagar das luzes do exercício, sem submeter à análise e deliberação do CNS, com a extinção dos seis blocos de financiamento da antiga Portaria 204 e a criação de apenas dois (custeio e investimento), mesmo com a existência de dispositivos que exigem o cumprimento pelos Estados e Municípios da programação pactuada na CIT que resultaram nos valores transferidos, segundo a classificação orçamentária, pelo Fundo Nacional de Saúde, ficará mais difícil para acompanhar a execução financeira dos restos a pagar do gestor federal e dos gestores estaduais e municipais diante da inexistência de controles específicos para esse fim até o momento, conforme a COFIN/CNS apurou preliminarmente ao consultar o Fundo Nacional de Saúde e o SIOPS/DESID sobre o acompanhamento da execução das despesas dos Estados e Municípios nos termos das transferências realizadas segundo as subfunções e demais programações federais.

A reprovação dos RAG’s 2016/MS e 2017/MS pelo Conselho Nacional de Saúde também aponta para o fato que as recomendações e as resoluções do controle social devem ser consideradas secundárias pelo gestor quando comparadas aos apontamentos do controle externo exercido pelo Poder Legislativo com o apoio técnico do Tribunal de Contas da União, em respeito ao que determina a Lei 8142/90 sobre o caráter deliberativo dos Conselhos de Saúde e das Conferências de Saúde como instâncias máximas de deliberação do SUS. Este é o desafio do gestor: respeitar com a mesma prioridade as determinações do controle interno, do controle externo e do controle social.

Portanto, uma referência importante para a escolha do próximo presidente da República é o compromisso explícito do candidato com a defesa do Sistema Único de Saúde inscrito na Constituição Federal e com seu financiamento adequado, de modo a respeitar o controle social e, nestes termos, a democracia e os direitos de cidadania, considerando o conceito ampliado de saúde estabelecido pela Organização Mundial de Saúde e a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, especialmente quanto aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentado relacionados com a redução das desigualdades socioeconômicas como garantia dos direitos à vida, à saúde e à liberdade no Brasil hoje e sempre.

Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP.





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